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abril 20, 2005
Desvios e aproximações por Maria Angélica Melendi
Desvios e aproximações
MARIA ANGÉLICA MELENDI
Estou fazendo marcas negras sobre papel branco. Essas marcas são meus pensamentos e, mesmo não sabendo quem és nem quando estás lendo isto, de algum modo as linhas de nossas vidas se cruzam aqui, sobre este papel branco. Necessitamo-nos aqui, durante o tempo que duram estas breves frases. Não é acidental que estejas lendo isto. Estas palavras te esperavam.
Duane Michals
I. De uma parte alta da cidade são atirados vários rolos de papel. O vento os desfralda em curvas sinuosas. No caminho de casa observamos que, sobre o muro, uma fita fluorescente demarca limites entre superfícies descontínuas. Dentro da galeria de arte nos deparamos com a tampa de um bueiro de esgoto. Outra tampa aparece sobre a cerâmica do piso do banheiro, a nos lembrar que, debaixo dos nossos pés, estende-se, imensurável, um emaranhado de galerias, esgotos, encanamentos, fios condutores.
A legitimação dessas manifestações efêmeras radicaria numa instância sacrificial, através da ação realizada num momento, sem resto que se traduza numa ausência consentida de futuro 1. Estes procedimentos estariam a negar o pressuposto modernista do artista como herói e atualizariam o conceito do artista como "protagonista social" que teve seu auge entre 1960 e 1970. A ênfase na ação parece desprezar a criação de uma obra permanente e aponta para a substituição desta por um fato multiplicável ou um acontecimento transmissível.
O que permanecerá destes trabalhos daqui a vinte ou trinta anos? Camisetas com legendas já incompreensíveis, folhetos amarelados, vagas fotografias, recortes da imprensa, adesivos sem cola... Apenas registros, apenas souvenires. Nesses objetos, possíveis resíduos de obras, a arte sobreviveria apenas como a incerta equação de um instante, jamais um objeto pleno, nunca o resultado de um processo de sedimentação do pensamento estético ou da forma plástica.
É através dessas ações que os artistas do grupo Poro confrontam-se com o mundo e com sua cidade: interferindo, delicada ou incisivamente, no que eles têm de mais cotidiano, de mais ordinário, de mais rotineiro, de mais vulgar. Sua proposta consiste em tentar abrir, nessa dimensão concreta e unidimensional, pequenas trilhas que permitam escoar e dissolver o insuportável peso de um presente cada vez mais opaco e cada vez mais complexo.
II. Se considerarmos que existe uma arte conceitual internacional, será necessário apontar para uma inversão estratégica desse modelo na América Latina. Essa inversão exporia os mecanismos de repressão e controle e provocaria rupturas no estatuto de uma identidade latino-americana renegociada ao longo do eixo centro-periferia.
A arte latino-americana sempre optou pela apropriação do objeto como veículo privilegiado na construção de sentidos em oposição a um segmento importante do conceitualismo norte-americano que, ancorado numa pesquisa sobre a linguagem, prescindiu dos objetos e os substituiu por proposições lingüísticas.
Em Inserções em circuitos ideológicos, 1970, o trabalho paradigmático de Cildo Meireles, o objeto, retirado do seu contexto, é suplementado por uma proposição e reconduzido outra vez ao seu lugar originário. O Projeto Cédula, convidava a quem manuseasse dinheiro, a deixar informações ou críticas nele. Em plena ditadura militar, Meireles utilizava um carimbo para inscrever nas cédulas frases como:
Quem matou Herzog?
Yanques, go home! 2
Como quem começa uma corrente ou joga ao mar uma mensagem numa garrafa, o artista dava início a um processo de comunicação aberto cuja extensão desconhecia e cujos alcances fugiam de qualquer intento de controle. O público era o destinatário, mas também o agente dessas inserções que propiciavam a colaboração de todos para manter um fluxo de contra-informação no circuito ideológico.
Numa circunstância política completamente diferente, em 2002, o grupo Poro, retoma a idéia de Cildo Meireles, e cria um carimbo onde se lê: FMI - Fome e Miséria Internacional. O procedimento é o mesmo: carimbar cédulas e devolvê-las à circulação. Mas, o que em 1970 era feito clandestinamente, hoje (o projeto está ainda em andamento) acontece nas salas de aula da universidade, em eventos públicos, na mesa de um bar...
Recentemente, o coletivo argentino Pobres Diablos fez uma versão em espanhol do carimbo e, a partir desse fato, grupos de outros países da América Latina encamparam o projeto.
Em Propaganda Política dá Lucro!!!, 2002 e 2004, um santinho tipográfico foi distribuído por diversas pessoas, em diversas cidades. O panfleto, de composição e tipografia popular, promete lautos benefícios monetários para quem fizer um curso profissionalizante de propaganda política. Algumas ementas são sugeridas "Maquiagem e Figurino", "Estratégias de sonegação fiscal e superfaturamento de orçamentos", "Como manipular dados ao seu favor".
Nos períodos de propaganda eleitoral de 2002 e 2004, o panfleto foi distribuído em locais públicos de grande circulação e colado em quadros de aviso de escolas, bares, bancas de jornal e até galerias de arte. Foi, também, acumulado em lugares onde se costuma deixar folders, panfletos e flyers para divulgação. Ainda, os panfletos foram enviados pelo correio para pessoas de diversas cidades com instruções para que os distribuíssem. Finalmente, foi colocado na Internet no sítio da revista Etcetera 3 com instruções para imprimi-lo e difundi-lo. A partir do momento em que o panfleto foi colocado na Internet, perdeu-se o controle de onde ele foi parar 4, declaram os autores da proposta.
Ao lado destas proposições, de nítido caráter político, aparecem outras, onde o elemento poético predomina. São intervenções pontuais no espaço urbano, que buscam, como queriam os situacionistas na década de 60, uma religação afetiva com os espaços degradados ou abandonados da cidade, com o que foi expulso, apagado ou esquecido na afirmação dos novos centros. Obras efêmeras que estão a se destruir nos cantos da cidade, mas que, por um momento reluzem e brilham antes de se fundir e confundir com a parafernália impressa que alastra por muros e tapumes, por viadutos, postes e jardins.
Assim, uma enxurrada de letras de vinil, derrama-se dos escoadouros de água sobre passeios, ruas e sarjetas; nas monótonas árvores do campus brotam inesperadas folhas de ouro; um canteiro decadente se cobre, por uns dias, de uma vibrante e vermelha florada de papel celofane; um enxame de vaga-lumes revoa dentro do prédio.
III. Apontar sutilezas, criar imagens poéticas, trazer à tona aspectos da cidade que se tornam invisíveis pela vida acelerada nos grandes centros urbanos, estabelecer discussões sobre problemas da cidade, refletir sobre as possibilidades de relação entre os trabalhos em espaço público e os espaços expositivos "institucionais" como galerias e museus, lançar mão de meios de comunicação popular para realizar trabalhos, reivindicar a cidade como espaço para a arte.
O grupo Poro enumera assim seus objetivos. Cientes da impossibilidade da transgressão na atual predominância do capital globalizado, suas estratégias de ação agem num campo de resistência crítica em relação à cultura institucional. Poderíamos assimilar essas práticas ao sentido de subcultural, proposto por Hal Foster. As práticas subculturais, para o autor, diferem das práticas contraculturais dos anos 60, na medida em que as primeiras, antes de propor um programa revolucionário próprio, recodificariam os signos culturais 5.
As ações desses artistas permitem o surgimento do marginal, do subalterno, do subcultural nos centros urbanos e provocam instabilidades, ainda que sejam momentâneas, no núcleo de um sistema que até agora parece capaz de neutralizar e incorporar qualquer perturbação.
IV. A palavra desvio serve para indicar o caminho que, devido a impedimento na passagem ou para diminuir espaço e tempo de percurso, foge à rota comum; em suma: um atalho. Qual o atalho que escolhem, então, os artistas do grupo Poro? A resposta envolve uma decisão complexa e feita, talvez, com pesar. O atalho que passa pela instituição: a decisão de expor numa galeria.
De qualquer maneira, na galeria há apenas restos ou começos de ações, fotos ou vídeos das já realizadas, adesivos que propõem começar ou continuar outras. Mas o trabalho, a obra nunca está lá. O atalho, o desvio pelo qual os artistas optam é, paradoxalmente, o lugar de legitimação da arte: o cubo branco ideal que separa a arte da vida ordinária e que nos autoriza a desfrutar das experiências artísticas; um espaço tão impregnado de poder que beira o espaço sagrado.
Fora da instituição, a arte do grupo Poro corre o risco de se diluir no real. Tudo que há nela de antiartístico, de cotidiano, de ordinário, de impermanente, contribui, de fato, para a confusão desses trabalhos com os de outros ativistas que não têm nenhuma pretensão de pertencer ao sistema das artes. As obras não podem ser julgadas a partir de princípios estéticos, políticos ou didáticos; apenas poderíamos conferir sua eficácia imediata, que é quase sempre muito modesta.
No desvio, então, na galeria, os registros dessas obras nos advertem sobre sua natureza, nos ensinam a distingui-las se alguma vez, na rua, nos depararmos com elas , nos ensinam, também, a ver o mundo real com outros olhos, a descobrir, como queria Calvino, no insuportável inferno do real, aquela mínima porção que não é inferno, e, uma vez descoberta, acalentá-la, fazê-la crescer e prosperar.
Belo Horizonte, abril de 2005
1 Cf. ARDENNE, Paul. In: http://www.proyectovenus.org/ramona/home/anunciantes/interferencia/Pare.html
2 MEIRELES, Cildo. Cildo Meireles. Valencia: [s.n.], 1995. (Catálogo de exposição, jan.1995, IVAM, Centre del Carme). p.98.
3 O panfleto de 2002 foi publicado na 9ª edição da revista Etcetera no endereço:
http://www.revistaetcetera.com.br/old/09/visuais/galeria/santinho.htm. A reedição de 2004 está disponível no site do Poro: www.poro.redezero.org
4 Declaração do grupo Poro à autora.
5 FOSTER, Hal. Recodificação; arte, espetáculo, política cultural. Trad. Duda Machado. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996. p.223.