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janeiro 23, 2006

Arthur Omar, de rosto inteiro, por Cyril Béghin

olhos.jpg

Arthur Omar, de rosto inteiro

Artigo de Cyril Béghin, originalmente publicado nos Cahiers du Cinema nº 606, de novembro de 2005, traduzido por Joanne Martins

35 retratos do cineasta e artista brasileiro são expostos em Arles

Nos Rencontre d'Arles, neste verão, foram poucos a praticar a foto-gnose. A fotografia, sim: havia cenas de atualidades jornalísticas (o Oriente Médio por to-da parte); Jogos de signos, exagerados ou discretos, em belas paisagens desér-ticas ou aplicados sobre ilusões vivas de carnes; sutis desvios de comportamento como tremores na superfície sempre já muito lisas das imagens aproximando pa-radoxalmente, alem das salas retratos dissolvidos de uma jovem atriz encontra-dos na internet ampliados e digitalmente perfeitos (Kristleifur Bjornsson), de uma bela serie de retratos de Talibans afeminados e glamourizados pelo uso da cor ( Thomas Dworzak, com coletivo Off Broadway). Memórias intimas, traços de a-contecimentos sobre corpos ou territórios, objetos simbólicos serializados e/ou desviados, e feitos digitais tão perfeitamente integrados que ai se produzem es-tranhas dissonância, a fotografia parece tomada por impasses sempiternos. As obras eram belas porém deixaram todas um tédio sentimento de coisas vãs, en-tre abstrações elegantes e quadro de massacre distanciados - dos quais um dos premiados, o inglês Simon Norfolk, oferecia uma imagem emblemática com a superfície gelada da água recobrindo um ossuário na Bósnia onde percebemos, imobilizada, uma ínfima e bem vermelha gota de sangue.

A foto-gnose diria, mais ou menos, que a imagem, mais do que se afixar nas costas da figura, com fios grossos ou não, os eternos penduricalhos da sua signi-ficação sócio-histórica, deve, antes de mais nada, se liberar delas para aceder enfim a um conhecimento novo e diferente. O cineasta, vídeasta, performático, e fotógrafo brasileiro Arthur Omar, inventor e fervoroso praticante desse método ilustrava-o em Arles com uma arrasadora serie de 35 retratos em preto e braço, extraídos das cercas de 300 imagens da sua grande obra, Antropologia da Face Gloriosa. Desde 1973, ate hoje Omar fotografa os participantes de diversos car-navais brasileiros - as imagens de carnaval estando aliás num grande número de suas obras, de sua espantosa reciclagem que vai desde o soberbo longa-metragem Triste Tropico realizado em 1974 ate os seus vídeos mais recentes.

Ampliadas, re-enquadradas, trabalhadas minuciosamente ao nível de suas luzes e matérias, essas fotografias são abstraídas de seus contextos e concentradas sobre a força única de um rosto apreendido cegamente por pura comunicação estática do fotógrafo e seu objeto, num instante de um transe: grito, risos, es-panto ou fadiga extrema, algo como uma saída de si. Ocupando o quadro intei-ro, os rostos atormentam a imagem na tempestade das suas confusões: sexo, idades, cores, sentimentos, os signos são ao mesmo tempo exacerbados e con-fusos, cada retrato apresentado uma encarnação intermediaria, inédita e sobera-na, de estados geralmente separados.

"Foto-gnose" é assim, na prosa sempre rica e borbulhante de Omar, o nome de um conhecimento, pela fotografia, de uma espécie de fundamento humano ante-rior a grande divisão do signo. Os corpos "gloriosos" são essa massa ou pasta pré-social (ante-social) fervilhante, e poderosa, que o Carnaval reativa à maneira de um vasto estúdio onde as imagens se oferecem disponíveis ao fotógrafo, ele mesmo em busca do seu próprio instante glorioso: "Foto-gnose: não como quem lembra do momento em que se assoprou a vela do aniversário [...] mas, se fosse possível de ativar a memória aqui, lembrarmos do momento onde, por um instante, nos também fomos gloriosos."

Palmas para a pequena maldade curatorial que colocou os retratos-falados de Leandro Berra, frios, anônimos e mecânicos, justapostos às faces gloriosas, no salão de exposições em Arles. Nada disso se encontrará em Omar, onde a ima-gem cria a cada instante um novo ser: maquiagens, máscaras, véus, suores, im-perfeições da pele, a superfície das carnes e o que as cobrem se misturam em pesadas tempestades patéticas e desfigurantes. Em ampliações fotográficas magníficas, os sais de prata parecem soprados, esbatidos e pulverizados pela ação do rosto em si mesmo: as peles se descamam, partem-se em retalhos de luminescências e crepitações em volta dos olhos e das bocas sempre abertas ou distendidas, pronta a aspirar a sua própria matéria para em seguida voltar a ex-pelí-las numa chuva cinzenta ou arrebanhá-la numa zona de negro absoluto, nas bochechas infladas, sobre olhos encarquilhados. Assim tramados e deslocados em detalhes os traços e os acessórios do rosto, sejam eles feitos de tintas, ócu-los, colares, perucas ou chapéus extravagantes, espocam nesse caos não mais vulto de pessoas mas semi-deuses. Estes retratos fora de escala, de uma energia louca e delirante, criam um panteão de metamorfoses - eis que enfim a fotogra-fia reencontra a sua função esotérica, para mostrar de nossos corpos aquilo que é maior que eles.

Arthur Omar constrói, com a foto-gnose, uma espécie de ficção teórica: o apare-lho fotográfico "sabe" captar o instante glorioso porque este é imediatamente fotográfico, fora do tempo ou num tempo imobilizado que brota por vezes sob fluxo dos movimentos; a metamorfose descoberta sobre as imagens não é o momento de um tornar-se, mas uma potência sempre presente que pulsa na su-perfície dos corpos sob a ação do disparador da câmera, numa tensão erótica do fotógrafo para seu objeto. E para conservar claramente o estado assim captura-do, é preciso ao mesmo tempo a operação plástica do re-enquadramento da ampliação, dos jogos da matéria, e a operação semântica da atribuição de uma frase, acompanhando cada foto à maneira de um titulo mas cuja a primeira fun-ção é na verdade aquela de uma formula mágica, acelerando na imagem o efeito da metamorfose e a fascinação de um toque de humor ou de delírio. Tratados naquilo que Omar chama de estilo "épico-kitsch", estes títulos se assemelham a uma escrita automática que condensaria, como no sonho, as qualidades das i-magens em micro-roteiros, "O Príncipe Ainda Respira", "O Mandarim da Ambi-güidade Entre o Ouro e a Carne", "Santa Porque Avalanche", "Retire o Centro e Terás Um Universo", "O Oftalmologista da Divina Luz" ... Reconcentrada sobre o mistério de sua formula, cada foto se olha então como o emblema do semi-deus, não seu retrato, mas a imagem do poder ou do atributo que sustenta a tempes-tade do seu rosto: sopros, brilhos dourados, o branco de neve, gravitação.

"Santa Teresa d'Ávila (especialista em faces gloriosas), compara a alma humana a um castelo interior, feito de diamante, e compostos de diversos aposentos ou moradas. Na passagem de uma morada a outra, avançamos um grau no sentido da perfeição cada vez maior. Mas o que seria de um castelo sem uma galeria de retratos? " Omar coloca a questão e oferece ao castelo-Brasil sua coleção de brasões místicos - como Glauber Rocha havia multiplicado e desdobrado os "Cris-to do Terceiro Mundo" no A Idade da Terra, ele gera e multiplica uma miríade de santos materialistas, profetas, anjos, demônios instantâneos e sem rumo, que representam o seu papel de maneira cômica e sublime com os clichês dos sincre-tismos e messianismos brasileiros.

O grande arrebatamento da Antropologia da Face Gloriosa é pois duplamente critico: abalar aqui mesmo os códigos do retrato e da pesquisa etnográfica, in-verte ou subverter a imagem documental ate atingir a mais inverossímil e espa-lhafatosa ficção, é aqui afirmar o caráter sempre vivo e impetuoso de um gênio nacional que nenhuma analise poderia reduzir. É assim deixar um espectador a-turdido diante desse panteão magnífico que queima como brasa viva, estes ros-tos que giram em todos os sentidos, por vezes enlouquecidos de não saberem onde estão. A foto-gnose mostra os rostos gloriosos mas não o seu castelo, Bra-sil fantasmático que eles talvez tenham perdido para sempre.

NOTA: Ver também o livro de 160 fotos da serie, também com alguns textos de Arthur Omar em inglês: Antropologia da Face Gloriosa, Rio de Janeiro, Ed. CosacNaify, 1997.

Posted by João Domingues at 12:23 PM