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janeiro 11, 2005
Pão, circo e fé, entrevista com Ivana Bentes, por Ana Paula Sousa
Entrevista com Ivana Bentes, feita por Ana Paula Sousa, originalmente publicada na revista Carta Capital número 324 do dia 12 de janeiro de 2005.
Pão, circo e fé
Para a pesquisadora Ivana Bentes, filmes ancorados nas celebridades da tevê comprometem o cinema nacional
Por Ana Paula Sousa
Professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ivana Bentes é especialista em cinema e em comprar brigas. Foi colocada num fogo cruzado, em 2002, ao dizer que o filme Cidade de Deus era um exemplar típico da "cosmética da fome" - por transformar em mero entretenimento a tragédia social brasileira -, meteu a mão num vespeiro, em 2004, ao colocar-se frontalmente contra a Globo na questão da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) e destoa de seus pares acadêmicos pelo tom direto, sem meias palavras, de seus ataques à safra nacional. Nesta entrevista, a autora de Cartas ao Mundo: Glauber Rocha (Companhia das Letras), mostra que, apesar do apregoado "bom momento" do cinema brasileiro, a produção de qualidade corre o risco de agonizar:
CartaCapital: O cinema brasileiro fechou 2004 com uma queda de cerca de 30% de participação no mercado em relação ao ano anterior. A seu ver, o que indica esse dado?
Ivana Bentes: Ficou claro que não existem fórmulas e modelos prontos para levar o público ao cinema e que ver filmes brasileiros é um hábito cultural ainda frágil. Mesmo o cinema de mercado atinge uma camada pequena, de quem tem R$ 10 ou R$ 15 para pagar o ingresso. O cinema brasileiro não é popular, o que não tem nada a ver com linguagem difícil ou filme autoral. Cultura de massa quem vem fazendo é a televisão, que é de graça e atinge um número infinitamente maior de pessoas. No meu ponto de vista, o hábito cultural de ir ao cinema só vai mudar quando tivermos ingressos mais baratos e uma formação audiovisual universal, desde o jardim da infância até a universidade.
CC: Se, como a senhora diz, o cinema não é popular e, além disso, os blockbusters nacionais continuam dependentes de financiamento público e não ajudam a financiar outros filmes, qual o propósito dessa produção comercial?
IB: A produção comercial deveria financiar o cinema cultural e não o contrário. O Estado tem de intervir onde o mercado não funciona, ou seja, cinema e audiovisual regionais, de pequenos e médios produtores, curta-metragem, documentários, cinema experimental, de estreantes, de escolas de cinema etc... Tem de quebrar o círculo vicioso do capitalismo brasileiro, em que só consegue financiamento, facilidades e anistia de dívidas quem já tem dinheiro e está no mercado.
CC: Em 30 de dezembro, o governo reduziu radicalmente a cota de tela (obrigatoriedade de exibição de filmes brasileiros em certa quantidade de dias no ano) para 2005. Isso mostra que tinha exagerado na dose no ano passado?
IB: Historicamente, a cota de tela tem regras e variações muito diversas. Depende de uma série de fatores, de negociações, política e, claro, dos filmes disponíveis para exibição. Em 2004, não acho que o governo tenha exagerado, havia filmes para isso. A cota de tela tem de existir, sim. Filme brasileiro que não tem mídia, merchandising em novela e anúncio na tevê, tem de ter tempo para funcionar no boca a boca, como aconteceu com Cronicamente Inviável, do Sérgio Bianchi, que foi baratíssimo e fez 80 mil espectadores. Se os distribuidores deixam só uma semana em cartaz, não dão chance para esse marketing espontâneo. E se deixar o mercado sozinho se regular, só entra blockbuster brasileiro com mídia na tevê.
CC: Qual a sua avaliação a respeito dos dois campeões de bilheteria do ano passado, Cazuza e Olga?
IB: Não sei por que a vida de Cazuza tinha de ser contada de forma tão careta, do ponto de vista da mãe zelosa com a imagem do filho. Cazuza foi um transgressor, transava pela noite, tomava droga e pagou esse estilo de vida com a própria vida. Como é que um filme tira isso dele? Não sei por que fazer um drama asséptico, com medo de chocar a família brasileira ou para atingir o mercado adolescente. Sobre Olga, a mistura de drama épico e histórico, com o lacrimoso televisivo, mais o discurso oficial do Partido Comunista, me parece uma combinação catastrófica. O filme tem medo da palavra comunismo, pois pode assustar as senhoras espectadoras.
CC: Na outra ponta, a dos filmes que tentam relatar os pobres e miseráveis, não parece que alguns cineastas têm dificuldade de retratar uma realidade que não é a deles e acabam por fazer um cinema "de culpa", como diz Jean-Claude Bernardet? Mesmo num filme sobre a classe média baixa, como Contra Todos, a violência sempre explode, ninguém tem uma vida normal.
IB: Não sei se é culpa. Há um fascínio e, ao mesmo tempo, horror pelos personagens vindos das classes populares. A questão é que é sempre mais fácil olhar para esse "outro" social de forma estereotipada, procurando a anormalidade, o sensacional. Principalmente se são personagens saídos da pobreza. Daí ser importante um cinema de pessoas comuns, em que a poesia e o extraordinário vêm da linguagem do filme e da capacidade do cineasta de extrair uma poética do cotidiano. Para entendermos essa cultura da caricatura e da redução do outro a um traço grotesco, é só assistir a um programa de tevê como o Zorra Total, primário no seu humor, todo baseado em trocadilhos óbvios e em tipos populares caricatos. A mesma coisa acontece em filmes de ficção que tratam de personagens da classe média e da zona sul. Os filmes da Sandra Werneck ou o Avassaladoras, da Mara Mourão, são verdadeiros dicionários de clichês que atualizam situações das comédias românticas para o besteirol carioca.
CC: Na lista dos 20 filmes mais vistos em 2004 aparecem Xuxa, Angélica, Padre Marcelo e Sandy & Junior. O modelo televisão-entretenimento está dando as cartas de uma vez por todas?
IB: Essa idéia de um cinema popular que tem de ser de baixo nível, com piadas preconceituosas, explorando a religião e a fé ou capitalizando a audiência da televisão, me parece um fim de linha, não o começo de nada. É legítimo que sejam feitos, mas só servem para alavancar não o cinema, mas esse modelo do pão-circo-fé da televisão. O filme da Sandy & Junior é até legal, o melhor de todos esses aí, mas, depois de cem anos de cinema, é melancólico atrelar a linguagem e a bilheteria dos filmes ao rastro de celebridades televisivas. Padre Marcelo não é cinema. É, no máximo, um estudo de caso sobre o desespero da Igreja Católica para animar aquelas missas chatas de domingo. Isso, sim, é que dava filme, um documentário interessantíssimo.
CC: Diretores como Fernando Meirelles (Cidade de Deus) e Jayme Monjardim (Olga) defendem que não existe uma linguagem televisiva e outra cinematográfica, que isso é mania de crítico.
IB: Não seria preciso distinguir cinema de tevê se o cinema brasileiro passasse na tevê e se a tevê investisse num cinema com temas e estéticas menos redundantes. Mas a GloboFilmes entra no negócio do cinema para faturar duas vezes com o mesmo produto, primeiro na tevê e depois no cinema, ou levando para o cinema os mesmos atores, enquadramentos e linguagem. Quando a crítica insiste em distinguir cinema de tevê é só para dizer que o cinema não precisa ser essa coisa repetitiva, com filmes que, muitas vezes, estão na retaguarda do que a própria tevê já fez. Vide Olga, um retrocesso em relação a qualquer minissérie do Luiz Fernando Carvalho ou do Jorge Furtado ou aos programas do Guel Arraes.
CC: A seu ver, por que a Globo começou a se interessar pelo cinema, mesmo com filmes que não dão lucro?
IB: O negócio do cinema está esquentando, dá status, visibilidade e ajuda a vender o discurso da tevê preocupada com o conteúdo nacional. Ao entrar no cinema, com filmes pedagógicos, épicos históricos e vidas brasileiras edificantes, a GloboFilmes aumenta o seu capital simbólico, como a grande produtora da identidade nacional. Trata-se de um mercado supervalorizado pelo atual governo, que começa a ser incentivado e protegido.
CC: Com a crise da lei do audiovisual, com cada vez menos empresas investindo, e com as majors dominando a produção, cineastas de fato independentes estão sendo expurgados?
IB: Isso é uma realidade. A quantidade de cineastas bissextos, com um ou dois longas e com uma filmografia pequena é uma constante no cinema brasileiro, apesar do talento. Há um darwinismo mercadológico e só quem tem estrutura de produção, ou faz política, consegue filmar todo ano. É difícil e cruel ver talentos reais abandonarem o cinema pela fotografia, artes plásticas, vídeo, jornalismo.
CC: A polarização em torno da criação da Ancinav é reflexo da divisão do cinema brasileiro entre o grupo dos que produzem com o apoio de majors e da GloboFilmes e o dos que sofrem para conseguir dinheiro para a produção e, depois, uma sala para exibir seu filme?
IB: É bem isso. Quem está dentro desse esquema, já produz, tem mídia, tem distribuição, não quer democratizar coisa nenhuma, não quer ser fiscalizado nem regulado. É o típico comportamento das elites brasileiras, que ficam apavoradas quando surge qualquer projeto que coloca todos sob a mesma regra. Como sempre, são os que estão fora que querem mudanças. Lamentável é ver o oportunismo de profissionais do cinema que, para ficar bem com a Globo e com as majors, mudaram radicalmente de opinião. Enquanto era só retórica, todos posavam de paladinos do cinema brasileiro. Agora que é possível mudar alguma coisa, recuam de forma vergonhosa. Espero que o projeto da Ancinav seja aprovado no Congresso contra todos os lobbys. Isso seria algo realmente novo neste ano que começa, seria uma prova de que o Brasil está mudando e que é possível sonhar com uma democracia participativa para além do coronelismo midiático.