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outubro 20, 2004

O Minc e seu do-in cultural

Alberto da Cunha Melo*
Matéria publicada originalmente na revista Continente Multicultural; outubro de 2004.

"(...) o fato notável é que a Inglaterra, como Cuba revolucionária, não esperou consertar a economia para depois tratar das artes: atacou as duas frentes ao mesmo tempo."
Teixeira Coelho

Até que enfim surgiu um coelho na cartola do ministro Gilberto Gil, um ano e oito meses depois de não sei quantas centenas (ou milhares?) de reuniões, mesas-redondas, encontros e seminários, dentro e fora da toca do Ministério da Cultura. Mesmo que não seja um coelho, mas um simples ratinho, que uma montanha de relatórios pariu, eu o saúdo efusivamente. Falo do lançamento, em agosto passado, do Cultura Viva - Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania e sua "base de articulação", os Pontos de Cultura.

O Programa é um catatau de 15 páginas, em espaço um, que, por dever de ofício, li duas vezes, fazendo anotações, mas apesar disso continuo engatinhando em busca de uma síntese compreensível para a quantidade enorme de ações enumeradas, e só me importo de ser chamado de burro pelo(s) autor(es) do texto, porque assim estará(ão) chamando também a policlientela, ou seja, o público-alvo, no caso duvidoso de que ele leia atentamente todo o documento. Esse público é caracterizado como alunos da rede pública, moradores de áreas precárias, municípios "relevantes para o patrimônio ambiental, histórico e cultural", formadores de opinião (artistas, professores, militantes sociais) e, de modo mais geral, "adolescentes e jovens adultos em situação de vulnerabilidade social" que significa, possivelmente, em português normal, pobres, miseráveis.

Para quem está acostumado com ações culturais tópicas, e perversamente concentradas, que vêm da lei federal de incentivos e suas congêneres estaduais e municipais, desde o governo Sarney, impondo-nos o simulacro de política cultural, o Programa Cultura Viva e seus Pontos de Cultura, previstos para atuar capilarmente em todo o território nacional, são, para mim, embora ainda meio empulhado com o longo texto que os explica, a primeira tentativa séria de uma autêntica política cultural nesta Nova República.

Meu primeiro estado de espírito é o de acreditar, estimular, dizer aos meus milhões de leitores que façam um coro comigo neste grito de fé, numa ação abrangente sobre um país imenso que não encontra oportunidade para mostrar todo o seu poder de criação. Torço por isso, embora, como comentarei mais adiante, o projeto pareça incentivar o povo a fazer mais e divulgar mais aquilo que a lavagem cerebral da grande mídia o condicionou a gostar. A escola de Goebbels fez carreira no Ocidente, mas ao invés de repetirem-se mentiras até que sejam consumidas como verdades, agora se repetem porcarias nacionais e estrangeiras, até que sejam aceitas como sublimes expressões do Belo.

Uma vez que as diversificadas ações propostas pelo Programa Cultura Viva serão realizadas, em todo o território brasileiro, através de uma rede de Pontos de Cultura, foram estas unidades que mais me chamaram a atenção. Eles me lembraram, de imediato, as Casas de Cultura do México e de Cuba, os Art-Centers da Inglaterra e as Maisons des Arts et de la Culture da França, investigados há 20 anos por Teixeira Coelho, um ex-secretário de cultura de São Paulo. Eles têm edifícios e administrações próprias e são subordinados ao poder central. Patrocinam e promovem a cultura no sentido mais que restrito, estético: a arte (tradicional, moderna e de vanguarda), o artesanato (não utilitário) e o folclore (danças, músicas e outras manifestações artísticas populares). No documento do MinC, quando li que "os Pontos serão utilizados como centros fomentadores e divulgadores das diversas culturas", a palavra cultura no plural fez-me desconfiar de que o viés, em vez de estético, é antropológico, o que está lá na Constituição Federal, criando uma confusão horrorosa. A palavra cultura é como a palavra amor: cabe dentro de um dedal e, às vezes, o mar é pequeno para contê-la. Para mim, o que não é natureza pura é cultura, isso do ponto de vista antropológico, pois tanto um gabinete odontológico quanto um quadro de Ismael Caldas são traços culturais. Daí que aquela definição de Ponto Cultural me deixou desconfiado.

Diferentemente daquelas experiências internacionais, os Pontos previstos no Brasil não contarão com prédios próprios, construídos pelo poder central. As comunidades interessadas deverão procurar espaços ociosos públicos ou privados ou instalar-se em "um grande centro cultural ou museu". Para um país do tamanho do Brasil a idéia é excelente, mas o único risco é a insegurança quanto à disposição continuada desses espaços. Outra coisa simpática é a não-definição de programação ou atividade, pois as comunidades variam em vocações artísticas e condições materiais. O que achei estranho foi a frase que considera o Ponto "como um do-in cultural e localizado, mas integrado". Parece-me que ele deve massagear a clientela e não furá-la com agulhas, como a acupuntura...

Como um velho técnico desatualizado em projetos culturais, li com espanto o título do item 4: Horizonte Temporal: Contínuo. Desconfio ser aquilo que eu chamava de cronograma. Também sobrei ao ler que "o Cultura Viva é, sobretudo, um programa de mobilização e encantamento social". Que encantamento é esse, meu Deus? Com certeza não é naquele sentido nordestino: "cadê o povo? se encantou".

Também estranhei a sugestão dos planejadores de "fundir o balé de rua com o break", "juntar capoeira com hip hop" e "garantir bolsas para cursos de DJ". Este último, o disc-jockey, cuida da parte sonora, enquanto o MC (master of ceremonies) encarrega-se do palavrório, nos espetáculos de rap (rhythm and poetry), uma coisa que chegou ao Brasil nos anos 80. Não tenho preconceito contra a arte estrangeira e quem me conhece sabe disso. Mas, por que não incentivar a verdadeira arte forânea, ao invés do lixo? As grandes obras de arte não têm pátria, e os povos dos países pobres ou ricos têm o direito de aprender a contemplá-las. Formação de público significa elevar a sensibilidade do povo para que conheça as grandes criações do espírito humano. E não reforçar o seu embrutecimento.

*Jornalista, sociólogo e poeta.

Posted by João Domingues at 2:51 PM