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agosto 30, 2004

Identidade e dominação por Naoki Sakai

A voz forte e sufocada das minorias

Artigo de Naoki Sakai, traduzido por Pedro Erber, publicado originalmente no Valor Econômico, sábado, dia 14 de agosto de 2004.

A evolução da situação política internacional desde o 11 de setembro evidenciou lacunas inerentes à nossa concepção do fascismo. Particularmente inquietante é o fato de ter se passado tanto tempo - aproximadamente dois anos - até que a grande mídia americana começasse a dar voz às numerosas críticas internacionais à política externa do governo americano e a suas atitudes presunçosas - e claramente racistas - frente a árabes, muçulmanos, "Estados vilões" e todos aqueles que se pudesse imaginar como "terroristas".

Em todo o mundo, o choque das tragédias do 11 de setembro despertou imediata solidariedade com os americanos e a condenação unânime dos instigadores dos ataques suicidas. Por algum tempo, a maior parte da opinião pública mundial parecia estar inequivocamente do lado americano. Muitos ainda, fora e dentro dos EUA, esperavam genuinamente que o povo americano, por sua vez, se tornasse capaz de semelhante solidariedade com as vítimas civis da longa história de bombardeios e ações militares encobertas de seu governo em diversas partes do mundo, e que eles percebessem finalmente porque são tão intensamente odiados. No entanto, o governo dos EUA logo revelaria sua mentalidade jingoísta e farisaica, ao declarar sua estratégia unilateral de "preempção".

Entretanto, esse unilateralismo fundamentalista não estava inteiramente em desacordo com o público americano. Este, para meu maior desapontamento, parecia adorar a retórica de cruzada do governo Bush e endossou de maneira avassaladora a legislação conhecida como "Patriot Act", que sacrifica direitos básicos dos cidadãos em nome da segurança nacional.

Como é do conhecimento de muitos, o campo de concentração construído pelos EUA na Baía de Guantánamo, em Cuba, continua em funcionamento para a detenção de "combatentes inimigos", que não são criminosos segundo as leis americanas e tampouco prisioneiros de guerra de acordo com a lei internacional. Assim como os judeus tiveram seus direitos e sua nacionalidade negados pelas leis de Nuremberg (particularmente, pela Lei de Cidadania do Reich) de 1935, aqueles prisioneiros foram confinados indefinidamente, inteiramente privados de processos judiciais e sem direitos legais a que apelar junto a qualquer autoridade, até a decisão da Suprema Corte, em junho deste ano.

Não é a primeira vez na história dos EUA que se recorre à criação de campos de concentração em nome da segurança nacional. Em 1942, o presidente Franklin D. Roosevelt ordenou o encarceramento de todos os americanos descendentes de japoneses em campos de concentração, simplesmente porque ele e seu secretário de guerra viam nos nipo-americanos espiões e sabotadores em potencial. Quatro décadas mais tarde, o esquema dos campos de concentração para americanos cujos ancestrais vinham de países inimigos foi oficialmente declarado inconstitucional e repelido pelo governo no Ato das Liberdades Civis, de 1988. No entanto, uma vez mais, uma crise na segurança foi usada como desculpa para a abertura de uma brecha extrajudicial para o internamento de indivíduos que não são julgados culpados, nem mesmo culpáveis, mas simplesmente suspeitos de constituir perigo à segurança da nação. A cada vez que a nação parece ameaçada, a idéia do campo de concentração ressurge persistentemente na política americana.

Por mais de dois anos, desde o 11 de setembro, até que a ocupação anglo-americana do Iraque começasse a revelar falsidades inerentes em sua política e em sua visão do mundo, George Bush Jr. gozou de popularidade, na crista da onda do nacionalismo americano. Bombardeados pelo sentimento de patriotismo cego e intimidados pelo ostracismo potencial, apenas alguns poucos no poder legislativo e na grande mídia falaram honestamente sobre quão provinciano e isolado estava o país em meio à comunidade internacional. O caráter conformista e, mais ainda, xenófobo do público americano nunca esteve tão evidente quanto durante estes dois anos.

Quando uma carta aberta, intitulada "Para que estamos lutando: uma carta da América", assinada por 60 intelectuais proeminentes, incluindo famosos conservadores, como Samuel Huntington e Francis Fukuyama, assim como acadêmicos liberais, como Jean Bethke Elshtain e Michael Waltzer, foi publicada em grandes jornais europeus, em fevereiro de 2002, tornou-se inegável que o chauvinismo não pertencia exclusivamente à Casa Branca e a alguns círculos conservadores, mas dominava também as universidades, órgãos financiadores e instituições de pesquisa.

Nessa carta aberta aos europeus, o tom autocelebratório do nacionalismo americano estava demasiadamente óbvio; mas era também notável que, ao mesmo tempo em que enfatizava o compromisso americano com o universalismo, a igualdade e a diversidade religiosa e étnica, a carta não demonstrava a menor compreensão das histórias nas quais os EUA agiram como uma potência imperial, dando origem a desigualdades e relações coloniais em todo o mundo.

A autocelebração de valores universais em casa é acompanhada, assim, do estabelecimento de forças imperialistas e neocoloniais no exterior; a erosão dos princípios democráticos e anti-racistas em questões de direitos humanos básicos, imigração e naturalização na frente doméstica constitui o pano de fundo da dominação militar americana global. De modo que, durante o governo Bush, no momento de maior alvoroço do nacionalismo americano, testemunhou-se uma espécie de síntese dos ataques fascistas aos princípios democráticos e parlamentares, aliados hoje a uma capacidade militar sem precedentes, que permite aos EUA a preempção militar em virtualmente qualquer lugar do mundo.

Diz-se freqüentemetne que a autocelebração é um traço notório do nacionalismo americano; ela serve como um modo ideológico de assimilação em uma sociedade de imigrantes. Precisamente por causa do medo de exclusão iminente, os cidadãos dessa sociedade tendem a demonstrar publicamente seu patriotismo e dedicação aos "valores americanos", de modo a adquirir auto-estima enquanto cidadãos dos EUA. Inevitavelmente, essa tendência tem sido ainda mais conspícua entre aqueles grupos étnicos designados como suspeitos de envolvimento em problemas de segurança. Em vista das notícias de que diversas pessoas de aparência árabe foram baleadas ou linchadas nos meses em seguida ao 11 de setembro, não é de surpreender que muitos estudantes de pele mais escura, com nomes que soam árabes, de fé islâmica ou oriundos de países como Irã, Paquistão, Índia ou Indonésia tenham sido alertados por seus pais para hastear a bandeira americana de modo visível em frente a suas residências e evitar manifestações públicas antigovernamentais, tais como passeatas pela paz.

Certamente, essa combinação peculiar de conformismo e nacionalismo em casa e desavergonhado uso de violência militar imperialista no exterior não é única e exclusiva dos EUA. Há casos dignos de comparação histórica, um dos quais é o Império Japonês dos anos 1930 e início dos anos 1940.

Essa peculiar combinação de opressão violenta aos dissidentes políticos - nacionalismos étnicos anticoloniais e comunistas - e o compromisso idealista com o universalismo é um aspecto freqüentemente negligenciado nos estudos do fascismo japonês: de um lado, a afirmação da diversidade multiétnica por parte do Estado e a implementação de políticas integracionistas, com vistas à posterior assimilação da população colonial da Coréia e Taiwan à nação japonesa; de outro um expansionismo militar incontrolável e massacre da população civil na China.

Não se trata de afirmar simplesmente que o imperialismo americano atual é semelhante ao imperialismo japonês do passado. Muitas semelhanças podem ser encontradas entre imperialismos de modo trans-histórico e trans-regional, como poder-se-ia também encontrar enormes diferenças. Não se trata de iniciar um jogo interminável de semelhança e diferença, mas de buscar uma transformação de nossa perspectiva do papel da minoria sob o nacionalismo imperial, examinando em conjunto alguns aspectos dos imperialismos japonês e americano. A comparação poderia igualmente envolver outros casos de nacionalismo imperial. Como o Estado pacifica o povo oprimido pela violência militar? Como o Estado imperial consolida a solidariedade nacional, apesar da discriminação racial, divisões de classe econômica e outros modos de desigualdade?

Essas são questões da minoria, e são essenciais em minha investigação comparativa dos imperialismos, porque a minoria é a categoria socio-política que marca a falha e o limite da comunidade nacional. Embora o racismo tente definir a minoria em termos de características naturais ou biológicas, está claro que ela não pode ser jamais naturalizada de tal forma, nem entendida fora do processo de formação da própria comunidade nacional. A minoria é sempre uma categoria contingente, uma identidade imposta de fora e de maneira forçada.

Ao colocar essas questões, descobre-se logo que tanto o imperialismo americano como o japonês tiveram de responder de maneira eficiente e implementar diversas políticas visando transformar um indivíduo oprimido em um sujeito-súdito leal à nação. Desse modo, focalizando os regimes de formação subjetiva - isto é, o processo por meio do qual o indivíduo se constitui simultaneamente enquanto sujeito e súdito da nação - pode-se entender como um indivíduo que é parte de uma minoria quer ser reconhecido enquanto verdadeiro membro da comunidade nacional, e se convence a servir as forças armadas, antecipando voluntariamente sua própria morte. Muitos residentes das montanhas de Taiwan, que foram os mais severamente oprimidos pela autoridade colonial japonesa, acabaram por tornar-se alguns dos mais patrióticos soldados do exército imperial japonês no início dos anos 1940. Os feitos do 442º batalhão de combate dos EUA na Segunda Guerra Mundial, constituído por nipo-americanos, atestam a coragem e determinação daqueles que buscavam identificar-se com a nação americana ao custo de morrer por ela. O que se vê em tais relatos é o modo pelo qual a minoria é apropriada no discurso do nacionalismo imperial e a técnica através da qual um leal sujeito-súdito do império é fabricado a partir de um indivíduo que sofre de discriminação racial e colonial. A tendência autocelebratória no nacionalismo americano é claramente consistente com tais regimes de formação subjetiva. A filosofia japonesa da primeira metade do século XX, notável por sua penetrante discussão da subjetividade, esteve profundamente investida na criação de tais técnicas para o Império Japonês.

A esquerda americana culpa freqüentemente o Estado de segurança nacional - o enorme complexo de aparatos estatais, como a rede militar-industrial, os órgãos de inteligência e a tecnocracia policial, construidos para proteger os EUA de perigos iminentes - por todos os males do imperialismo americano, recusando-se, assim, a questionar o nacionalismo do povo da "America". Mas, será mesmo possível separar tão facilmente imperialismo e nacionalismo? Do ponto de vista da minoria, a separação entre imperialismo e nacionalismo perde sentido. O indivíduo da minoria é forçado a aceitar o papel de soldado imperialista por sua determinação em tornar-se um membro da nação e a encontrar em seu patriotismo e em sua devoção à nação motivação e desculpa para o assassinato de civis, tortura e participação em atrocidades.

Na medida em que a rede americana de bases militares, seus serviços de inteligência e os agentes de sua indústria militar cobrem virtualmente a totalidade do globo, o nacionalismo americano não é mais apenas um problema do povo americano. Ele afeta o destino e o bem-estar do resto do mundo. É hoje uma tarefa urgente - não apenas para os intelectuais nas ciências humanas e sociais - analisar objetivamente o nacionalismo imperial americano e avaliar suas obsessões, desejos e efeitos na organização sócio-econômica do mundo atual.

Comparando os diferentes legados imperialistas no Leste Asiático, por exemplo, revela-se quanto os japoneses aprenderam com a experiência inglesa e, por sua vez, quantas de suas estratégias coloniais - a burocracia colonial na Coréia do Sul e Taiwan, uma extensa rede militar de prostituição - foram posteriormente apropriadas pelos americanos. Ao mesmo tempo, a perspectiva comparativa nos permite ver as semelhanças e conexões na opressão e luta das minorias em diversas partes do mundo e a possibilidade de estabelecimento de redes internacionais de questionamento, colaboração e resistência. É nesse sentido que a análise comparativa dos mecanismos imperialistas com atenção ao papel fundamental das minorias me parece extremamente útil.


Pedro Erber é doutorando em filosofia política e literatura na Universidade Cornell, estudou filosofia japonesa na Universidade de Tóquio e é autor de "Política e Verdade no Pensamento de Martin Heidegger" (Loyola).

Posted by Patricia Canetti at 10:09 AM