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dezembro 8, 2005
Experimentos de um olhar generoso, por Luiz Camillo Osorio
Experimentos de um olhar generoso
Matéria de Luiz Camillo Osório, originalmente publicada no Caderno Prosa e Verso do Jornal O Globo, no dia 2 de dezembro de 2005
O livro "Brasil experimental", de Guy Brett, celebra 30 anos de convivência deste notável crítico inglês com a arte brasileira. Convivência que foi sendo alimentada à distância, mas que adquiriu intimidade incomum. Tudo começou em 1964, quando foi apresentado ao escultor Sérgio Camargo em Paris e, através dele, ouviu falar de Lygia Clark, Hélio Oiticica e Mira Schendel. No ano seguinte, vem ao Brasil cobrir a Bienal de São Paulo para o jornal inglês "The Times". Nessa ocasião trava contato com aqueles artistas e organiza exposições na Galeria Signals de Londres. No caso de Oiticica, todavia, a exposição só ocorreria em 1969, na Galeria Whitechapel. Nesse momento escreve seu primeiro ensaio de fôlego sobre Oiticica, já demonstrando o entusiasmo e a generosidade que o acompanhariam ao longo do seu diálogo com a arte brasileira. Anos depois, em outro artigo sobre o artista, ele afirmaria que a exposição na Whitechapel fora "um dos mais audaciosos eventos de artes visuais dos anos 1960 e 1970 em Londres".
Leque de artistas analisados é amplo e variado
Uma aguda intuição crítica aliada a uma vivência reflexiva junto às obras perpassa os 21 ensaios contidos no livro. Além de Oiticica e Clark, Guy Brett analisa as obras de Sérgio Camargo, Mira Schendel, Lygia Pape, Antonio Manuel, Cildo Meireles, Tunga, Waltércio Caldas, Regina Vater e Roberto Evangelista, Maria Thereza Alves, Jac Leirner, Ricardo Basbaum e Sonia Lins. Como se vê, o leque de artistas analisados pelo crítico é amplo e variado, alguns com grande visibilidade internacional e outros com carreiras menos disseminadas, como é o caso de Maria Theresa Alves e Sonia Lins. Esta última, irmã de Lygia Clark, falecida recentemente, teve carreira tardia e, infelizmente, ainda pouco conhecida.
Sobressai nesses ensaios a articulação do fazer experimental das obras com as singularidades de nossa constituição cultural. O olhar do autor não é pautado por uma sociologia que só vê constrangimentos em nossa precariedade institucional, nem se deixa influenciar por qualquer tipo de nacionalismo tardio ou de excentricidade a-histórica que estetiza as mazelas de nosso subdesenvolvimento. A condição experimental da arte brasileira remete, sem justificá-la, à inadequação de nossas instituições, ao desregramento de nossos vínculos sociais.
Não se trata de valorizar a precariedade, mas de perceber que as idéias e os lugares se processam conjuntamente. Sem espaço nos museus, a obra de Oiticica criou para si formas alternativas de disseminação poética. Hoje, ironicamente, ela é cobiçada pelos principais museus do mundo. Esta contradição é um desafio para a reflexão crítica e para as formas de recepção da arte na atualidade.
Um ponto importante, presente em vários ensaios, é a discussão do legado da arte experimental na produção contemporânea. O subtítulo do livro deve ser destacado: "Arte/vida: proposições e paradoxos". A barra separando-ligando arte e vida aponta para as promessas e riscos de dissolução da arte na vida. Por um lado, isso implicaria o fim da arte. Por outro, apontaria para a necessidade de se trazer a vida para dentro da experiência artística, transformando-a em um espaço experimental onde se forjariam novas possibilidades de ser no mundo. Como observou o autor, "Hélio (Oiticica) sempre se sentiu atraído pela idéia de Mondrian de que, algum dia, a arte se dissolveria na vida. Não seria 'nem o mural, nem a arte aplicada', como escreveu em 1961, mas 'algo expressivo', que seria como a beleza da vida, algo que não podia definir pois 'ainda não existia'".
Fazer artístico hoje é menos inflacionado de utopias
A dificuldade de se discutir essa produção experimental é inerente à maneira como ela rompe com as expectativas do que seja arte. As reviravoltas do conceito de arte e de suas formas de criar sentido reverberam no modo de pensá-la. Isso interfere na escrita da crítica, que assume um caráter mais exploratório e menos explicativo. Em sua análise da exposição de Oiticica na Whitechapel, por exemplo, Guy Brett afirma que não havia ali "nada a ser decifrado. O valor de um trabalho como esse não é provado pela referência a alguma interpretação externa. Como em jogos ou rituais, nós os trazemos à existência ao nos envolvermos com eles, ou seja, só são eficazes à medida que realmente participamos deles".
O interessante é vermos que as possibilidades de sentido não pertencem exclusivamente às obras, mas às relações que se estabelecem a partir delas. Discutindo o trabalho de Lygia Clark, ele volta ao mesmo ponto, citando Lula Wanderley: "A comunicação que o 'Objeto Relacional' estabelece com o corpo não é feita pela delineação sensorial da forma, uma qualidade da superfície, mas sim por algo vago vivido pelo corpo que dissolve a noção de superfície e faz com que o objeto encontre significado em um dentro imaginário do corpo".
Interessante observar que a articulação arte/vida não se dá apenas do ponto de vista de "obras experimentais" que apostam na participação do espectador. Segundo o autor, isso também deve ser discutido em obras mais "tradicionais" como as esculturas e relevos de Sérgio Camargo, onde a dinâmica da forma produz campos de energia plástica que redefinem nossa percepção e relação com os materiais e com o espaço. "Para mim, assim como o uso de materiais era para Lygia e Hélio uma forma de revelar o corpo, para Sérgio era um modo de revelar a matéria". Percebe-se que se trata de um crítico com sensibilidade aberta às várias possibilidades de sentido propostas pelas obras, sejam elas de ordem ideológica, formal ou conceitual.
A atualidade do legado experimental ganha força na sua discussão da obra de Ricardo Basbaum. O fazer artístico hoje é menos inflacionado de utopias e mais consciente do lugar problemático, mas inevitável, do circuito institucional. Guy Brett faz uma análise comparativa bastante interessante desses diferentes contextos. "Nos anos 1960, Lygia Clark podia falar, sem aparentar loucura, de artistas se unindo em uma tentativa de liberar a criatividade geral de todos, sem quaisquer limites psicológicos ou sociais. Parecia possível que uma transformação social revolucionária se combinasse com emancipação cultural (...) Mais recentemente, esses tipos de preocupação foram muito afetados por uma consciência crítica que investigou os processos socioculturais da produção de significado (...) Em vez de polarizar essas duas posições, poderíamos recorrer a uma visão social mais ampla e de longo prazo, e dizer que ambas foram expressões no campo da micropolítica, estratégias civilizacionais, impulsos emancipadores, poéticos, terapêuticos e críticos, interpretados por meio de relações íntimas, de pessoa para pessoa. As estratégias dos que não têm acesso ao poder".
Papel da arte é persistir e apostar na complexidade
O ocaso das utopias não deve ser tomado como despolitização da arte, sua cooptação cínica à lógica estrita do mercado. O interesse destes ensaios é justamente mostrar novas formas de a arte resistir ao rebaixamento de suas expectativas de transformação da realidade. Não cabe à arte oferecer soluções, mas persistir e apostar na complexidade.
Uma última coisa a ser dita é a maneira arejada com que Guy Brett aborda a questão espinhosa da brasilidade. Não há ranços nacionalistas, fascínio pelo exótico nem tampouco submissão temática do processo de formalização das obras. Com extrema cautela e atenção crítica, o autor aponta para a capacidade singular de a arte brasileira aliar o rigor da tradição moderna a uma energia criativa derivada da hibridização cultural. As especificidades de nossa formação podem não ser um estorvo, mas uma possível diferença que qualifica a inserção da arte brasileira no mundo globalizado. Um livro imprescindível não só para os interessados em arte, mas para os estudos de cultura brasileira.
O artigo de Luiz Camillo Osório sobre a contribuição do crítico inglês Guy Brett para a arte Brasileira é ainda mais notável quando lido em contraste com um artigo pessimista de Barry Gewen que saiu no New York Times no sábado passado, 11 de dezembro de 2005. Gewen lamenta os excessos radicais e a falta de critérios da arte e da crítica contemporânea, escrevendo de um ponto de vista supostamente international, mas que no fundo é centrado na crítica novaiorquina, com sabor de saudosismo e puritanismo estético. A crítica inteligente e informada de Buy Brett sobre a vanguarda brasileira (que foi fundamental pra o meu entendimento da arte contemporânea num contexto internacional mais amplo) é uma rara contribuição de qualidade e profundidade, não só para o Brasil mas para a arte contemporânea em múltiplas latitudes. E embora o Brasil esteja na moda em várias capitais (vide a exposição atual Tropicália no museu de arte contemporânea de Chicago e o festival @rt Outsiders em Paris) ainda pouco se sabe de como e por quais caminhos nossas vanguardas se desenvolveram. Camillo Osório e Guy Brett, com sensibilidade incomum, nos ajudam a ver e articular esse rico veio experimental.
Posted by: Simone Osthoff at dezembro 15, 2005 1:02 AM