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novembro 16, 2004
Quinze anos: posições na arte alemã desde 1989, texto de Sheila Cabo
Quinze anos: posições na arte alemã desde 1989
SHEILA CABO
Em novembro comemoram-se os quinze anos da derrubada do muro e da reunificação da Alemanha. A cidade em que a divisão entre leste e oeste deixou mais marcas foi, sem dúvida, Berlim. De 1961 a 1989 a população berlinense viveu dividida não só por aquele impedimento físico, como por ideologias e forte repressão policial. Cortando a cidade, o muro criava uma situação geopolítica que, como disse Jörg Immendorff, contaminava os habitantes, fazendo de seus cidadãos homens também divididos. O muro caiu, mas deixou marcas que ainda hoje são perceptíveis, se não nas ruas, na memória de quem conviveu com aquela situação de exceção tratada pelos governantes como necessária. Do muro propriamente dito pouco resta. Seus pedaços foram transformados em fetiches e vendidos aos memorialistas. Alguns trechos, ainda intactos, foram transformados em museus, e o mais longo é hoje uma espécie de galeria de arte ao ar livre, onde pedaços fakes do muro são vendidos razoavelmente barato aos turistas incautos.
Após a noite em que as fronteiras foram abertas, em 9 de novembro de 1989, consolidou-se, em meio à euforia, uma simbólica retomada da cidade como lugar de modernidade e efervescência. Mas, se a reunificação vem associada ao fim da República Democrática Alemã (Alemanha Oriental), do bloco socialista europeu e, por conseqüência, da guerra fria, comemorar os quinze anos da derrubada do muro significa, necessariamente, reconhecer o processo que a cidade sofreu nesse período, quando se transformou em um verdadeiro laboratório de transição e mudanças. A queda do muro e a reunificação são marcos premonitórios de um novo milênio, assim como de um novo urbanismo, cujos espaços não são mais determinados pelas relações humanas. As construções imponentes de Potsdamer Platz são uma tradução do mundo pós-guerra fria. A praça, que foi o centro da cultura modernista dos anos 20 e um deserto nos anos do muro, transformou-se em uma imagem mediada de praça, em que, solapado o referente, é hoje a praça da Sony, uma corporação de capital multicontinental. A cidade, antes cindida e hoje reunificada, guarda ainda em seus nichos, muitas vezes mediados, essa característica da 'esquizocidade': preservação da memória e inevitabilidade de seu empalidecimento.
Esta mostra não objetiva fazer um balanço do que foi produzido neste período, mas mapear algumas posições, tendo como linha condutora as reflexões que se impuseram desde então. O que se percebe é que uma das questões que perpassam a produção de arte na Alemanha dos últimos quinze anos, como Potsdamer Platz, é a evocação de uma mitologia urbana midiática. Assim, no reconhecimento da destruição das fronteiras entre a realidade e a representação insere-se a produção de Thomas Ruff que apresentamos nesta mostra, em que a imagem fotográfica de uma cidade dividida em direita e esquerda não passa de uma mesma imagem levemente deslocada. A cidade fotografada, seja onde for, é sempre a mesma, já que o que se tem é, em verdade, uma virtualização da cidade, que a fotografia, por ser uma imagem técnica, ou seja, por trazer em si a confirmação da perda da possibilidade de ser um "aqui e agora", tão bem traduz. Em seu deslocamento, entretanto, Ruff conduz-nos a um olhar atento, o que nos joga para a vontade de reconhecimento do lugar, remanescente de nossa vontade de perpetuação das coisas, necessidade de reverter o processo de esquecimento. Também nessa relação entre lembrança e esquecimento é que se observa a fotografia de Thomas Grünfeld. Optando por um processo fotográfico artesanal, a imagem se apresenta envelhecida, mas falsamente envelhecida e, como os pedacinhos falsos do muro, corresponde a um registro de um passado não vivido, que se perpetua como puro significante, nossa única possibilidade de experiência no mundo. O artista, cujo trabalho alegórico com animais empalhados "híbridos" causou reações intempestivas há quatro anos, quando expôs no Brasil, como declarou aos jornais na época, tem como premissa tratar do "nervo vivo da criação". Mas criação aí só seria possível como rearranjo ou recuperação, em que estão em pauta a tradição da fotografia e o esvaziamento da imagem.
Também de um mundo mediatizado é que vem a foto de Albert Oehlen, que na cor e no brilho é a evidência do que nos entra pela tevê, pelas revistas, mas, sobretudo, pela internet. Expondo pinturas na 26ª Bienal de São Paulo, Oehlen, um dos mais instigantes pintores da geração dos chamados "novos selvagens" alemães dos anos oitenta, preocupado com a possibilidade de permanência da pintura na contemporaneidade, assim como com os clichês da pintura contemporânea, fala de uma "pintura procrustiana", que, como explica, é resultante de seu modo de mesclar, mas também de romper, expandir e reduzir. Nesse sentido, suas fotos, assim como suas imagens digitais, seriam parte desse mesmo processo que, ainda em suas palavras, se constitui de uma atitude de ser "implacável com os materiais".
Se a pintura havia ganho prestígio na Alemanha no início dos anos oitenta, sobretudo com a produção de Baselitz, Lüpertz, Immendorff, Penck e Kiefer, a presença de Walter Dahn, que foi discípulo de Beuys em Düsseldorf, é inquestionável no panorama que nos traz aos dias de hoje. Tendo sido também aluno de Polke, de quem expomos uma gravura, fez experiências com fotografia, filmes, vídeos e música. Trabalhando muitas vezes em conjunto com Dokoupil, com quem compartilhou o grupo A Liberdade de Mühlheim, traz para a pintura o imaginário das ruas, dos outdoors, do rock pesado e sujo. Tratando, porém, a pintura com seriedade, recupera valores pictóricos que, em gritante contraste com as imagens muitas vezes apropriadas de revistas de etnologia ou de medicina, criam uma pintura em que a tônica é, sem dúvida, a ironia, o sarcasmo, a sátira. Também como sátira apresenta-se a pintura de Cornelius Völker. O artista faz uma verdadeira arqueologia do cotidiano, recolhendo, em uma mirada fotográfica, que pressupõe o instantâneo, os fragmentos de seres e ações que, em pintura, ganham a pincelada matérica dos selvagens e a cor estridente da mass media. Na série dos pequenos cachorros, Völker pinta uma espécie de retrato da futilidade do homem contemporâneo, ou da vida de quem deixou de olhar o humano para cuidar dos cães.
O humano parece ser também o ponto nevrálgico das pinturas de Michael Bach. Contemporâneo de Andreas Gursky, Bach foi aluno de Gerhard Richter em Düsseldorf. Levantando, sobretudo, um discurso a respeito do meio, da mediação da paisagem e da contemplação que é, em si, a pintura, levanta, também, o problema do interesse crescente nos últimos anos pela paisagem, que em suas pinturas, sempre partindo de fotografias, se configura em verdadeiros desertos urbanos, ambientes ostensivamente construídos, que se fecham em si mesmos, inviabilizando a presença do homem, suas experimentações e seus deslocamentos. As cidades, cujas paisagens Bach pinta, são cada vez mais reduzidas a espaços ilhados e fechados, em que a vivência é programada.
Ao contrário das vivências, cuja temporalidade é a imediata, a experiência requer um tempo longo, que Walter Benjamin define por um tempo de deslocamento, como Erfahrung. O deslocamento e o movimento são, além do acúmulo de experimentações, como escreveu Paul Klee, a base de toda transformação. Deslocar-se parece ser também uma prática que permite, ainda segundo Klee, na contramão de ver e representar, tornar visível. Experiência, deslocamento e transformação são o que a fotografia de Iska Jehl, em sua obsessão pelas formas precárias de estar, torna visível.
Apropriar-se do tempo e do deslocamento também é a preocupação maior de Christoph Dahlhausen na foto-objeto que aqui apresentamos. Trabalhando sobre a superfície do alumínio, Dahlhausen, que vive em Bonn, vem fazendo uma pesquisa em fotografia, de que fazem parte também suas instalações com fotografia em vidro, especialmente aquelas que ocupam as janelas, em que a cor, a luz, o espaço e a própria fotografia são parte de uma especulação sobre a experiência do olhar, assim como sobre as relações de contaminação entre o interior e o exterior, que mais recentemente o levou a trabalhar com o que seria uma photography-as-wall-as-object.
Reunir, portanto, esses quatorze artistas hoje é, sem dúvida, uma iniciativa que pode dar bons frutos no que diz respeito a uma reflexão sobre os últimos quinze anos de arte não só na Alemanha, mas também entre nós.
Quinze anos - posições na arte alemã desde 1989
A.R. Penck, Albert Oehlen, Christoph Dahlhausen, Cornelius Völker, Daniel Richter, Iska Jehl, Kirsten Klöckner, Michael Bach, Ottmar Hörl, Sigmar Polke, Thomas Grünfeld, Thomas Kohl, Thomas Ruff, Walter Dahn
17 de novembro a 23 de dezembro de 2004
Galeria de Arte Theodor Lindner
Rua Visconde de Pirajá 444 Lj 213
Ipanema, Rio de Janeiro.
21-2522-3129
Terça a sexta, das 14h às 19h.