|
outubro 22, 2004
Museus sempre vivos
Texto de Gilberto Gil, publicado originalmente no Jornal do Brasil do dia 22 de outubro de 2004.
Museus sempre vivos
A revitalização dos museus brasileiros e do patrimônio histórico do país é uma das prioridades do Ministério da Cultura. Após anos de redução progressiva dos investimentos federais no setor, elevamos para R$ 23 milhões (em 2003) e cerca de R$ 25 milhões (em 2004) o valor dos recursos destinados diretamente pelo MinC aos museus. Também aumentamos investimentos, através da Lei de Incentivo à Cultura, de parcerias como a que celebramos recentemente com a Caixa Econômica Federal e BNDES - e em breve com outras estatais -, e ainda de programas específicos como o Monumenta, em colaboração com a Unesco. Esta série de iniciativas tem como alvos principais a preservação de acervos e prédios tombados; a modernização tecnológica e gerencial dos museus; o estímulo ao uso, pela população, dos acervos e espaços; e a criação de novas instituições. Com este impulso, podemos dizer que os museus brasileiros estão vivos novamente, e abertos à vida que há fora deles.
Este assunto evoca os versos de uma velha canção: "Tanta saudade preservada num velho baú de prata dentro de mim / Digo num velho baú de prata porque prata é a luz do luar". Ela fala de um tempo de retorno ao Brasil e de exílio, e da memória afetiva preservada num velho baú de prata. Este baú é como um museu pessoal, o museu que todos temos, feito de lembranças, quinquilharias e reminiscências que alimentam o nosso presente. Como todos os museus pessoais, o da canção tem qualquer coisa que vai além do eu. Há um momento e um território em que o canto da memória se encontra com outras memórias e outros cantos. E se transforma a partir dos encontros feitos. Os museus de pedra e cal e os museus virtuais são baús abertos da memória afetiva da sociedade, da subjetividade coletiva do país, da soma dos museus pessoais.
Penso no velho baú de prata, penso no matulão, penso num projeto de viagem com mala e cuia, penso nas arcas de alianças e chego aos relicários, aos realejos e seus desejos de reinvenção do real, e também na arte contemporânea, no futebol, na tecnologia. Por este sertão de memórias e suas veredas, chego aos grandes museus das capitais e também aos pequenos museus do interior, e mais ainda aos museus portáteis, tão caros aos homens e mulheres do povo, aos artistas, aos museólogos, aos educadores, aos antropólogos, aos cientistas do microcosmo social, e a todos os que se dedicam ao pensamento e à expressão. Há, como se sabe, museus de diversos tipos, todos igualmente significativos. O importante é que estejam vivos, que pulsem, consagrando o jogo de tradição e invenção que dialeticamente marca a construção da cultura brasileira.
Diferentemente dos que não gostam ou simplesmente não se encantam com os museus, e que os vêem como resíduos do passado, eu gosto dos museus. De todo e qualquer museu. E tenho especial apreço por aqueles que têm cheiro de vida e querem, por decisão de quem os alimenta, inundar a vida de mais vida; gosto dos museus que seguem se fazendo e se refazendo. Há quem pergunte: de onde vem este encantamento com os museus? Respondo: a raiz da música é a mesma do museu. E esta raiz remete ao cosmo (e ao caos) das musas. O museu é a casa das musas. E não por acaso a musa da música tem lugar privilegiado no Templo das Musas, no museu das artes, no panteão das musas que desde a mitologia grega são as inspiradoras de toda arte, de toda criação humana. Os museus abrigam o que fomos e o que somos. E inspiram o que seremos.
Falar das musas não é falar do passado. Ao contrário. Por isso, vejo que os museus são lugares de criação, diálogo e preservação do aqui e do agora. Esta noção está na base dos esforços do MinC num campo que traz simultaneamente o arcaico e o novo, o político e o cultural, o singular e o universal. Nos últimos vinte meses, o MinC estimulou a criação da Política Nacional de Museus, criou o Departamento de Museus e Centros Culturais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Demu/IPHAN) e investiu expressivos recursos no Museu Histórico Nacional, no Museu Nacional de Belas Artes, no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Museu da República, nos Museus Castro Maya, no Museu da Inconfidência e em tantos outros.
Também preparou o lançamento do Sistema Brasileiro de Museus, uma grande rede de articulação e desenvolvimento dos museus brasileiros, que incorpora os museus estaduais e municipais. Em várias regiões, com o estímulo do MinC, realizam-se fóruns estaduais que constituem a base para a criação e a revitalização de sistemas estaduais e municipais de museus. Além de articular e investir nos museus já existentes, o MinC moveu-se na direção de criar novos museus e aprovou o reconhecimento oficial da Semana de Museus, em maio, e do Dia Nacional do Museólogo (18 de dezembro), de modo a valorizar publicamente o setor e seus profissionais. Posso mencionar ainda a iniciativa pioneira do Edital Museus Brasileiros, voltado para instituições públicas e privadas não-vinculadas ao governo federal, que vão receber recursos públicos de R$ 1 milhão para se atualizar.
Um dos próximos passos será a criação do Instituto Brasileiro de Museus, antigo anseio da comunidade museológica. Coloco boa parte da minha energia neste projeto, por reconhecer o lugar estratégico dos museus na cultura e considerar que esta área demanda um órgão próprio de gestão. Torço para que os nossos museus não tenham medo do novo, do público, do diálogo, da atualização. Que não tenham medo de ser de todo mundo. Os museus são pontos de cultura e interessa tocá-los de acordo com a compreensão ampla do que chamei do-in antropológico (no caso, do-in museológico). Para além dos baús pessoais, os museus brasileiros devem cumprir papel de referência e base para o futuro da cultura. Que eles sejam música e poesia para nossos corpos, mentes e espíritos; que sejam os templos de todas as musas, e de todos nós. E que os brasileiros possam se orgulhar dos seus museus, novos e velhos.