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setembro 24, 2004
Entre o Paraíso e o Inferno
Texto de Reynaldo Roels Jr. para a exposição "Entre o Paraíso e o Inferno", de Walter Goldfarb, no Centro Cultural Correios, entre os dias 29 de setembro e 31 de outubro de 2004.
Reynaldo Roels Jr.
Apesar da velha idéia de que os problemas da pintura são os problemas da pintura, e apenas isso, paira sempre uma dúvida a respeito destes problemas: afinal de contas, quais são eles? Claro, já houve várias respostas, a começar pelo problema da representação; passando pela famosa disputa, velha de quase dois séculos, entre o desenho de Ingres e a cor de Delacroix; pelo "olho do pintor" - Monet (herdando em parte as teses, caras a Ruskin, sobre o olhar inocente) -; pelo arranjo decorativo de formas e cores - Maurice Denis e, depois, Matisse -; pela estrutura bidimensional do suporte - Cézanne, seguido pelos cubistas -; pelos delírios do inconsciente - surrealismo, naturalmente -; até chegarmos à pintura dos anos 1980, que reaparecia depois de duas décadas de abandono com a idéia não muito segura mas infinitamente positiva de que a pintura é a pintura, e isso é tudo.
Se a posição bem mais sóbria de Greenberg, em defesa da integridade do plano pictórico, continua sendo pertinente para dar conta de boa parte do que se passou na primeira metade do século XX, há muito que permanece não-resolvido, e não só porque a arte de hoje se tenha distanciado da pintura. Ao que parece, pelo menos. Permanece o fato (ainda que em grande parte negligenciado) de que os problemas da pintura não correspondem a nada de realmente concreto; a priori, eles são uma abstração, e tão-só uma abstração. Eles serão todos aqueles que o pintor puder, legítima e convincentemente, formular. Qualquer que seja a maneira pela qual um pintor decida interrogar a pintura, esta maneira será apenas um problema da pintura, um dos muitos permitidos ao artista: pois problemas da pintura são interrogações em torno de sistemas de valores, não coisas preexistentes que se possam procurar e encontrar na materialidade do mundo ou da arte. Pode haver casos onde o questionamento seja infundado, ou ilegítimo, ou simplesmente pouco adequado; mas isso não altera em nada o fato de que podemos ter tantos problemas da pintura quanto sejam os artistas que lidam com a pintura. O prospecto pode não ser simples, mas isso é algo com que sempre teremos que enfrentar: não há tese capaz de reduzir a complexidade do real à sua própria lógica.
Também é uma idéia quase que do senso comum a de que, depois dos anos 1960, a pintura recuou para os fundos do cenário artístico - os anos 1980 sendo um "interregno", uma exceção (o que naturalmente prova a regra ) - , de forma que pintores novos sempre são olhados com certa suspeita. Tal em parte é verdade, embora ainda estejamos muito distantes da "morte" definitiva da pintura. Talvez nenhuma outra forma de arte tenha tido tantas certidões de óbito ao longo dos últimos cem anos, mas de uma ou outra maneira a pintura sempre conseguiu se reafirmar como uma das heranças mais ricas que o Ocidente construiu para si mesmo e que Modernismo levou quase ao máximo antes de nos legar. O que ocorreu de diferente nas últimas cinco décadas foi que o lugar hegemônico que a pintura teve durante séculos, na prática dos artistas tanto quanto nos textos e na história de arte, tornou-se insustentável, indesejável mesmo, e a antiarte, com sua rejeição do objeto de arte como objeto, recusou quase todas as formas que punham ênfase em sua materialidade, fosse ela a pintura ou qualquer outra coisa (desenho ou escultura, para ficarmos só nestas). Com isso, e em oposição à especificidade estrita com que a obra de arte era antes tratada, assistiu-se ao aparecimento do objeto "genérico" no cenário da arte, ou até mesmo, em casos mais radicais, de objeto nenhum. E durante o último meio século a antiarte quase invariavelmente deu a última palavra sobre o assunto. Como sugeriu Danto, a arte contemporânea se tornou filosofia da arte. Ou, pelo menos, a arte mais pertinente que surgiu nos últimos tempos tendeu a ser uma forma extremamente refinada, e por vezes etérea, de reflexão sobre si mesma, seus objetivos e seus métodos.
Dito isto, o que podemos é apenas reconhecer que foram poucos dentre os artistas de interesse surgidos nos últimos dez anos que assumiram a pintura como meio privilegiado. E é de exatamente dez anos de que trata esta exposição. Uma produção que começa em 1994 e se estende até hoje. E que, ao longo deste tempo, em vez de caminhar para um "amadurecimento" convencional da pintura, Walter irá complexificar e sofisticar os procedimentos, em uma constante problematização da atividade do pintor, em suas práticas, em seus pressupostos e naquilo que se crê ser sua história.
Em uma passagem breve e infelizmente pouco desenvolvida, Clement Greenberg se refere à "produção de imagens" em oposição à pintura , produzindo uma distinção que, se quase totalmente desconhecida pela historiografia tradicional da arte, pode ser suficientemente útil para nos ajudar a dar conta de boa parte dos destinos da produção artística da última metade do século passado (produção que Greenberg, aliás, preferiu ignorar). A distinção pode ser usada também para entender um pouco da ambivalência da obra de Goldfarb e do modo como sua pintura institui múltiplas formas de "ansiedade" (em que pese a aparente positividade dos trabalhos).
Mais do que simplesmente definir a distinção entre uma imagem e uma pintura (Greenberg fala apenas da exacerbação da "consciência do plano", sem que tal seja suficiente para esgotar o tema), o importante é que a diferença pode ser feita de imediato, e ninguém jamais tentaria analisar, por exemplo, uma miniatura persa dentro dos mesmos critérios utilizados para uma paisagem holandesa do século XVII. Ambas são imagens pintadas - e ambas podem ser ou não ser "grande arte" -, mas apenas a última se enquadra dentro da tradição da pintura. A primeira é resultado de um trabalho de mestre, que visa à perfeição; a segunda, mesmo vinda de um artista menor, já se dá dentro de uma outra estrutura mental, em que a perfeição do artesão cede lugar à grandeza de propósitos do artista, o virtuose no lugar do mestre. É a noção da "grande pintura" (a Grand Manner de Reynolds), uma tradição que o Ocidente desenvolveu e sobre a qual se debruçaram alguns dos maiores intelectos que a história registrou. Foi esta a tradição que, sem maiores sofrimentos, foi subitamente posta de lado pelos artistas a partir de meados do século passado: assistiu-se ao retorno da "produção de imagens" em detrimento da pintura, processo que, longe de representar o retorno às formas anteriores de artesania, pré-modernas e pré-intelectuais, teve como objetivo radicalizar ainda mais o projeto de intelectualização do artista.
Seriam necessárias múltiplas e longas explicações para se dar conta do processo de modo satisfatório. O que importa indicar aqui é a impossibilidade, clara para aqueles que desde então se defrontaram com o objeto "pintura", de se defrontar ingenuamente com aquela tradição, sem que esse enfrentamento se fizesse sob a forma de um confronto, um questionamento intenso do início ao fim. Hoje, fazer pintura é de alguma maneira dissecar tanto a pintura quanto a idéia de pintura e, para fazê-lo, muitos não hesitam em voltar à "produção de imagens".
À parte a cena bíblica, o Dilúvio de 1994, que abre a mostra de Goldfarb e cujo interesse está baseado no contraste entre os meios "expressivos" herdados da década anterior e uma narrativa relativamente simples, é nos trabalhos imediatamente seguintes, a partir de 1995, que se começam a observar os "trincamentos" que irão orientar as preocupações futuras, prosseguindo até hoje. Das possibilidades pictóricas da escrita - os caracteres hebraicos (que também estabelecem um diálogo com a origen e a história do artista), até a problematização da pintura como história, a problematização de suas imagens (abertamente citadas e apropriadas), e a problematização de seus meios (onde o material é também submetido a um tensionamento adicional). Destes últimos, o mais evidente é a substituição da tinta pelo carvão, Goldfarb fazendo este último um legítimo material de pintura (tradicionalmente associado ao desenho, o carvão deverá desaparecer por trás da "verdadeira" pintura). E se o carvão tem essa proeminência no trabalho, o uso não é tudo, dando margem a manipulações várias: ele pode ser submetido a lavagens, pode ser subseqüentemente retrabalhado e lavado mais uma vez, como também pode receber reforços posteriores. E a exploração foi estendida a alguns outros procedimentos, como a colagem, o bordado, a queima, a talha em madeira e, já há algum tempo, a associação de objetos à pintura.
Além disso, a tela, por vezes deixada em branco em grandes áreas, aponta para um momento anterior do processo, quando a pintura era tratada ainda de maneira um tanto arcaica, mais como espaço para conjunção (conjuração?) de imagens do que como espaço pictórico em seu sentido estrito (e aqui não se trata de um problema de técnica, e sim de conceito). Naturalmente, não será a utilização de todos estes procedimentos o que irá determinar o que seja uma pintura, embora já tenham sido usados para fazê-lo: eles determinavam um método, e é sobre este método que as atuais pinturas de Goldfarb se debruçam.
Exceto pelos espécimes encontrados em museus da Antigüidade e da Idade Média, e a despeito de ser um fenômeno que surgiu bem cedo na história, já há algum tempo não se está normalmente atento à presença do bordado na arte e, na realidade, ele não é geralmente objeto de muita atenção para além de alguns casos mais famosos. Seu lugar caberia mais naturalmente em coleções de instituições de artes e ofícios, e ainda assim a maioria seria vista com desconfiança como exemplos de objetos de luxo. Talvez não tanto a Tapeçaria de Rainha Matilda - tanto um documento quanto uma peça de arte - ou a série da Dama com o Unicórnio - este último exemplo ao menos apreciado por sua sutileza visual. Ambas são exceções óbvias a esta situação. De qualquer maneira, o bordado é visto, na maior parte das vezes, como ou uma artesania menor ou como um passatempo elegante para senhoras nas suas horas de lazer - em ambos os casos, só a memória vaga de um mundo velho e perdido.
O quadro mudou, claro, a partir do momento em que arte se distanciou o suficiente de suas origens manuais e se impôs como atividade intelectual. Daí em diante (como os artistas do século XX mostraram bem claramente) os "meios artísticos tradicionais" não são nenhuma garantia de um objeto qualquer ser ou não ser artístico. Se a arte não é mais produção de objetos para serem apreciados enquanto objetos, tampouco podem importar muito os materiais escolhidos e os meios empregados pelo artista, contanto que ele tenha dito o o que tinha a dizer. E o emprego do bordado pode, em várias situações, se justificar plenamente diante do olhar desconfiado do espectador.
No caso das pinturas de Goldfarb, o bordado surge "naturalmente" - ele mesmo o declara enfaticamente - como algo ver com seu impulso para o trabalho manual, o "fazer disto com as próprias mãos." Isso faz sentido, claro, mas não de todo. Em primeiro lugar, há o problema de se conceber o bordado como parte de uma pintura (e o bordado, em seu sentido estrito, não é um "material" de pintura: a obra de Leonilson que o emprega opera em outro registro). O que conta nesse processo é a idéia de desfazer a trama das telas e incorporar os fios novamente dentro da própria pintura, como método de construção da imagem. Isto ele conseguiu com bastante propriedade. De fato, não constitui para ele nenhum grande problema o fato de nenhuma de suas pinturas ser feita com materiais tradicionais. Mais importante, entretanto, é seu processo de conceber a pintura tanto como desconstrução quanto como reconstrução, seja ao processar as imagens, seja ao dar a elas existência material no ato de fazê-las. É como se ele tivesse que pôr o mesmo material para operar em dois sentidos, que ele desfaz para imediatamente refazer de outra maneira.
Mais que isto, os trabalhos de Goldfarb estabelecem uma relação complexa entre modos esperados e inesperados de construir a pintura. Todos os meios materiais para se executar uma pintura são na realidade um modo de contar uma história, e um modo muito pessoal, em que a tapeçaria adquire um pouco o mesmo papel que teve no passado. Começando com sua própria história (incluindo meios-tons psicanalíticas), ele tece seus comentários sobre a história de arte em um jogo sofisticado entre subjetivo e objetivo, seus próprios fantasmas e o peso de uma tradição que repousa nos ombros de todo artista.
Aquilo que poderia não ser mais do que um conjunto de simples memórias privadas (Rapunzel e o leite da manipuladora) é tão atravessado por referências à história da arte que a auto-referência passa a significar outra coisa. Seu ponto é fazer com que uma história privada faça sentido ao ser amalgamada a parte de uma outra história, esta última pública. E assim enfrentamos imagens tão estranhas quanto os pentagramas vazios em O judeu errante, a partitura de Tanhauser - sem os valores de duração das notas - em Difficile Liberté ou a transcrição do texto, e tão somente do texto, da narrativa do Graal em Lohengrin (essas duas últimas sendo citações das óperas de Wagner). Podem-se acrescentar a estas a mistura de mapas ao alfabeto hebreu e nomes inscritos a ferro e fogo sobre a lona crua (Kal Nidre), que exibem uma delicadeza que se sobrepõe à aparente crueza dos meios.
Naturalmente, questionar a pintura é questionar os pintores, o que quer dizer questionar as respostas anteriormente dadas por outros, respostas que pesam nos ombros de qualquer artista. E Goldfarb tem os questionado sob muitos pontos de vista, geralmente citando-os de maneira direta, às vezes com resultados surpreendentes: gravuras do Renascimento, Leonardo, a Dança de Matisse ou as estruturas geométricas de Mondrian. A tarefa termina por ser a de produzir significados novos a partir de imagens antigas, misturando-os freqüentemente a outros conteúdos culturais que permanecem em sua imaginação: novamente a música de Wagner, o drama de Goethe ou a lenda do Judeu Errante, o Golem de Praga.
Em outras telas, como Lição de Corte e Costura I, a Dentellière de Vermeer está bordada em plena Lição de Anatomia de Rembrandt, uma imagem de mulher surpreendida no ato de bordar a si mesma na tela. Mais significante, talvez, sejam os objetos aplicados a fragmentos do Casal Arnolfini de Van Eyck (A psicótica na praia sem os gatos e Édipo sem a manipuladora). Reduzida a suas silhuetas mais sumárias - perfeitamente reconhecíveis, no entanto - , a pintura flamenga recebe a interferência de espelhos metálicos circulares (convergente e convexo em cada um dos casos) que duplicam - refletem - , como espelhos de verdade, o espelho pintado do original. Silhuetas são algumas das imagens mais antigas jamais realizadas pelos homens; e entre elas e Leonardo se estende um longo percurso após o qual (com muitos embates, desvios e recuos), finalmente, fixaram-se para nós as noções de pintura e de arte. Como um mágico - um dos atributos já aplicados aos artistas -, a silhueta (como em Fantasia) faz emergir do vazio o que muitos poderiam considerar o protótipo do ato inaugural da arte em seu o duplo registro de pintura e de produção de imagens.
Ou, ainda, o contraste deliberado entre o Enterro do Conde de Orgaz (um detalhe, em carvão e apresentado de cabeça para baixo) e uma imagem bordada reproduzindo uma cena religiosa medieval: uma das pinturas mais sofisticadas produzidas no Ocidente servindo de contraponto a uma imagem que, para nós, pode parecer apenas arcaica. São os mesmos processos e pressupostos que estão na base das elaborações mais recentes - em uma atitude aparentemente paradoxal, que pode lançar mão desde figuras de desenhos infantis até fotos de corpos nus encontrados em revistas pornográficas. Como Goldfarb já havia feito com a intimidade das mulheres de Boucher - as toaletes, cenas íntimas e inesperadas que o pintor francês tornou públicas com tamanha delicadeza. Só que, aqui, ele as relacionou a objetos que (penso) podem e devem funcionar independentemente. E, tridimensional que sejam, há neles elementos suficientes que apontam para as atividades e os interesses do pintor - quando mais não fora o uso intensivo de superfícies reflexivas ou de algum modo exacerbadas.
As telas mais antigas são algo como uma passagem: da narrativa pessoal a uma narrativa mais ampla; da idéia de pintura como afloramento do sujeito a um outro patamar de visão, em que o embate se dá não mais consigo mesmo e com sua própria história (com seus próprios fantasmas), mas com uma história diferente e que em geral é vista apenas como modelo, não como problema; uma história que, diferentemente daquela de que em geral queremos nos liberar (a "mão morta do passado"), é necessário incorporar sem dela herdar todo o peso. É uma passagem em que se transforma o sentimento trágico que acompanha a confiança da juventude na suspeição indiferente da maturidade: veja-se o contraponto entre a festividade explícita nos vários teatros e danças, de um lado, e as muitas danças da morte, de outro, entre o inocente e o lascivo, a pureza e a corrupção: o ceú e o inferno só existem por oposição um ao outro, mas coexistem lado a lado e, no fim, isto não faz nenhuma diferença. Um grande teatro (de fantoches?) onde os corpos - mas também as imagens - desempenham papéis apaixonados mas inúteis, para voltarmos a um certo existencialismo.
Obviamente, no caso das citações de Goldfarb, temos que lidar com um certo tipo de paródia - não só o novo debruçado (analiticamente, não afetivamente) sobre o velho, apenas para comentá-lo, mas principalmente para restabelecer um gesto herdado, e assim fazê-lo novamente atual, ou melhor, para submeter a um teste a própria herança recebida e aceita. Às vezes, suas paródias podem mesmo parecer excessivas, mas na realidade não o são - como em Lição de Corte e Costura I, onde o excesso que parece afligir o título é dirigido em verdade, não para as imagens citadas, mas para a própria consciência que Goldfarb tem da ambigüidade de seu truque. No caso, a citação só é parodística como meio de garantir que, na cultura Ocidental, a tradição não seja tomada pelo valor com que ela se vende, mas seja estar submetida a um interrogatório intelectual rigoroso. De fato, na pintura de Goldfarb, a citação é um modo de colocar a tradição sob o teste mais severo, e assim, termos a possibilidade de dizer que, afinal de contas, em vez de ser um defunto inequívoco, a pintura ainda pode desempenhar seu papel principal, a ela atribuído há pelo menos quinhentos anos, o de ser um instrumento de conhecimento. Não importa o que um artista defina como "problema da pintura".