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novembro 7, 2005
Osmar Pinheiro: pinturas 2005 - Teoremas e fabulações do espaço pictórico, por Virginia Aita
Texto produzido para a exposição de Osmar Pinheiro na Galeria Virgilio, de 11 de novembro a 3 de dezembro 2005
Osmar Pinheiro: pinturas 2005 - Teoremas e fabulações do espaço pictórico
VIRGINIA AITA
"Visto que não há nada como correção e verdade absolutas, nós sempre buscamos o artifício/artificial, que conduz à verdade humana" Gerhardt Richter ("Notes, 1962". Daily Practice:15)
Detour. Nessa série de pinturas produzidas entre 2004 e 2005, há um significativo deslocamento de ênfase para uma certa narratividade ou fabulação do espaço pictórico que passa a incorporar fragmentos imagéticos e recortes fotográficos, em que o caráter factício e artificial de imagens arbitrariamente encontradas, ou mesmo compostas, define sua estratégia. Não é tanto invocação da memória impressa, registro documental ou sua carga nostálgica, mas antes a consciência mesma dessas imagens como perda, como um apagamento do real - imagens etéreas que subsistem como vestígio, rastro de uma presença.
Tisseron considera que "Toda a fotografia se apresenta como instantaneidade numa dinâmica artificialmente interrompida, à qual o espectador é chamado a intervir restituindo seu passado e seu futuro. É esta a característica que confere à imagem um estatuto específico de memória". Em outra passagem em que fala do luto e da negação implícitos na imagem fotográfica, insiste, "A fotografia não é mais escolhida como uma representação do desaparecido, mas sim como uma substituição à sua ausência. Ela transforma-se numa verdadeira relíquia". Esse recorte, ou uso peculiar que o artista faz de uma iconografia fotográfica como um dado, imagens readymade, que então vertidas e incorporadas na superfície pictórica transferem-lhe toda a sua carga de sentido, define esse desvio. Pois se a reflexividade da pintura, faz do próprio medium seu contéudo/objeto, a positividade do suporte, do plano, do pigmento, e do gesto nem por isso anula conotações e configurações que carregam de outros códigos e das media circunvizinhas, que aqui transpostos se sobrepõem e interagem numa operação recíproca. O plano absorve, por similaridade, tudo que gravita em sua órbita, como uma transubstanciação no corpo da pintura.
Métrica e Fabulações. Mas é sobretudo a oscilação que esta pintura problematiza, o arco que se estende da apresentação à representação, da planaridade à figura, tensão crítica entre a materialidade do suporte, do quadro como fragmento do espaço infinito, e a ambigüidade do jogo de imagens que acessa a ilusão, extravasando a forma. Isso se acentua no contraponto daquele outro conjunto de pinturas anterior (2003) em que as superfícies metodicamente geradas a partir da justaposição de faixas/listras metalizadas, calculadamente se sobrepõem, mas incidentalmente desbordam e rasuram-se insinuando nesse pequeno des-arranjo novas configurações. Aí uma aparente afinidade construtiva com a arte Op ou Minimal, é cautelosamente subvertida por um expressionismo residual na variação da luminosidade do cinza metálico, desde o branco até ao negro, projetando-se na pele espessa e tátil da encáustica.
Grade/Grid e paisagens. Já nessas últimas pinturas um romantiscismo destilado (Expressionismo analítico) anima esse arranjo instável de planos e imagens em suspensão (Aufhebung). Por vezes o aspecto de reboco exposto, seções de paredes, detalhes de construções, recortes arquitetônicos, fragmentos modulados que se fundem a paisagens incógnitas. É eloqüente o modo como o artista declara nessas telas a materialidade do plano, na diversidade de suas texturas foscas ou translúcidas, na fluidez e densidade do pigmento fundido à cera. A encáustica cria envólucros, películas que reduplicam a superfície e matizam a luminosidade. Acentua o contorno do suporte, enquadra uma superfície/volume. Mas em meio a essa profusão de gestos pictóricos, mais próximos do tátil que da ilusão ótica, a grade/grid subjaz como dispositivo organizador da superfície, mais ou menos regular, declinada em faixas, planos e recortes justapostos. Os cinzas-mate e o efeito de veladuras opalescentes, reforçam uma materialidade áspera apenas tensionada por notas cromáticas. Incidentalmente, contrastam com o contorno de imagens, estas mais vultos que figuras.
Esse duplo aspecto ou ambivalência da pintura apenas desdobra suas próprias contradições. Aqui o mesmo plano, a mesma grade/grid que declarando a autonomia da pintura configura a ordem espaço-temporal, que anunciava "uma vontade de silêncio por parte da arte moderna, sua hostilidade à literatura, à narrativa, ao discurso", visto que a planaridade eliminava as dimensões do real na extensão de uma superfície única, por outro lado, em permanente oscilação, incorpora conteúdos simbólicos, e assim alusão, ilusão, e ficção aderem às superfícies.
A percepção que nos serve de guia não nos dá verdades como a geometria, mas presenças, que enfeixam uma multiplicidade de aspectos, texturas cambiantes. A diversidade de sentidos das relações de espaço e tempo na arte, leva Krauss a concluir que "embora a grade certamente não seja uma história, pois ela é uma estrutura, ainda é uma que permite à contradição existente entre os valores da ciência [materialismo] e aqueles do espiritualismo manter-se na consciência do modernismo, ou antes sua inconsciência, como algo reprimido" . Nesse trabalho de Osmar são as histórias, o portfólio da memória, pulsões e emoções arquivadas que se infiltram, um excesso de sentido que permanece incontido, invocando imagens.
Bricolagem. Essa modulação de superfícies, em justaposição de recortes, sobreposição e deslizamento de camadas, é ao mesmo tempo afirmada e suspensa, deixando entrever imagens que se condensam - fragmentos irreconhecíveis, quase tromp l'oeil. Trazida para o primeiro plano, a superfície estética é concreta, bricolagem de elementos arquiteturais, o plano é tangível, tátil, a obra é primeiro percebida como pura pintura. No entanto, num lapso do olhar a ilusão se infiltra e contamina a forma modelando signos: dessa oscilação que sua pintura se nutre. Sem nunca se resolver numa unidade, nem estrutural nem decorativa, subsiste como agregado, como um todo dissonante. O modo de composição reedita o enquadramento/corte fotográfico, segmenta o espaço contínuo, real numa espécie de retícula, partes de objetos, recortes de paisagens, cenário esquadrinhado. Mimetiza o olhar urbano, fragmentário, cenas em trânsito, fotogramas de um filme.
Contaminação e dissonâncias. A contaminação das diversas media, pela sobreposição de códigos e transposições de sistemas de significações, interlocução reiterada das práticas contemporâneas, parece irrevogável. É nessa espécie de fricção das diversas medias, que a pintura, lado a lado com performances, vídeos, fotografias, earthworks, obras conceituais, etc., produzem o novo cenário em que as relações são antes de comunidade recíproca que de subordinação ou exclusão. Contemporâneo, não mais sujeito às injunções do formalismo abstrato ou matérico, o artista reconhece um "imenso menu" de escolhas artísticas a seu dispor, sabendo transpor sintaxes de um medium a outro. Intelectualmente inquieto, interpela a contemporaneidade, literalmente "tomado" pelas questões críticas e pulsionais que esse cenário desencadeia. Passa pela obra de Sigmar Polke, sua influência Pop na variedade de técnicas e apropriações (não posso deixar de lembrar o quadro "Die Ruine"1994), e Gerhardt Richter pela deliberada e irônica manipulação de estilos e suas fotografias pintadas (readymade fotográficos), suas paisagens românticas diáfanas e suas extravagâncias pictóricas (raspagens e empastos) nas suas pinturas abstratas.
Imagens readymade Como sugere Arthur Danto, talvez a atitude mais característica da arte contemporânea, pós histórica, em boa parte produto do experimentalismo prodigioso das décadas de sessenta e setenta, e do avant-garde de séc. XX, parece ser a apropriação de imagens - imagens readymade, cuja identidade e significado estabelecidos, uma vez deslocados e impregnados de conotações, são transfigurados numa nova identidade.
Com efeito, a radicalização do conceito de readymade sob condições históricas diversas, se dá como negação dialética da formulação original, atualizando essa estratégia em modos singulares como em Emma e outras fotografias pintadas de Gerhardt Richter, em que empenha-se em reafirmar a atualidade do readymade através do medium da pintura. Buchloh supõe assim que o conceito do readymade, a iconografia da fotografia, e a prática da pintura formam os três constituintes básicos da pintura de Richter - com suas conexões dialeticamente contraditórias (portanto reconciliáveis) e sua unidade geral. Mas além dessas contextualizações históricas é antes um fato curioso que nos dá a pista para a leitura desse novo trabalho de Osmar. Duchamp em 1917, depara-se com um pequeno anúncio numa placa esmaltada da marca de tinta Sapolin, que ele repintou, alterou a legenda e inseriu comentários sarcásticos transformando-o no readymade "Apolinère Esmaltado". Inadvertidamente, ouço o artista comentar - "meu pequeno Apolinère" referindo-se a uma de suas últimas telas com impressões fotográficas. Confirma-se minha suspeita de uma estratégia readymade, em que as fotografias entram como um dado, um núcleo compositivo/matriz formal que se funde e desdobra no plano transmutando-se em pintura.
Tisseron, Serge. Le Mystére de la Chambre Claire. Paris: Belle Lettre, 1996
Gostaria de parabenizar o Canl por disponibilizar um texto tão brilhante sobre o trabalho do artista.Nos permite uma importante reflexão sobre a pintura atravéz da obra de Osmar "acessando nossa ilusão guiada pela percepção pictórica. Um romantismo destilado".
Parabéns.Obrigada
Ana Maria
prezados,
como faço para entrar em contato com Virginia Aita?
atenc. Cleusa Maria