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novembro 17, 2003
ARTE EM REVISTA
Ivens Machado é convidado a participar da retomada das Galerias da FUNARTE no Rio de Janeiro, no Projéteis de Arte Contemporânea, em julho de 2003.
Arte em revista
DÉBORA MONNERAT
No dia 11 de agosto de 2003, Ivens Machado nos recebeu para esta entrevista inaugural do projeto Arte em revista, agora editada e divulgada pelo Canal Contemporâneo. Nesta prazerosa conversa, foram abordadas algumas questões sobre a obra do artista, a partir dos trabalhos que apresentou na exposição de lançamento da série Projéteis de Arte Contemporânea, na Funarte, Rio de Janeiro.
Débora Monnerat
DÉBORA MONNERAT - Na exposição de lançamento da série Projéteis de Arte Contemporânea, você apresenta uma escultura e um desenho, frente a frente, como duas projeções de uma mesma imagem, que tensionam seus limites, provocando um novo fluxo imagético. A tensão e o desvio, sempre presentes em sua obra, se apresentam de que forma nesses trabalhos?
IVENS MACHADO - Eu sempre trabalho muito intuitivamente, mas as coisas acontecem porque elas têm uma estrutura que foi criada durante anos e que, de repente, se manifesta. Então, a minha tendência - que aliás é uma tendência que me agrada - é pensar um pouco magicamente, como se aquilo fosse um acontecimento totalmente inconsciente, o que não é. É muito engraçado, por exemplo, a presença desse grande desenho, uma coisa muito ligada à minha experiência, à minha vivência da arte - que no meu trabalho é muito física. Não dá para notar, mas existe uma ação sempre ligada ao movimento da direita e uma outra ao movimento da esquerda. Esse trabalho poderia se chamar Direita e Esquerda. Todos os círculos são com o braço e a mão diretos e todas as retas são com a esquerda. E o engraçado é que são cores que não são cores. Na verdade, aquilo não é cor, é simplesmente um relevo. Aquele vermelho e aquele preto que eu uso muito no meu trabalho, não posso dizer que sejam cores porque não têm nenhum colorismo, são coisas muito primárias. É como se fosse realmente um risco inicial. Mas a fisicalidade desse trabalho se representa ali de maneira bidimensional, apesar da areia e da terra envolvidas. E o outro trabalho, na verdade, é um corpo. Um corpo estendido, da cidade. Acho muito interessante esse material, que é aleatório porque eu permiti que fosse. Não escolhi esse material; pedi tantos metros cúbicos de entulho... e é lindamente rico este entulho, tem pedaços de piso, tacos de madeira, pedaços de tubo, de caixas, tem de tudo. Então, é um 'corpo de lixo'. Gosto demais dele. Agora, essa coisa de que tu falas... isso já é uma visão poética tua muito bonita, isso de que entre as duas manifestações existe uma terceira.
DM - Eu também penso muito no desenho como se fosse um fluxo que você não consegue ver, mas que está ali naquele corpo parado. Ele está distendido, ele tem um peso e você não consegue ver esse movimento. Então, algo que está ali é projetado num outro espaço.
IM - Eu nunca pensei sobre isso... Mas esse terceiro corpo, essa presença imaterial, eu acho que está sempre presente num trabalho de arte. Na verdade, eu talvez tenha escrito sobre isso... [referência ao texto publicado em 1994 no folder do projeto Atelier Finep, no Paço Imperial, e que também consta no livro Ivens Machado O Engenheiro de Fábulas]. É uma coisa que não está ali, mas que é ali.
DM - E que você sempre remete para o inconsciente, não é?
IM - Claro. Quer dizer, esse inconsciente tem que ser revisto.
DM - Não é o inconsciente freudiano.
IM - Claro, não. É um inconsciente, na verdade, composto de memória. Ninguém constrói um trabalho assim, gratuitamente. Por isso é que essa idéia mágica de que a coisa "acontece"... Não. Ela acontece porque tem um substrato, uma coisa que suporta isso. E se ela é consistente, esse substrato também é consistente. Então, aquilo está ali porque muitas coisas já estiveram ali. Quer dizer, não é assim: "Tchan"! Não é "mágica de Super-Homem". É uma coisa que está estruturada. Uma coisa que eu tenho em relação ao meu trabalho e que acho deslumbrante: tenho uma imaginação muito fértil, muito clara, e antes de realizar a obra, ela já está pronta na minha cabeça. Mas é surpreendente quando eu vejo esse trabalho realizado, porque, na verdade, não é aquilo. Quer dizer, é aquilo, mas não é aquilo. Ele tem exatamente as mesmas medidas, o mesmo elemento, mas não é. Então, isso é uma coisa que me parece mágica, que é exatamente aquele além, aquilo que não está ali. E tem essa coisa da presença ausente de que fala a física moderna, dos corpos que a gente não vê, mas que estão ali e a gente sabe que eles existem. É muito bonito isso. Um trabalho significativo tem esse aspecto, essa ampliação da imagem, a multiplicação da imagem.
DM - Você falou desse material aleatório que são resíduos de obras, mas há cerca de um ano você trabalha com esses resíduos, sejam de concreto, de telhas, de tijolos...
IM - Mais tempo até, basta lembrar do meu primeiro trabalho com argila e com cacos de telha em 2000, em Cabo Frio. Acho que isso foi o início desse trabalho, montado, porém, de maneira diferente. Esses trabalhos atuais, do ano passado para cá, eles são acúmulos. Os outros têm uma construção, uso o concreto como um elemento aglutinante. Mas se tu pensares no caco de vidro em 1979...
DM - É claro. Mas é como se o material estivesse numa outra situação, num outro estado...
IM - Isso é o interessante... Hoje em dia, aparentemente, ele é aleatoriamente catado, captado e colocado ali. Os elementos construídos são os suportes para isso. A única coisa que é construída são os ganchos para suportar aquelas redes, aqueles containers, aquilo que contém esse material. Eu acho isso muito legal, porque sempre fui uma pessoa que construiu muito marcantemente o trabalho. Na verdade, quase levantei edifícios, casas, no sentido de que são estruturados. Hoje - o que não quer dizer que isso seja definitivo -, essas coisas são sacos: um lugar que abriga coisas. E é impressionante como é rico esse material.
DM - Li numa entrevista recente que você considera que a obra de arte deveria representar o perigo. Por que isso? Por que o perigo? Que tipo de perigo?
IM - Um bom trabalho tem que trazer esse elemento que ameace. Sempre trabalhei - talvez nos primeiros momentos, intuitivamente - com a idéia de captar essa ameaça, essa realidade ameaçadora. Não é só o caco de vidro, quando o uso ele reporta a uma sensação dolorosa que não está ali. Mas, por exemplo, tenho essa vivência: quando vejo o que é a origem desse trabalho, os muros protegidos pelos cacos de vidro, imediatamente tenho a sensação do corte. E, de alguma maneira, acredito que tenha sido sempre consciente na produção da minha obra a idéia do ameaçador, do perigo, daquela coisa que pode cair, pode machucar. Talvez fosse até o fato de haver a escolha de um material às vezes tão impróprio, mas que, de repente, se tornou um elemento que eu privilegiei e decidi usar. É essa coisa que um trabalho de arte tem que ter. Ele tem que trazer algum tipo de desconforto, de ameaça mesmo. É a 'relação com corpos'. Eu sempre tive a consciência de que criei corpos. Sempre tive uma fantasia muito engraçada, e até bastante primitiva, simplória, de que esses corpos podiam tomar vida e caminhar, andar. Mas nessa construção, o que acontece é que ela precisa ter uma coisa que os corpos têm: a aproximação. As pessoas perdem um pouco esta noção. A gente tem um pensamento primitivo, que ainda se manifesta, de que a presença do outro é ameaçadora. E ela deve ser ameaçadora porque, na verdade, a gente tem um campo de segurança que cerca a gente. Daí, inclusive, podemos até fantasiar que o amor vem disso. O amor é como o abraço dos pugilistas - aquela imagem que te ameaça, tu te abraças a ela... e te entegras a ela para impedir que ela te agrida. O negócio é por aí, é mais no sentido de defesa, entende?
DM - Essa relação física que você tem com o seu trabalho, e que nas esculturas remete às suas performances, na verdade já existia desde os seus desenhos. Você era muito ameaçador... Você ameaçava o desenho o tempo todo, porque você estava intervindo o tempo todo.
IM - É um tipo de construção mental. Eu vinha tentando, subrepticiamente, inserir algum elemento que destruísse aquela estrutura, aquela ordenação. E isso é um projeto de vida, que é perigoso e autodestrutivo.
DM - Voltando à exposição da Funarte, como você vê esse momento de resgate da instituição?
IM - Isso é básico, a gente precisa ter uma instituição que tenha parâmetros diferentes das outras. O Rio de Janeiro tem mais centros culturais do que galerias comerciais, o que é muito interessante. Mas haveria a necessidade de uma instituição - e a Funarte poderia suprir essa carência - que não só permitisse a exposição de artistas com um bom projeto, mas fosse uma instituição que desse alguns parâmetros para o jovem artista; que criasse algum tipo de 'filtro didático'. Isso está faltando, especialmente para os muito jovens. E esse resgate de uma atividade que foi bem realizada há alguns anos e que precisa ser reativada, motivada, é importante: um lugar em que haja discussões de pensamentos, métodos. Esse lugar o novo governo tem que pagar e tem um custo; mais isso do que os espaços expositivos, um lugar onde se possa pensar.
DM - Hoje, no Brasil, nós somos muito carentes de informação sobre o que está acontecendo na arte dentro e fora de nosso país. Fica muito esquisito você produzir um trabalho, expor e depois isso não ter continuidade...
IM - Não se propaga... As pessoas não têm noção do trabalho que é organizar uma grande exposição, por exemplo, e até uma pequena exposição. É super complexo. E isso é muito informativo e didático. É uma questão mesmo de experiência, de ser mais ou menos adulto, assumir aspectos mais complexos. Parece que a atividade de artes plásticas, pelo menos como é vista pela grande maioria do público, é uma festa, é feérica. Mas ela é muito complexa. O que está implícito ali em termos de discussões, de pensamento, de contrariedades...
DM - Falta informação e comunicação.
IM - É uma valorização da atividade, que deve ser vista como é e não como parece ser. Inclusive, porque existe um número enorme de pessoas que não têm voz dentro do nosso campo das artes plásticas. Houve, por um processo que não sei explicar, um embotamento dos artistas, dos pensadores de arte. Todo mundo ficou introjetado. Então, isso precisaria ser esclarecido.
DM - E a Bienal do Mercosul?
IM - Acredito que vai ser muito gratificante. Estou tendo essa experiência do Sul... Eu venho de lá e estou fazendo um esforço de voltar um pouco.
DM - Na verdade, o Sul do Brasil praticamente não conhece o seu trabalho. Você tem projetos de exposição lá?
IM - Há a possibilidade de uma exposição numa galeria, a Bolsa de Arte de Porto Alegre. Devo fazer uma prévia dessa exposição durante a Bienal do Mercosul, junto com o Saint-Clair Cemin. Em Florianópolis, há a perspectiva de realizar a minha retrospectiva e espero que a minha exposição possa contribuir para o panorama da arte em Santa Catarina. É a retomada do Sul...
DM - Florianópolis não conhece o seu trabalho?
IM - Não. Então vai ser engraçado... Se essa retrospectiva se realizar vai ser muito interessante, porque agora em outubro inaugura a exposição do grande artista catarinense, que é o Vítor Meirelles e, depois, virá a minha exposição. Serão dois mundos bem diferentes, de dois artistas que fizeram o seu trabalho fora de Florianópolis. De alguma maneira a cidade está resgatando essas imagens que perdeu até por uma certa falta de conhecimento. Vai ser legal.