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maio 23, 2004
Quase Sólidos
PAULO VENANCIO FILHO
Texto originalmente publicado no livro Morte das Casas sobre a obra do artista Nuno Ramos.
Sobre o tempo, sobre a taipa,/a chuva escorre. As paredes/que viram morrer os homens,/que viram fugir o ouro,/que viram finar-se o reino,/que viram, reviram, viram,/já não vêem. Também morrem. Quando as casas morrem, espantosa é a chuva que escorre, forte, pesada, constante. É quando ela invade, matéria quase sólida, som quase sólido, líquido quase sólido. Este quase que deixou de ser e ainda não é. O potencial estado das coisas que interessa aqui é este onde ocorrem transformações substanciais, do líquido ao sólido, do seco para o molhado, do transparente para o opaco, do som ao silêncio, da vida para a morte.
A chuva intensa, sem cessar, no espaço da galeria é exemplo da extraordinária ousadia e mobilidade de formalização, sem qualquer inibição de ordem formal, que é o trabalho de Nuno Ramos. A forma não sendo mais um ideal, nem algo a ser negado, é mobilidade plástica elevada a sua potência máxima; um evento transitório entre outros, mas distinto ao exercer a sua absoluta presença - a prova de que o impraticável é realizável -, e que pode atingir o transtorno, o incomodo, o estorvo, como aqui. Uma tal força imaginativa arranca as coisas da inércia e se expressa veemente numa condição plástica quase sólida. Mostra a queda que Nuno tem por elementos de pouca utilidade e valia, materiais que parecem completamente superados no atual estágio pós-industrial. Quem quer saber hoje da parafina, do breu, da areia, disso que tem uma cara de industria velha, caduca, suja. Dessas coisas que tem pouca estabilidade e se transformam de modo tão lento e imprevisto; o que era líquido, endureceu, secou, estabilizou, assim ficou, nem vivo nem morto - coisas e também gente. E mesmo o uso atual que Nuno faz da imagem parece agir no sentido de prolongar um tumulto em andamento, uma insatisfação, até uma angústia em fixar a forma definitivamente. Tudo busca se prolongar sem um fim claro à vista, pois o desejo de não parar é grande - parar significa recomeçar, o que é mais cansativo. Continuar é menos doloroso. Sobre os trabalho paira uma modorra e uma ânsia obscura. Aqui não há como escapar: é som, é imagem, é água, é areia, o breu. Decidicamente o trabalho de Nuno sempre busca diminuir os intervalos seja lá quais forem, espaciais, sensoriais, psicológicos. Ele quer avançar, impedir a passagem, grudar. E, ainda assim, tudo está meio parado e abundantemente invadindo tudo; não se sabe se é uma lentidão violenta, ou uma violência lenta. Ao lado do barco em areia o barco em imagem, a deriva no vai e vem que é o movimento do trabalho, que dissolve e reúne, agrega e desagrega, desmancha e organiza. Toda forma fixa é um transtorno interminável, incessante, que precisa ser ultrapassado. É preciso fluir, tentar navegar, a qualquer custo.
Casco fala de um mar bem brasileiro e da vida arcaica que o ilimitado do mar limita. Três homens e uma labuta insana - serrar barcos com tal exímia, só louco. Encaixar um barco no outro e atirar tudo no mar, não é lá coisa muito sã. Tudo se passa entre o heróico e o insensato, glorioso porém modesto, eloqüente e tímido, determinado desde que confuso. Epopéia destrambelhada, o dia-a-dia de indivíduos comuns que saiu dos trilhos - um Camões bem praieiro. Tanto esforço para morrer na praia, não no alto mar como suporia um destino mais venturoso. Este o clima de desengano que ronda todos os trabalhos.
O modo como um labor árduo é aplicado tem sugestões históricas. O trabalho é tal que o suor se faz parafina, quase impede o falar dos homens explorados. Desse trabalho que não se sabe se é sobre humano ou se a exploração dele que é. Ou ambos. Então colocar essas tarefas insensatas, irrealizáveis, sugere uma alegoria à resistência do homem se fazendo igual as coisas duras e opacas da natureza, pesado, lento, cansado, quase sólido. Então temos adensamentos indolentes, dissoluções. E também dissolvências, buscando tensão distensões.
Barcos sobre a areia. Praia grande, brasileira. Miúdo mundo pictórico gênero marinha, também bem brasileiro. E a imagem a engolir tudo isto. Gestos dos homens são quase inertes, sem finalidade, bloqueados por uma lassidão - esforços absurdos. Um tempo brasileiro; vago e vagas. Inverso da Taprobana, restos de caravelas, frota desconjuntada, absurda e inglória, de três indivíduos a destruir ou construir? Fazendo de vários barcos um, destinado ao encalhe. É preciso notar as cores tão brasileiras dos barcos - barquinhos, na verdade - esquartejados à serra elétrica; mais um descompasso entre o moderno e o arcaico - labuta ociosa do fazer que a câmera num vai e vêm um tanto à deriva,desorientada, atraída mais pelas falo som que pelas imagens, registra. É a imagem que vai atrás do som, engole o som.
É uma areia dura, pesada, boa para fazer castelos. Porque não barco? Barco de areia; encalhado já nele mesmo. Enterrado nele mesmo. Barco túmulo do barco na areia frágil e dura, escura. Areia socada na mão, pois tudo é na base da mão, do corpo que sua parafina.
São ações truncadas, quixotescas, arremetidas insensatas e delirantes, banhadas por uma melancólica moleza. Os gestos abruptos e dolentes, para travar e acomodar coisas desmesuradas como barcos desconjuntados, formas ininteligíveis, obscuras. As coisa se unem por conexões as mais implausíveis, improvisos arcaizantes; derretimentos, aglomeração, encaixes precários. Os derrelitos trabalhosamente avivados novamente ao mar se lançam, incansavelmente. Suas corzinhas verde, amarelo, azul, vermelho pintam destroços familiares na praia, não em alto mar, onde nem sequer chegam. Morrem na praia, bem antes da arrebentação. É isto; morrer na praia, sem sequer chegar a navegar; ao glorioso "navegar é preciso". Será isso uma desconjuntada alegoria aos Descobrimentos, a venturosa ida ao desconhecido longínquo. A água que nos une e começa no Tejo, a longa história de barcos afundados na areia, mais atolados que submersos. Dos que morreram na praia. Som que silencia, soçobrado. Desalento, esmorecer. Palco desarrumado. Contração saturação. Tudo que é viscoso, pegajoso, grudento. Fluído. É a energia. Refluxos, marés, forças estúpidas da natureza. Mar barrento, "Gosto de poças e pantanais, animais apodrecendo, sólidos que afundam, tudo o que logo desabamos, estranhamente, queria "fixar" isto" escreve Nuno em Minuano. Neste amor pelo desbarrancar, deslizar, desmoronar, desabar está a ameaça que o quase sólido revela, dessa violência física sinistra presente na matéria que Nuno luta para fixar. A morte já está inscrita no barranco, vala, aterro, murada, matacão, nesses futuros túmulos. Na instabilidade do arranjo que é afinal o resultado, está presente o desastre em suspensão, uma violência iminente que é a contenção até na morte de Alvorada. Diante dos trabalhos de Nuno, é não só destes de agora, ficamos um tanto tensos, intrigados ao que aconteceu, atentos ao que pode acontecer e não acontece. Em suspense com o possível desencadear do que foi alterado, a procura de uma resposta à provocação, que é a mesma desde sempre.
Quando a casas morrem as vozes respondem à chuva. O volume é alto, operístico; a falas cadenciadas, altissonantes, intensificando veementes o íntimo sussurro drummondiano. Com vigor retomam o triste destino que o poema enuncia com agressiva revolta ; a entonação das vozes indica isso. Enche o peito com força eloqüente, berra na chuva e até debaixo d'água se for preciso. Essas vozes querem inundar o espaço junto com a chuva. Transbordar no espaço como cantoria de igreja e o som espacializando um grande volume, envolver e unir a todos no mesmo destino.
Kiefer fala do enorme volume vazio da História. Aqui existe um fascínio ao invadir a grandiosidade vazia da Natureza, se afastar do cotidiano, da "vidinha". Tornar um lugar monumental, qualquer lugar. Como o samba que canta a grandeza, só ela. Daí e sempre a grandeza de escala, do que se engrandece, do que no transitório está acima do corriqueiro. Enfrentar o descomunal, à deriva, é dar vazão à grandeza, sem método. Grandioso, mas indolente e lasso.
A chuva escorre, pinga muito, ruidosamente, a chuva é mais som, som que cai, sólido e barulhento; coágulos visguentos "Onde vivemos é água."(256)"É tempo de fatigar-se a matéria por muito servir ao homem." A matéria cansada da água que chove em derramamento incessante. Por que nós somos água. O som do líquido é pesado, não precisa amplificação. A voz sim, precisa. Tal um ruir, dissolvente, que cai sobre nós. E também arrasta muitas vozes que ainda querem dizer algo sufocado. Cai sobre nós na hora de nossa morte e das casas e desmorona a terra. E vai entranhando uma sensação de choque e espanto. Como aquele cemitério derreado, de lápides caídas e lama, de ervas pelas brechas, poderosas e invasoras, do abandono geral, do silêncio azedo, do hálito dos corpos subterrâneos.
A lenta violência pode se tornar rápida, sem deixar de ser absurda e ininteligível. O som pesado é curto e seco. Tão rápido que interronpe aquilo entre uma palavra e outra. Sentar a mesa como se para tomar um copo d'àgua. Para pedir um emprego. Para preencher um formulário. Para fazer um exame. Como se estivesse numa fila e chegasse a sua vez. Um a um vão sentar-se numa cadeira e cumprir o desígnio que os espera. A alvorada, cercada pela barreira, pelo muro, pelo barranco de areia socada, circunvalada, assim é Alvorada. Alvorada escrita no morro, na terra, no arrimo. Alvorada enterrada. Alvorada subterrânea. Alvorada que jaz no subsolo. Alvorada abortada. Tal alvorada faz do alvor, alvo. Do alvorecer, breu. Do início, fim. Da vida, morte. Morro por que grita ou grita porque morre. Alvorada é tiro na cabeça, execução sem pena.
A "beleza" e todo o resto - "é tão lindo, é tão lindo" - foi suprimido pelo tiro. A alvorada que podia ser bela, linda e não foi, apenas grito antes do breu derradeiro. O berro - será possível que ninguém escuta? Será possível que tenha que se usar um megafone e ainda assim ninguém parece escutar e ainda até nele dar um tiro para que se ouça.
O breu escorrendo sobre o mármore é tal um crepúsculo, tal alvorada ao contrário, lento anoitecer que vai engolindo, pouco a pouco, a alvura do mármore. Breu que engole mármore, água que engole barcos, breu que engole alvorada é Choro Negro.
Navegar então não é preciso, é preciso fazer chover. Dilúvio sem vazão e sem razão. Chuva dentro e não lá fora. Então, se dentro chove, lá fora faz sol?
Eu adoro a obra do Nuno Ramos, e sua obra já fala por si.
Posted by: Rosa Paranhos at junho 10, 2004 4:45 PMEu adoro a obra do Nuno Ramos, e sua obra já fala por si.
Posted by: Rosa Paranhos at junho 10, 2004 4:45 PM