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junho 25, 2007
Exposição China Hoje: transcrição da mesa-redonda com Alfons Hug, Uli Sigg e Li Songsong
Exposição China Hoje - Coleção Uli Sigg
Transcrição da mesa-redonda com o curador Alfons Hug, o colecionador suíço Uli Sigg e o artista chinês Li Songsong
15 de maio de 2007
Centro Cultural Banco do Brasil
Rua Primeiro de Março 66, Centro, Rio de Janeiro - RJ
Alfons Hug - Boa tarde. Muito obrigado pela visita. Meu nome é Alfons Hug, sou diretor do Instituto Goethe e curador da mostra. É um grande prazer poder apresentar hoje o colecionador Uli Sigg e, ao lado dele, o artista, pintor Li Songsong, cuja obra está na primeira sala, dentro do segmento "retratos e imagem do homem". Ele fala inglês, então vamos poder, depois, dirigir algumas perguntas a ele também. A idéia da mostra surge no final do ano passado, quando tive a oportunidade de conhecer a coleção do Uli Sigg, em Hamburgo, na Kunsthalle, quando ele mostrou uma seleção maior do que aqui. Assim surgiu a oportunidade de trazê-la para cá. Marcelo Mendonça, gerente geral do CCBB, foi comigo para a casa dele, na Suíça, onde muitas dessas obras estão. E fizemos uma seleção bastante clássica, com temas até convencionais, diria, como retrato, imagem do homem, paisagem, caligrafia. Isso é muito fácil, no caso da China, porque são temas absolutamente predominantes, até porque eles têm uma tradição realista muito forte. Eu vou primeiro fazer algumas perguntas ao Uli Sigg e ao artista e, depois, vamos mostrar algumas imagens, comentar as imagens e, obviamente, vocês podem fazer intervenções e perguntas. Primeira pergunta a Uli Sigg: como se deu o contato com a China, como foram as suas atividades profissionais e como ele começou com a sua coleção, que é hoje, a maior do mundo. Mesmo na China não há um acervo de arte contemporânea tão grande.
Uli Sigg - Peço desculpas por falar inglês com vocês. Gostaria de começar meu breve comentário agradecendo ao Banco do Brasil por dar a oportunidade de mostrar no Brasil partes da minha coleção, e estou muito impressionado com a escala e o profissionalismo com a qual Banco do Brasil lidou com a mostra e o cuidado com o material educativo. Estou impressionado. Mas, agora, vou à sua questão. Como cheguei à China, para começar. Eu já fui jornalista, já fui advogado e me empreguei na indústria suíça. E, no fim dos anos 1970, mais precisamente em 1979, uma delegação chinesa veio até a nossa firma, na Suíça. Eles estavam interessados em ver a nossa tecnologia - era uma empresa de elevadores, Schindler, vocês devem conhecer. China, naqueles tempos, era um território desconhecido para o Ocidente. Paralelo a isso, a empresa não sabia exatamente o que fazer com um jornalista. Então, eles me disseram: "você vai tomar conta da China". Então, foi assim que eu me envolvi. Fui à China e construí a primeira companhia joint-venture entre China e o mundo Ocidental. Comecei a minha coleção de arte contemporânea muito, muito jovem - coleção de arte ocidental. Portanto, quando fui para a China era natural que eu desse uma olhada no meu novo ambiente, e no que os artistas contemporâneos de lá estavam fazendo. Isso comprovou ser muito difícil porque o que consideramos arte contemporânea estava apenas começando, em 1979. Antes, tratava-se apenas de realismo socialista e os artistas não tinham meios de produzir algo diferente disso. Então, o que vi nesses primeiros anos não foi interessante para um olhar ocidental. Boa parte dos artistas chineses foram excluídos, e não havia informações sobre os artistas chineses contemporâneos no Ocidente. Eles tiveram que experimentar e tinham que construir, reconstruir seus conhecimentos que, em nosso caso, os estudantes vão para as universidades. Não era um período interessante. Levou um tempo para que os artistas chineses encontrassem sua própria linguagem. Por que colecionei do jeito que eu colecionei? Em um determinado momento, me dei conta de que ninguém, nenhum indivíduo, nenhuma instituição, na China, estava colecionando arte contemporânea. Pensei: "isso é muito estranho. Essa é o maior espaço cultural do mundo e ninguém presta atenção à experimentação contemporânea que os artistas estão fazendo". Sendo assim, nesse momento, decidi mudar meu foco e construir esse registro que ainda não existia na China. Colecionar atravessando todas as mídias: pintura, escultura, vídeo, instalação, performance, através dos tempos, com o desejo de fazer um espelho da arte contemporânea da China da melhor forma possível. Por isso, a coleção é, hoje em dia, mais um perfil, como o que uma instituição faria. Consiste em cerca de 1.600 obras, de 200 artistas, dos anos 1970 até os dias de hoje.
Hug - Eu vou perguntar agora ao artista Li Songsong como é a carreira dele, como é a formação de pintura na China, e quais são as suas influências. Li Songsong, como foi a sua formação, sua educação, como artista, quem eram seus professores e como funciona o sistema universitário na China?
Li Songsong - Minha educação começou em 1988, no início do ensino médio, porque a escola era uma escola de arte. De lá até a graduação da universidade foram oito anos e, para um artista, é muito tempo de treinamento, porque, basicamente, era uma educação vinda da ex-União Soviética, baseada no realismo socialista, com ensino de pintura e escultura, cujo propósito principal era a propaganda. Portanto, toda a educação era muito longa, muito séria e entediante, mas com um treinamento clássico. Mas, por outro lado, hoje em dia é muito bom para mim, pela forma que eu uso esse ensinamento. Há muitos artistas que tiveram a mesma educação que eu, mas que não tiveram suficiente chance de atingir diferentes mercados de arte. Na escola, tive professores que vocês podem aqui na exposição ver alguns de seus trabalhos. Liu Xiaodong e sua mulher, Yu Hong. Há dois trabalhos no mesmo espaço. O primeiro é sobre um homem de meia-idade num barco, numa paisagem ("A Montanha", 1999), e o outro é o retrato de uma mulher ("Ela - Garota desempregada", 2003). Liu Xiaodong foi meu professor da escola até a faculdade, ou seja, por muito tempo. Ele é muito bom pintor e representa esse sistema educacional. Ele tem o domínio da técnica de pintar realismo socialista, e o que se aprende nas escolas, mas usa essa técnica, geralmente, para pintar o cotidiano, a vida comum das pessoas, recriando um tipo diferente de realismo.
Hug - [apontando uma imagem da obra "A Felicidade do sono longo", 2006] Essa é sua pintura, que está na primeira sala. Você pode falar algo? Você poderia comentar algo, como o título e o conteúdo?
Songsong - O título é "Felicidade do sono longo". Para mim é algo, mas não sei o que vocês acham. Acho que uso esse trabalho para testar esse trabalho em ocasiões especiais. Não apenas na China, não apenas na contra-revolução. Isso já aconteceu muitas vezes em outros períodos da história.
Hug - Você poderia falar sobre o conteúdo desse trabalho?
Songsong - É uma história bastante interessante para mim. Ele foi um soldado que acabou sendo ferido numa pequena guerra entre China e Taiwan, nos anos 1960. Ele se feriu na cabeça, no cérebro. Ele se tornou um grande herói naquela época, esteve em todas as mídias. Peguei uma foto dele numa revista velha, dos anos 1960. Ele estava num hospital, se recuperando e uma garotinha lia algo para ele. Acredito que o livro que a menina levava em suas mãos deveria ser um livro de Mao (Tse Tung). Essa é a história.
Hug - A gente vai entrar agora um pouco sobre a história da arte chinesa do século XX com esse vídeo, de Wang Jianwei, que está na sala D. Na realidade, essa é uma obra contemporânea, é de 2001. Só que o artista recolheu trechos de filmes de propaganda, filmes revolucionários da época da revolução cultural que foi dos anos 1960 até meados dos anos 1970, quando a arte foi usada para fins políticos, fins propagandísticos. Então tem trechos de balé, de ópera revolucionária. As companhias tiveram que educar o povo e, inclusive, viajar pelo interior. Esse chamado realismo revolucionário se baseia no realismo socialista da União Soviética, que surge nos anos 1920, na Rússia, e que usava o estilo realista do século XIX, transformando-o numa estética diferente que ressaltava o realismo da classe trabalhadora, dos camponeses e dos soldados. A gente tem na mostra uma série de cartazes dessa época. Uli [apontando para um dos cartazes], você poderia falar um pouco mais sobre a história desses pôsteres de propaganda?
Sigg - Esses pôsteres são, geralmente, pinturas feitas pelos melhores professores da academia. Havia uma comissão para fazer esse tipo de arte-propaganda. Esse, por exemplo, mostra o jovem Mao indo para uma famosa palestra que ele deu sobre cultura, na qual dizia que a arte está aqui para educar e não tinha outro propósito. Como essa pintura, havia cerca de 900 milhões outros pôsteres. Todo o mundo tinha esses cartazes em suas casas. Tinha um slogan e esses cartazes ficavam nos escritórios e nas salas para lembrar às pessoas sobre o que era politicamente correto. Eram as campanhas de massa daquela época, já que não havia televisão. Eu colecionei algumas centenas desses pôsteres, boa parte de um senhor que, por 44 anos, não fez nada a não ser colecionar tudo o que havia sobre Mao em Pequim. Ele ia às empresas que faziam as impressões desses cartazes e comprava tudo aquilo que seu dinheiro permitia. Essa é talvez a segunda pintura mais famosa do período da revolução cultural. Eu procurei esse trabalho por muitos anos e esperei até que, finalmente, consegui comprá-la. Ela mostra Mao durante uma visita ao sul. Ele fez apenas uma visita à região sul, porque ele tinha um certo medo de ir para aquela região. As pessoas amavam essa pintura porque mostra Mao contente, assim como os passantes. Mas as pessoas realmente gostavam da pintura anterior, que mostra Mao num estilo acadêmico.
Hug - A Pinacoteca de São Paulo, poucos meses atrás, apresentou uma exposição do pintor realista paulista Almeida Júnior [a mostra se chama "Um Criador de Imaginários", com 120 obras do artista, do século XIX], e se observa bem que existem alguns paralelos entre a produção realista do século XIX e a escola soviética e chinesa.
Sigg - Acho bastante pertinente esse comentário do Alfons. O realismo soviético nasceu a partir do realismo romântico europeu. A União Soviética se apropriou para propósitos propagandísticos, que foi para a China e agora volta para nós como uma nova escola de pintura.
Hug - Na realidade houve na China uma espécie de Semana de Arte Moderna que, no Brasil ocorreu em 1922 e introduziu parâmetros modernistas. Isso ocorreu na China no movimento 04 de maio, de 1919, quando um grupo de intelectuais progressistas introduziu o realismo oriundo da Europa para questionar a pintura tradicional que era a pintura à base de nanquim e a caligrafia. Com a morte de Mão Tse-Tung, em 1976, surge uma primeira abertura na China. Os artistas têm mais espaço, não existe mais o dogma do realismo revolucionário e começa a arte contemporânea. Vamos ver alguns exemplos. Surge, então, o movimento que se chama realismo cínico cujo principal protagonista nos anos 1980 e 1990 foi Fang Li Jung, que está na mostra, e Uli vai explicar um pouco o que é o realismo cínico.
Sigg - Realismo cínico foi cunhado depois dos acontecimentos de 1989, na Praça da Paz Celestial. Foi uma grande ruptura no contexto da cultura contemporânea chinesa. Antes, os artistas estavam bastante envolvidos, engajados com uma arte sobre grandes temas com o intuito de reconstruir uma nova sociedade, que foi possível depois da morte de Mao. Mas, 1989 levou a uma grande desilusão para os artistas. Eles se afastaram desses grandes temas e se voltaram para uma escola - que seria a mais importante escola, e que se tornou a mais famosa - que foi a do realismo cínico, que significou uma reação aos acontecimentos de 1989, e ao esmagamento da produção cultural que se seguiu, e à censura que voltou muito forte. O que ficou muito famoso foram suas pinturas de pessoas de costas, que representam uma atitude de protesto, mas também uma atitude entediada, e vemos esse homem velho, toda a China através do seu olhar. É sobre isso. E isso foi um sentimento existente por alguns anos dentro de um grupo de artistas.
Hug - Li Songsong, qual é a sua experiência com o realismo cínico?
Songsong - Quando eu vi pela primeira essas pinturas, eu ainda estava na escola, e naquele tempo a China experimentava uma mudança grande, especialmente no quesito cultural. Acho que há uma influência profunda para mim e para outros artistas que estudavam comigo na mesma época, porque o estilo quebrou a tradição artística da época. Começamos na escola a mostrar nossa arte para o público nas galerias. Era algo totalmente diferente.
Hug - [Apontando para a imagem da obra "Sem Título", 1998] O ícone da mostra, a jovem soldada de Qi Zhilong. A gente escolheu de propósito porque, para mim, esse retrato representa ainda uma certa herança do realismo revolucionário, humildade talvez, a castidade da camponesa ou da soldada e, ao mesmo tempo, combinado um certo glamour, talvez com um poder sedutor, que poderia ser de uma atriz ou de uma estrela de cinema, por exemplo.
Sigg - O que acontece é que essa pintura tem um apelo incrível no mundo ocidental, mas tem menos apelo no universo chinês. E, talvez, comente um aspecto de por que eu me interessei por essa pintura: é um exemplo do hiper-realismo chinês. Esse é um caso extremo da habilidade técnica que os artistas chineses têm na educação, como Songsong. Eles têm que passar por um duríssimo treinamento da técnica, o que não é uma exigência entre os artistas ocidentais. Não sei como é entre os estudantes (de arte) brasileiros. Os chineses adquirem uma incrível habilidade técnica. Isso talvez leve a uma pintura interessante ou nem tão interessante assim, mas, esse é um bom exemplo na exposição sobre o hiper-realismo.
Hug - A mesma coisa aconteceu na Alemanha Oriental, que teve um desenvolvimento social e estético similar, depois da Segunda Guerra Mundial, com o advento da República Democrática da Alemanha e do realismo socialista. Por isso, os pintores da Alemanha Oriental estão, hoje, junto com os chineses, entre os mais cotados e, talvez, tecnicamente, os mais aperfeiçoados. Outro quadro [apontando para a imagem da obra ["Retrato No. 3", 2005], entre os nossos preferidos, Li Dafang. Quando você compara o coletivismo do realismo socialista, aquela massa, aqueles grupos coreografados, na época socialista e, de repente, o indivíduo com todo o seu abandono, isolado e, talvez, uma expressão suprema das novas metrópoles chinesas e na nova juventude urbana. Para mim, se fosse o Brasil, essa imagem seria São Paulo, talvez, menos o Rio de Janeiro.
Sigg - Aqui, o artista [Li Dafang] é um pintor do norte da China. Ele está interessado na juventude de hoje na China. Para ele, o quadro representa uma grande parte da juventude atual. Jovens que se vestem de forma fashion, que têm um corte de cabelo fashion. Ele pintou no "bojo" de um grupo de outros trabalhos, junto com alguns dos heróis ideológicos da China como Marx, Lênin e outros. E todos eles, nas pinturas, estão olhando chocados para essas pinturas de jovens na exposição original. É sobre a juventude atual. E eles não entendem a juventude dos dias de hoje mais.
Hug - Na mesma sala, a dos retratos e do corpo humano, Huang Yan, "Chinese Landscape: Tattoo No 2 and 6", de 1999. Uma fotografia, mas o artista tinha pintado esse corpo com técnicas tradicionais, com nanquim. São temas clássicos da paisagem chinesa.
Sigg - [Mostrando a imagem da obra "Untitled", 1997, de Zeng Fanzhi] Esse é um pintor que, nos últimos anos, ficou muito popular e também foi muito comprado no mercado. Essa é uma das suas séries mais antigas. Por anos ele pintava figuras com uma máscara. Sua idéia é que cada ser humano cobre suas emoções verdadeiras, seus sentimentos reais por trás da máscara. Ele usa essa metáfora em todas as suas pinturas. É um trabalho feito com bastante habilidade.
Hug - O segundo tema, a vida urbana, o drama urbano [Mostrando imagem da obra "Siyuanqiao", de Chen Wenbo]. Chen Wenbo, com essa imagem bastante sóbria, bastante inóspita da metrópole chinesa - como sabemos, as cidades chinesas estão entre as mais não só poluídas, mas também do ponto de vista do convívio humano talvez mais problemáticas -, dessa frieza... O isolamento é bem representado nesse trabalho de Li Chen Wenbo. Li Dafang, o mesmo autor do retrato do jovem, ele tem três obras na mostra, com paisagens urbanas. [Agora mostrando imagens das obras "Céu", de 2005 e "Tiananmen Square", 2003, de Yin Zhaoyang] E a Praça da Paz Celestial. Talvez um dos trabalhos mais espetaculares da mostra, que foi o lugar do massacre de 1989, como é conhecido. Esse quadro não trata tanto do massacre, mas é, eu diria, uma situação de hoje. Talvez uma festa de fim de ano. E também o anonimato da grande metrópole. [Agora mostrando imagem da obra "Parlamento", 2002, de Miao Xiaochun] É bom observar o auto-retrato do artista aqui nessa sala, nesse teatro, em estilo de Confúcio, talvez de 3.000 anos atrás. Esse artista [mostrando a obra "Restaurante", de 2001] está bem aqui no restaurante, sentado, no meio da multidão. A arte chinesa, talvez seja a arte que melhor domina a relação com o passado. Tem várias obras na mostra onde o artista contemporâneo busca as raízes da cultura chinesa. Esse é apenas um exemplo. Muito difícil a arte contemporânea no Brasil ou na Europa lidar com temas históricos. A liteira chinesa [mostrando a obra "Evangelho - boatos", 2002, de Liu Wei] é uma peça tradicional, liteira de noiva, combinado com esses os confessionários, contruídos pelo artista. Claro uma alusão ao assunto religioso, que não está resolvido na China. Lembramos apenas da controvérsia entre o Vaticano e a China, porque o governo chinês nomeou dois bispos que o Vaticano não reconhece. Ah, outro assunto aqui são os rumores da sociedade, porque o artista faz uma performance em que uma frase é passada de um a um até o final, como o "telefone sem fio", aqui no Brasil. Uli Sigg, as cidades chinesas são dominadas pelos rumores? Como é isso?
Sigg - Talvez seja melhor eu dar uma explicação inicial, e você tenha uma melhor depois. No contexto chinês esse trabalho trata-se de informação. Sabemos que, na China, há uma falta de transparência, falta de informação para o público. E, se não há informação, os rumores tomam conta. O que, no fim, não é mais produtivo do que a transparência, mas é uma lição que vem apenas com o tempo para todos os governos desse mundo. E essa obra manda uma mensagem falada que, na medida em que chega ao fim, está completamente distorcida. Isso é o que o artista quer nos dizer.
Hug - "Temptation", a "A Tentação", de Li Zhanyang. O Buda teve que passar por várias provas durante o caminho da perfeição. Existe aqui uma mescla curiosa entre a arte popular chinesa e talvez uma certa influência da pop art americana. A pop art americana teve um impacto na China como se vê em várias obras. Outros comparam essa escultura com Jeff Koons, e quem não gosta de Jeff Koons não vai gostar dessa escultura... Agora as paisagens. Na China há muito pouca arte abstrata. [mostrando as telas sem título, de 1992] Então, essas duas telas de Qiu Shihua, na última sala, não são pinturas abstratas. Até parece à primeira vista. Exige uma certa paciência, uma certa atenção do visitante. Uma posição lateral ajuda, e um certo ângulo para revelar uma paisagem marítima, e, na outra tela, uma paisagem com bosques e colinas.
Sigg - Essa é uma pintura interessante e meio que representa uma interface entre a arte chinesa e a arte ocidental. Ocidente no sentido de que é a maior pintura minimalista que se poderia pintar. Então, ela força um extremo. Exige um certo tempo, mas espero que vocês usem esse tempo. Talvez dois ou três minutos. Você tem que se localizar na pintura a partir de um determinado ângulo, quase paralelo. Uma vez que você ache, você verá quase uma foto, no fim. E você não vai entender por que você não viu a pintura no início. Mas é também chinesa no sentido de que é uma pintura "meditativa". Mas usa a perspectiva ocidental. Há várias histórias complicadas a respeito dessa pintura, mas ela nos diz muito sobre tempo e percepção porque a imagem é constituída lentamente na cabeça.
Hug - Nosso destaque na rotunda. O "Grão de Areia" (2003), de Lu Hao, que tem uma imagem projetada 500 vezes ampliada. A peça original tem meio centímetro. É uma obra encomendada pelo artista. Não é o artista quem produz a peça, mas sim artesãos de uma cidadezinha do interior da China. Você pode encomendar qualquer texto que eles vão escrever em miniatura, com a ajuda de uma lupa. Inclusive, antigamente, o sistema de miniatura foi usado para transmissão de mensagens pelos imperadores, através das linhas inimigas. Existe na Suíça - infelizmente não é do Uli Sigg - uma peça que é um cabelo humano, que também foi usado como suporte para pintar mensagem em cima. Aqui se trata de um recorte de jornal, que o artista achou e passou para um artesão. São 125 caracteres contando a história de um imigrante, de um trabalhador rural, que deixa a cidadezinha do interior - é quase uma história brasileira - e que vai buscar emprego na cidade grande. E aqui, com a lupa, acho que todo o mundo já olhou... É só seguir a rampa. É um caminho completo, em espiral. Bom, todo o mundo comenta o sucesso comercial dos artistas chineses. É um assunto que também os jornalistas costumam perguntar. Li Songsong, como é a sua relação com as galerias e o mercado. Como você explica o sucesso, o sucesso repentino e como você lida com ele?
Songsong - Não é muito fácil explicar o processo, porque no dia que eu decidi ser artista não pensava que eu conseguiria ganhar muito dinheiro com esse trabalho. Eu só queria ser um artista. Ter a vida de artista com a qual eu sentia mais liberdade de espírito e satisfeito. Só em 2003 e 2004 comecei a vender meus trabalhos com mais freqüência. Então, agora, isso significa que posso guiar minha totalmente pelo meu trabalho. Eu acho que para um artista isso é muito bom, significa que suas idéias e seus trabalhos foram aceitos pela sociedade. Acho que é importante crescer como artista. Mas, outra coisa que gostaria de dizer é que na China há muitos exemplos de artistas que têm sucesso por um curto período de tempo e começam a repetir seus trabalhos, como um gravador. Acho que não seja um bom caminho para o artista. Portanto, o sucesso comercial pode ajudar o artista, mas, às vezes, pode "ferir".
Hug - E o colecionador, como vê o desenvolvimento comercial, das galerias, da explosão dos preços?
Sigg - Seria uma longa história para contar. Mas, por muito tempo, até quase o ano 2000, o sistema operacional de arte, como conhecemos em outras partes do mundo, não existia na China. Era possível contar em apenas uma das mãos a quantidade de galerias em Pequim e Xangai que mostravam e tentavam vender arte contemporânea. Os artistas, sob o ponto de vista deles, também não entendiam, necessariamente, o papel da galeria de arte porque a galeria não tinha condições de fazer exposições de muitos artistas porque os trabalhos não podiam ser exibidos, não se podiam fazer catálogos para o artista. Então, o artista pensava: "por que eu devo pagar uma comissão para uma galeria vender meu trabalho se ela não faz nada por mim?". Assim, muitos desses artistas vendiam diretamente para os compradores. Apenas em, talvez, 2000, a situação começou a se ordenar. O que se pode falar sobre preços? Colecionadores chineses não existiam até mais ou menos o ano 2000. E isso foi quando colecionadores chineses começaram a demonstrar interesse, mas, basicamente, em pinturas, esculturas. Não em fotografias, instalações ou vídeo e afins. Acho que isso é normal, o mercado precisa amadurecer. Nesse período, sofisticados colecionadores internacionais ficaram interessados em arte chinesa. Foram muitas razões... Eles estão sempre procurando por "carne nova", por assim dizer, e, também, havia uma ampla produção chinesa e, também, houve algumas exposições internacionais como em 1999 que, pela primeira vez apresentou a arte chinesa para o público internacional. Todo esse interesse repentino por arte chinesa apareceu para o mundo. E, agora, todo esse interesse repentino tornou-se um jogo entre os especuladores. Na China, é possível vermos muitos compradores, preferimos chamá-los de compradores, que estão interessados em fazer compras rápidas, vendas rápidas, lucros rápidos. Vemos trabalhos voltando ao mercado em menos de um ano em leilões - são mais de 100 casas de leilão na China. Os compradores chineses confiam mais nos leilões do que nos galeristas, porque eles acham que no leilão o preço foi estabelecido publicamente e, na galeria, eles não sabem o que vão dizer ao próximo cliente. Ao mesmo tempo vemos muito um novo comércio do mercado chinês para o mundo ocidental. A Sotherby's fez, pela primeira vez, um leilão exclusivo de arte chinesa, em Nova York, em abril de 2006, e me disseram que mais de 50% dos compradores eram norte-americanos, talvez, 8% a 10% de chineses e 8% a 10% de Taiwan, e mais de 100 especuladores que eles nunca tinham visto num leilão antes, mas que surgiram nesse peculiar leilão chinês. Vemos muito frenesi no momento.
Hug - Agora eu vou abrir para a platéia.
Pessoa da platéia1 - Eu tenho uma pergunta para fazer para o artista e para o senhor curador. Para o artista, em que cidade ele vive e, se ele acha que a juventude chinesa está efetivamente retratada naquela pintura.
Songsong - Obrigado pelas suas perguntas. Primeiro, eu moro em Pequim. É a minha cidade. Sobre a segunda pergunta a respeito da figura do jovem. Eu conheci muitas pessoas com esse perfil na minha vida, nos restaurantes. Eu acho que é um pouco ruim, mas não como um todo. Pela minha experiência, esse tipo de gente costuma vir do interior. É um estilo bastante representativo das pessoas do interior. Eles saem do interior e vão trabalhar nas grandes cidades, então querem parecer jovens modernos, não querem parecer que vieram do interior. Eles esperam mudar o visual triste.
Pessoa da platéia 1 - Para o senhor curador. O senhor citou o 04 de maio de 1919. O senhor acha que, de alguma forma, a China vive hoje um 04 de maio?
Hug - Não. O que a China vice hoje é uma inserção do mundo globalizado, do ponto de vista político, econômico... cultural menos... Embora a China tenha lançado 100 sucursais do Instituto Confúcio, que promove o ensino do idioma chinês no mundo todo. Não sei se no Brasil já tem. E também um dos motivos pelo qual optamos - o Marcelo [Mendonça] também optou por essa mostra - foi a aproximação que ocorre entre Brasil e China em vários níveis. O presidente Lula foi lá várias vezes. Levou, inclusive a arte plumária brasileira a Pequim, à Cidade Proibida. Acho que foi em 2003. Sem falar da agricultura. Não sou especialista em agricultura. São dois grandes protagonistas, não é? Fora dos eixos tradicionais que são a Europa e o Atlântico Norte. Tem tudo a ver com essa mostra neste momento e o interesse é que o país desperta no mundo todo.
Pessoa da Platéia 2 - Eu queria perguntar ao artista se ele já viu alguma coisa de arte brasileira, em museus, galerias, e se ele acha que essa viagem ao Brasil vai influenciar alguma coisa em sua arte.
Songsong - Essa é minha primeira viagem ao Brasil e estou muito contente em vir a um país tão bonito. É lamentável, mas não tenho muito conhecimento sobre a arte brasileira. Anteontem visitei o Museu de Arte Moderna [MAM], aqui no Rio, e vimos a exposição sobre a coleção privada de Chateaubriand. Vi trabalhos tão diferentes na pintura, fotografia, escultura. Fiquei impressionado, mas não poderia julgar porque sei muito pouco. Mas me ficou uma impressão curiosa, interessante.
Hug - A China hoje possui uma bienal importante, que é a Bienal de Xangai, que teve a sua quarta edição, no ano passado, e teve, acho que na terceira edição, a participação de Maurício Dias e Walter Riedweg. A presença brasileira, aliás, a presença estrangeira em geral, ainda é tímida na China. E, mesmo os artistas alemães têm certas dificuldades, até porque os espaços não são facilmente acessíveis. Às vezes você tem que alugar e pagar pelo espaço para poder expor. Anna Bella Geiger expôs, com Fernando Cocchiarale, acho que em 2003, numa galeria particular.
Pessoa da platéia 3 - Você disse, em algum momento, que não existe arte abstrata na China, em termos contemporâneos, a não ser quando você lida com ideogramas, com a arte tradicional. Mas, em alguns quadros, particularmente com os do Li Songsong, eu notei que a imagem, a definição da imagem, está começando a diminuir. No quadro da Praça da Paz Celestial também... Dá até uma vertigem quando você vê o quadro lá na exposição. Isso seria um indício de que a arte abstrata está se aproximando? Seria um estágio posterior de evolução ou de percurso da arte chinesa, como aconteceu no mundo ocidental? Eu não sei para quem eu deveria fazer essa pergunta...
Hug - Para o artista mesmo.
Songsong - No meu ponto de vista, acho que alguns conceitos como pintura abstrata ou pintura expressionista pertencem à história da arte. Então, acho que hoje, o que faço... É claro que parece pintura realista, é fácil de achar a figura porque todas as minhas pinturas partem de uma foto, e a gente pode usar a mídia. A idéia não é mostrar essas figuras e suas histórias novamente, mas sim mostrar uma nova maneira de pintar. Talvez, dessa forma, podemos achar algumas partes com as quais se pode fazer uma relação entre pintura abstrata antes. Mas, na minha opinião, não é sobre arte abstrata.
Sigg - Durante o período revolucionário e da contracultura, arte abstrata não era permitida. Naquela época, era considerada uma "formalidade imperialista", sem nenhum valor para educar as massas. E decadente. O segundo aspecto, quanto à educação, ela é baseada no modelo soviético de pintura realista. Portanto, durante o processo educacional não havia ensinamento sobre a arte abstrata ou história da arte ocidental que cobrisse esse período. Também não só não havia tradição em arte abstrata, mas também acho que não havia uma associação próxima do pensamento chinês, que é muito mais figurativo, concreto, do que conceitual.
Hug - Essas duas telas que acabei de mostrar são dos anos 1970 [Mostra telas chinesas, que não estão na mostra]. Na Rússia houve, em meados do século XIX um pintor clássico, que se chama Ilya Repin, e um famoso quadro dele que se chama "Os Barqueiros do Volga". São camponeses empurrando o barco. Essa é uma clara influência do realismo russo, só que 100 anos depois, com um atraso de 100 anos, 1970. Uma coisa impressionante. Parece que na Coréia do Norte, onde Uli também foi embaixador e colecionador, ainda prevalece essa tendência, que é totalmente impossível no resto do mundo.
Pessoa da Platéia 4 - Em 1956, a escultora surrealista brasileira Maria Martins vai à China, faz uma longa viagem e escreve um livro em que ela apresenta para os brasileiros a China comunista. Ela tem uma conversa com o Mao. E, nesse livro, ela se dedica um pouco à questão da arte chinesa. E uma das perguntas que ela coloca, não com essas palavras que vou dizer aqui, é se não haveria no futuro, em 30 anos, uma saturação desse realismo, uma saturação desse realismo socialista, o que iria acontecer com a tradição escultórica chinesa, na medida em que seria tudo muito baseado na figuração, embora, fosse ela mesma, da própria figuração. A minha pergunta era basicamente o que o rapaz perguntou agora há pouco. Eu gostaria de saber o seguinte: se as escolas chinesas hoje ensinam essa tradição da arte ocidental. Pergunta dois: existe uma discussão dentro desse incipiente circuito de arte chinesa sobre qual vai ser o caminho? Existem estudos teóricos? As pessoas estão se preocupando em formalizar um pensamento a respeito dessa arte chinesa que está sendo produzida agora? E a terceira pergunta, que para o artista. Eu percebi, na pintura dele, algo novo. Uma mistura de muitas tradições ali, mas tentando chegar a alguma coisa. Mas, ao mesmo tempo, na hora em que vi o quadro do artista que agora sei que é o professor dele comentei com uma repórter: é uma mesma escola? Então, me parece, que as coisas ali estão confusas mesmo. É uma busca de uma suposta identidade. Então, o que eu queria perguntar pra ele é o seguinte: ele vê isso em muitas pessoas, essa busca da identidade nova, ou isso é, no momento - que não dá pra saber pelo recorte da coleção -, restrito a poucos artistas?
Sigg - Eu vou dizer algo a respeito da primeira parte sobre a sua declaração, sobre o fim do realismo socialista. Ela fez essa previsão de que em 30 anos, a partir de 1956, aconteceria. De fato, aconteceu em 1976. No momento em que Mao morreu, uma nova situação emergiu na China. Deng Xiaoping declarou uma política de abertura em 1978. Naquele momento, todos os pôsteres desapareceram. Todas as pinturas desapareceram. Eu me lembro que na estação de Pequim havia enormes muros pintados com motivos realismo socialista. Era tudo coberto. Nas fábricas, tínhamos pinturas do período do realismo socialista como meio de instruir as pessoas. Isso tudo veio abaixo. Realismo socialista foi mesmo abolido naquela época. Mas não a pintura figurativa, que persiste até os dias de hoje.
Hug - Ela também perguntou se há estudos teóricos sobre arte chinesa.
Sigg - Há uma discussão intensa na China acontecendo. Na minha opinião, não tem sido muito estimulante para mim porque tem a ver com questões pós-coloniais, centro e periferia. Também, os críticos acabam sempre fazendo declarações ideológicas. E apenas uma pequena parte dos artigos fala sobre os trabalhos. Mas isso está mudando. Os críticos têm mais conhecimento, estão mais informados sobre o que anda acontecendo no mundo fora da China. Mas, eu acho que eles encaram o mesmo problema quando nós nos deparamos olhando a arte chinesa: nós, talvez, olhamos com um olhar ocidental, a partir de uma educação ocidental, e com uma falta de conhecimento sobre o contexto chinês. E eles olham para a nossa arte, exatamente, espelhando a mesma situação, com uma ausência de conteúdo sobre o nosso contexto. Portanto, sim, eles sabem, hoje, o raso, eles sabem a respeito dos trabalhos atuais. Mas, eles podem não saber exatamente o que está por trás desses trabalhos e eles podem interpretar mal o que vêem. Claro que isso pode levar a um mal-entendido frutífero, que, no fim das contas, tudo pode se tornar mais interessante do que o que realmente acontece. Mas, a mesma coisa que acontece com eles, acontece conosco.
Songsong - Para um artista, é importante achar uma identidade. Quando comecei meu trabalho, depois que me formei na faculdade, passei por um período difícil. Não que eu não tivesse ainda encontrado uma identidade para mim, mas eu não sabia como ser artista, não sabia usar esse conceito. Acho que o trabalho artístico está na superfície. Identidade é apenas o que procuramos na superfície. Mas deveríamos procurar algo que esteja por trás dessa superfície, da superfície da pintura. Isso é que é importante. Para um artista, se você olha por trás do trabalho artístico, então, identidade não será um grande problema.
Hug - Há influência ocidental nas escolas?
Songsong - Muita influência. Temos que ler e ver muita informação de todos os lugares.
Hug - O catálogo tem dois textos muito bons nesse sentido de Li Xianting e de Ai Weiwei. Ai Weiwei é artista plástico, e Li Xianting é um dos maiores críticos sobre essa questão da identidade.
Pessoa da platéia 5 - Existem cafés onde os pintores se reúnem. Existe um intercâmbio entre os pintores da nova geração?
Songsong - Hoje, a maior parte dos artistas se muda para as grandes cidades. É complicado para um artista contemporâneo viver fora dos grandes centros urbanos. Muitos se juntam, vivem juntos, se encontram - e não necessariamente falam de arte quando se encontram -, mas socializam. Acho que deve ser bastante parecido com o que acontece aqui, no Rio.
Hug - Acho que podemos encerrar. Muito obrigado. Convido os amigos a verem a exposição. Mais uma vez, obrigado ao CCBB essa oportunidade de trazer o melhor da arte chinesa. Boa noite.