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dezembro 3, 2007
Bola da Vez, por Guy Amado
Bola da Vez
Texto crítico de Guy Amado, sobre o trabalho de Diego Belda, para a exposição da Galeria Virgilio
Abrindo mesa. O pano verde sempre convidando ao mesmo jogo - que no entanto nunca se repete: o colorido das bolas alinhadas à espera de serem postas para correr sobre sua superfície, ativando uma improvável - porque graciosa - e sempre inédita sucessão de ritmos geométricos, cores em movimento. A lógica mais fria pode sugerir ao incauto uma promessa de monotonia, a partir da cadência e da temporalidade que é própria do jogo; a plasticidade do conjunto, contudo, fala mais alto, garantindo o fascínio e, por que não, o espetáculo. Além disso, há a ritualística envolvida: o talco e o giz, o quadro-negro e o marcador, a aparada na sola do taco com a lixa, o avental e luvas para os que gostam de botar banca... mais que meros prolegômenos, hábitos e acessórios que contêm a aura de uma tradição, do "mundo de dimensões do pano verde de uma mesa de sinuca" de que João Antônio já falava com tanta propriedade.
Bola 2 na caçapa um. Não cai como previsto - a branca corre demais, passa do ponto e cola na tabela lateral. Agora é o caso de arriscar, a 5 é sempre uma boa opção. Um corte no meio: caixa. Uma tragada e volta-se à 3, agora bola da vez, caçapa quatro, diagonal no fundo. Pega um pouco de quina mas vai; isso também é do jogo, embora a mesa não tolere muitos erros. Tabelas novas, borracha tinindo, o feltro recém-trocado, demora a se pegar o tempo da bola.
Desde a primeira tacada, entram em cena uma batelada de fatores: raciocínio, precisão, erro, estilo, destreza, confiança, frieza, visão de jogo, fair play... e, para quem é do ramo, malandragem, sobretudo quando a coisa é a dinheiro. Bem, e há a física, claro: sempre esperando ser contrariada por tacadas impossíveis, bolas que são cuspidas...como se não houvessem tabelas, espetos, efeitos, puxadas e outros recursos que em sinuca chamam picardia, lembra novamente o cronista de uma São Paulo que hoje parece tão remota. Mas a sinuca resiste. Tudo envolto pela atmosfera soturnamente descontraída e esfumaçada do salão. Jogo cerebral, jogo de coração, feito de polaridades: razão e sensibilidade, ataque e defesa, lógica e acaso, ruído e silêncio, equilíbrio e desespero se alternam no final do taco.
O jogo agora é a 7, a matar mas defendendo; e paga-se o preço da insegurança, nem uma coisa nem outra. A mesa fica aberta. A próxima tacada demora a chegar, quase o tempo de um cigarro inteiro, bem fumado. Mau sinal. Retorna à mesa na bola 6. Bola de três tabelas, rodando a mesa e caindo no meio. Tac-tum-tum-tum: sua trajetória descrevendo quase um polígono perfeito, um retângulo áureo. Não cai, mas é sempre uma bela tacada a se tentar. Ao travar a branca, acaba por defender involuntariamente. Não chega a trancar a mesa, mas ao menos a bola da vez não fica em posição confortável.
A cachaça está acabando; a cerveja ainda não veio. Pensa em por que diabos toda casa do ramo ostenta aquele mesmo tipo de adereços kitsch, as invariáveis reproduções de simpáticos cães - embora antropomorfizados de maneira um tanto bizarra - estranhamente entretidos em partidas de bilhar ou de baralho... No marcador, as contas mudam de lugar, deslocadas pra lá e pra cá; os sinais a giz alterando-se a cada partida, reaparecendo.
Mas o jogo é jogado. Percebe que a bola 6 por algum motivo permanece na mesa. Dá-lhe uma sarrafada, com um bocado de efeito negativo na branca - ela atravessa o feltro diagonalmente como um bólide rosáceo para despencar no buraco três, o do canto à direita. A tacadeira fica mal parada. Agora é preciso fazer a 7 na seqüência, para que ela retorne à mesa e aí então metê-la novamente; é a única chance. Ela cai sem convicção, e a branca, ainda menos convicta, rola incerta até parar à beira da caçapa oposta, a de baixo, escondendo-se caprichosamente entre as quinas, tirando qualquer possibilidade de angulação viável. Sinuca de bico. É o nome do jogo, afinal - embora não se suponha que vá ser auto-infligida. De certo modo é uma tacada fácil, pois não há muito o que se pensar. A situação é duramente simples: um milagre, ou partida encerrada - e de milagres se desconfia e a sinuca não comporta. Seja como for, não se ganha o jogo - o jogo ganha sempre. Na vida como na arte, dirão alguns, provavelmente com razão. Embora aqui seja difícil apontar onde termina um e começa o outro.
Diego Belda
Malagueta, Perus e Bacanaço
6 de dezembro a 15 de fevereiro de 2008
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