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abril 18, 2005
Herança Incômoda por Yacoff Sarkovas
Herança Incômoda
Ministério da Cultura consagra dedução fiscal como sistema de financiamento público
Artigo de Yacoff Sarkovas publicado originalmente no jornal Estado de São Paulo, Caderno 2, em 15 de Abril de 2005
O Ministério da Cultura de Gilberto Gil está celebrando os resultados da captação de recursos pela Lei Rouanet. Considera um êxito o mecanismo ter movimentado R$ 466 milhões em 2004, cifra 10% superior ao ano anterior. A postura é mais uma evidência de que o governo Lula optou por consagrar a dedução fiscal privada como sistema de financiamento público à cultura no Brasil.
Aplicado ao imposto de renda, o modelo foi criado pela Lei Sarney, em 1986, substituída pela Lei Rouanet por Collor, em 1991, ampliado com a Lei do Audiovisual por Itamar, em 1993, e replicado por municípios e estados via dedução no ISS, IPTU e ICMS.
Em conjunto, as leis de incentivo injetam cerca de R$ 600 milhões por ano na área cultural. Estes recursos públicos transformam-se em filmes, espetáculos, shows e livros; mantêm museus, bibliotecas e centros de arte; recuperam patrimônios artísticos e históricos. Por isto, muitos profissionais da cultura e da mídia consideram as leis positivas. Mas, uma análise mais acurada revela que o mecanismo é deficiente. Gera produção cultural porque distribui dinheiro, não por ser lógico e justo.
Leis de incentivo com dedução integral nada têm a ver com patrocínio ou investimento privado de verdade. São uma forma prática de transferir recursos para a cultura, sem enfrentar disputas no orçamento público, nem a burocracia do Estado. Em outros países, incentivo fiscal é poder lançar contribuições feitas para instituições culturais como despesa na declaração de renda. Caso contrário, incidiria imposto sobre o valor doado, por exemplo, a um museu. No Brasil, desde a Lei Sarney, além do desconto como despesa, parte do valor pode ser deduzido do imposto a pagar, o que gera aplicação privada de um recurso público. De toda forma, a parte não dedutível representa uma contrapartida, preservando o princípio do incentivo fiscal: usar dinheiro público para estimular o investimento privado.
A Lei do Audiovisual subverteu este conceito. Autorizou que a aquisição de cotas de comercialização de filmes fosse deduzida integralmente do imposto a pagar e ainda abatida como despesa, reduzindo o imposto acima do valor aplicado. Em conjunto, estas operações resultam num ganho mínimo de 124%. Isto significa que uma empresa pode utilizar dinheiro 100% público para se tornar sócia de uma operação comercial e receber mais 24% de comissão.
Espectadores-cidadãos não se dão conta que as marcas que aparecem na abertura dos filmes brasileiros são de empresas que recebem dinheiro público para fingir que são investidores culturais, tendo ainda o poder de decidir que aquele filme, e não outro, deveria ser produzido. Este instrumento sem precedentes que financia a retomada do cinema nacional contaminou outras leis de incentivo fiscal, a começar pela Lei Rouanet que, desde 1997, oferece 100% de dedução a diversos tipos de projetos.
O problema não está no uso em si de recursos do erário, pois a cultura requer políticas e investimentos do Estado por ser uma questão de interesse público, como a saúde, a educação, o transporte e a segurança. O problema está na forma que o investimento é feito. Leis de incentivo sem contrapartida não são um meio eficaz de financiamento público, nem de estímulo ao patrocínio privado. Desperdiçam recursos com sobrededuções e intermediações; não formam patrocinadores-investidores reais, pois são um jogo de faz-de-conta-que-o-dinheiro-é-privado; pervertem a relação cultura-empresas/pessoas, doutrinando-as a não pôr a mão nos próprios caixas/bolsos para patrocinar/apoiar/investir; desconsideram o interesse público, pois financiam projetos, com dinheiro exclusivamente do Estado, pelo mérito de atenderem o interesse privado.
A solução não está em ampliar normas, condições e restrições ao patrocínio empresarial. Basta restabelecer a contrapartida financeira. Usando seus próprios recursos, as empresas devem ter liberdade para apoiar o que lhes for mais adequado. Como já fazem com projetos esportivos, sociais e ambientais, que não dispõem de incentivos fiscais, e os projetos culturais sem dedução integral. Nestas áreas onde o patrocínio é real, as empresas investem para estimular a identificação e melhorar o relacionamento com seus públicos; ampliar sua credibilidade; agregar atributos e valorizar suas marcas; demonstrar sua participação social.
Instituições, processos e projetos culturais não nascem, nem existem, para serem canais de divulgação de marcas. Alguns desempenham bem essa função e têm maior chance de obter patrocínio real. Em regra, são atividades artísticas de repercussão midiática. As demais instituições, processos e projetos não perdem sentido cultural só porque não atendem objetivos de comunicação das empresas. Sem acesso a patrocínios, seus recursos devem vir do próprio público, quando puderem se inserir no mercado, e de fundos de financiamento institucional e do Estado, quando o provento do mercado não for suficiente para o equilíbrio econômico de ações culturais relevantes à sociedade.
A diversidade cultural depende desta multiplicidade de fontes. Por isto, são necessárias linhas de financiamento baseadas em políticas culturais públicas, que estabeleçam prioridades nos processos de pesquisa, criação, produção, circulação, intercâmbio e preservação para os diversos segmentos artísticos, e nos meios de fruição e expressão cultural da comunidade, nas diversas regiões do país. Havendo estes preceitos, comissões independentes formadas por especialistas podem avaliar o mérito técnico e público dos projetos, estabelecendo uma relação direta entre financiamento público e benefício público, e permitindo transferir os recursos sem descaminhos e intermediações.
Enquanto o governo não assume esta responsabilidade, algumas empresas adotam premissas públicas ao usar leis de incentivo, implementando programas que eqüivalem a políticas culturais, com inscrição aberta e seleção técnica. No mundo, fundos públicos fomentam as artes, a educação, a ciência, a saúde, entre outros processos de benefício coletivo. No Brasil, experiências no campo acadêmico, como a Fapesp, no institucional, como a Vitae, e no cultural, como o FumproArte, que opera há dez anos em Porto Alegre, o Promic, de Londrina, e o Programa Municipal de Fomento ao Teatro, de São Paulo, demonstram ser possível financiar projetos e instituições independentes com baixos riscos de malversação, clientelismo, corrupção e dirigismo.
Não faltam modelos para melhorar a qualidade do investimento público na cultura do país. Mas o Ministério de Gilberto Gil desistiu desta empreitada. No início de seu mandato, possuía recursos políticos, humanos e técnicos para promover a substituição gradual das deduções fiscais integrais por fundos de financiamento, sem colocar em risco os projetos culturais em curso. Mas sem plano estratégico e de ação, sucumbiu aos grupos que se sentem em vantagem no sistema atual. Embrenhou-se num cipoal de pressões e nem mesmo consegue implantar as mudanças que pretende fazer para manter tudo como está, que há mais de um ano anuncia e adia, anuncia e novamente adia. Restou-lhe comemorar os falsos êxitos que herdou.
Yacoff Sarkovas
Presidente da Articultura Comunicação e consultor de patrocínio empresarial
© 2005