|
agosto 6, 2003
Alfabeto Visual 29/7: Um almoço na relva
Le déjeuner sur l'herbe (1863), de Edouard Manet: inaugurando a arte moderna.
Almoço pra fora (julho 2003): grupo de estudantes amplifica o debate ético/estético.
Um almoço na relva
Cena 1 - bucólica: O quadro "O almoço na relva" (1863), de Edouard Manet - "um homem do seu próprio tempo", segundo ARGAN (a arte moderna) - rompendo a aurora do modernismo na arte.
Trata-se de uma pintura cujo tema indignou o público da época: uma mulher nua conversa com dois senhores, vestidos. Não mais anjos, santos ou mitos, mas pessoas comuns. Recusado no Salão Oficial de Arte, em Paris, sua obra foi exposta no Salon dês refusés, o que acabaria por gerar o próprio movimento Impressionista. A partir de então, a arte começava a sair do confinamento do atelier e a se interessar por fenômenos naturais, como a luz, o cotidiano das pessoas, as coisas da realidade. Segundo a professora/doutora em história da arte Marta Dantas, esse quadro dá início a arte moderna. Não é pouco.
Cena 2 - conexões: Em 1970, o artista Cildo Meireles cola mensagens de cunho poético/político no vidro dos cascos de garrafas de coca-cola - que, vazios, torna imperceptível seu texto - devolvendo-as à circulação. Suas "inserções em circuitos ideológicos" é a prova de que a arte, definitivamente, estava disposta a enfrentar a realidade, ampliando as possibilidades de atuação, independente da instituição ARTE, como avalista da obra.
Outra: Na 25ª Bienal de Arte de São Paulo, em 2002, o artista Rubens Mano criou uma passagem no lugar de uma das cortinas de vidro do prédio da Bienal, em um trabalho que discutia a relação dentro/fora, controle/não controle institucional. Uma passagem em que o público poderia "vazar" para dentro do prédio sem o controle da catraca, rompendo não só o sistema de vigilância e segurança, mas com a noção do espaço interior/exterior determinante de uma condição. Uma passagem apenas, e a arquitetura se amplia além de seus limites protetores/repressores.
Cena 3 - a herança: Hélio Oiticica (1937-1980) estava interessado em uma "arte ambiental". Toda sua trajetória foi marcada pelo rompimento do estatuto do espectador da obra de arte, para fundar uma relação entre participador/obra de arte. Não mais só a contemplação, agora a vivência. Para isso criou seus ninhos, parangolés, penetráveis, casulos.
Cena 4 - desobediência civil: Thoreau, Mahatma Gandhi, Martin Luther King. Ou, de como a arte pode conectar elementos díspares e antagônicos fundando a experiência de uma postura de vida em relação à realidade. Quer dizer: traduzir questões da tradição, atraindo para si a possibilidade, até, da traição, do roubo, do choque. E isso ser, AINDA, uma experiência poética.
Cena 5 - vida/obra, obra viva: Um grupo de estudantes de Londrina se reúne para, em comum acordo, saírem com as bandejas do almoço para fora do prédio do restaurante universitário (R.U.). Uma insolência aos olhos de qualquer instituição autoritária, que precisa criar regras e burocracia de controle para evitar qualquer tipo de criatividade, qualquer despertar de consciência, qualquer manifestação de liberdade, desejo e prazer.
Não houve, exatamente, repressão. Apenas a segurança não estava preparada para uma ação tão sutil, delicada e, por incrível que pareça, inusitada como essa, de fuga do controle. Sinal que a freqüência é civilizada!
Uma ação comunitária dentro da comunidade. Uma atuação dentro do próprio cotidiano para sair do confinamento do prédio arquitetônico, fechado, barulhento. Um dia agradável convidando para se almoçar na relva, para ceder os lugares na mesa, para desfrutar o ar livre. Uma abertura de caminho, a possibilidade de criação de um hábito. Sem reclamar nenhum ato, senão a ação em si.
Não-obra, ou autoria, mas fluxo, continuidade, entrecruzamento de anseios: "Socialmente. Economicamente. Filosoficamente" (Oswald de Andrade, 1928). Para ser alguém "de seu próprio tempo". Seja "almoçando na relva" ou jantando as tradições.
Rubens Pileggi Sá é artista plástico e está lançando o livro com os textos do Alfabeto Visual.