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maio 5, 2005

Resenha sobre o Luz & Letra de Eduardo Kac por Priscila Arantes

Século das luzes

PRISCILA ARANTES

Publicado originalmente no Cibercultura do Itaú Cultural

Livro: Luz & Letra, Eduardo Kac - Editora Contra Capa, 2004, R$ 56,00


Transitando nos domínios interdisciplinares que equacionam arte, ciência e tecnologia Eduardo Kac vem desenhando uma trajetória singular dentro do panorama mais geral da arte contemporânea. Seus trabalhos não têm hierarquia e não se restringem à investigação de um domínio específico, podendo discutir desde questões que dizem respeito à tridimensionalidade do espaço - como é o caso de seus holopoemas desenvolvidos a partir dos anos 80 - quanto explorar as potencialidades poéticas oferecidas pela arte da telepresença e arte robótica. Um dos pioneiros na aplicação artística de um amplo leque de novas tecnologias, Eduardo Kac vem investigando, recentemente, as dimensões estéticas abertas pelo novo fronte biológico, desenvolvendo trabalhos relacionadas à biotecnologia e à metamorfose da vida.

A prova de sua elaborada interface entre arte, ciência e tecnologia é o livro "Luz & Letra" lançado em fins de 2004. Reunindo artigos e textos escritos por Eduardo Kac em jornais diários entre os anos de 1982 e 1988, "Luz & Letra" reflete sobretudo o interesse do artista em documentar as principais conquistas da arte eletrônica brasileira na década de 80, e ainda coloca em debate reflexões importantes para se entender os labirintos complexos da arte-ciência. Constituído por 4 partes "Artes Plásticas", "Tecnologia e comunicação", "Literatura" e "Documentos", e contando com apresentação de Abraham Palatnik e prefácio de Paulo Herkenhof, "Luz & Letra" em suas 426 páginas convida o leitor a imergir no ambiente criativo e experimental da produção artístico-tecnológica dos anos 80.

Munido de sólido arcabouço teórico e apurada percepção estética, Kac projeta suas idéias na análise crítica de uma série de obras de artistas nacionais e do exterior tais como Hudinilson Jr., Wilson Sukorski, Mario Ramiro, Otávio Donasci, Reynaldo Jardim, Abraham Palatnik, Nam June Paik, Antoni Muntadas, Margareth Benyon, entre outros, para justapor a revolução da arte tecnológica com as mudanças de paradigmas no mundo das ciências. Assim, mergulha nas dimensões intrincadas da arte-ciência: "Quando Einstein, no início do século, virou o mundo de cabeça para baixo com a teoria da relatividade, mal podia supor que a consciência aberta por sua ousada concepção de leis do universo desencadeasse transformação tão violenta nos rumos da estética contemporânea. Hoje, no Brasil surgem artistas que se preocupam com questões científicas e tecnológicas. Vistos em conjunto, flagram um processo criativo radical, uma verdadeira revolução high-tech na arte brasileira".

São muitos, ao longo da história, os casos de artistas fascinados por temas da ciência e de cientistas que buscaram inspiração no campo da produção artística. Leonardo da Vinci e Albert Dürer, por exemplo, foram também grandes cientistas, assim como Nicolau Copérnico e Louis Pasteur talentosos artistas. Sabemos que a aproximação entre arte, ciência e tecnologia não é recente e muito menos produto de nosso século. Contudo a partir do século 20 esta interface parece ter ganhado contornos mais intricados. O desenvolvimento da física quântica, nas primeiras décadas do século passado, levou à incorporação da incerteza ao mundo científico, na mesma época em que noções semelhantes foram exploradas no mundo das artes. Maurits Escher, por exemplo parece ter explorado em suas litografias estruturas geométricas semelhantes àquelas previstas pelas equações de Einstein. A abolição da idéia do tempo único, a partir das propostas de espaço-tempo trazidas pela teoria da relatividade, podem corresponder na literatura modernista, à decadência dos enredos lineares tais como os contos do escritor argentino Jorge Luis Borges. Há de certa forma um certo parentesco entre as relações espaciais e as visões de espaço-tempo introduzidas pela relatividade e a ruptura com a perspectiva única e central colocada pela estética cubista ou mesmo pela música atonal, inaugurada com o Opus 11, composto pelo compositor austríaco Arnold Schoenberg em princípios do século passado.

É dentro desta perspectiva e das novas dimensões colocadas pela interface entre arte, ciência e tecnologia que Eduardo Kac discute e analisa uma série de trabalhos que fazem parte do repertório de "Luz & Letra". Assim, a aplicação da holografia no campo artístico inaugura uma nova gramatologia ao encapsular o espaço tridimensional no tempo. A sintaxe do poema holográfico, diz Kac, "se torna relativizada pelo ponto de vista no espaço do leitor-observador. De um ângulo, ele pode ver duas letras flutuando na frente do suporte. De outro, as letras podem sumir e apenas uma sílaba levitar suspensa na altura do suporte. De outro ainda, pode aparecer no espaço uma palavra ocupando o mesmo lugar que uma letra grande, em desafio às leis da Física que asseveram que dois corpos não podem estar simultaneamente no mesmo ponto". Também no holocinema Kac entrevê as possibilidades da quarta dimensão. Em "O Sonho", holofilme de oito minutos e trinta segundos apresentado pelo artista inglês Alexander na XIX Bienal Internacional de São Paulo (1987) o presente, o passado e futuro da ação foram dilatados para proporcionar uma experiência temporal não linear ao observador, diluindo a visão de um tempo-espaço absolutos. Percebendo a importância da ciência e tecnologia para os rumos da arte do futuro, Kac discute ainda a arte robótica passando pela apresentação, em 1964, de "Robot K-456", de Nam June Paik, para chegar à exibição do "RC Robot", de sua autoria, no evento Brasil High Tech (1986). A aplicação da inteligência artificial no mundo das artes também não escapa a Kac, como é possível ver no ensaio Wilson Sukorski: música e inteligência artificial.

Um dos pontos fortes de "Luz & Letra" diz respeito ao fato de explicitar a idéia de que estas novas práticas artísticas que se situam nos terrenos movediços entre ciência e tecnologia, questionam nossas formas habituais de percepção. No futuro, afirma Kac, "ainda que as formas tradicionais de expressão convivam com a arte eletrônica, o poder de questionamento da percepção e dos mecanismos sensoriais do homem, que é a própria natureza da arte, será agenciado somente por obras erigidas na linguagem tecnológica". Neste ponto o pensamento crítico de Kac se localiza entre Walter Benjamin e Marshall McLuhan. De Benjamin poderíamos lembrar seu ensaio "A Pequena História da Fotografia" em que desenvolve o conceito de "inconsciente óptico", assinalando de forma clara e precisa as modificações trazidas pela fotografia à percepção humana. Nós não fazemos nenhuma idéia, diz Benjamin, da "atitude de um homem na exata fração de segundo em que ele dá um passo", ou do que "se passa verdadeiramente entre a mão e o metal" no gesto de pegar um isqueiro ou uma colher que nos é aproximadamente familiar. Mas a fotografia, diz, através de seus inúmeros recursos auxiliares, como câmara lenta e ampliação nos mostra este segredo: "ela nos abre, pela primeira vez, a experiência do inconsciente óptico, do mesmo modo que a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente pulsional". McLuhan em "Os Meios de Comunicação como Extensão dos Homens" afirma que "o emprego da eletricidade em situações anteriormente mecanizadas faz com que os homens facilmente descubram padrões e relações causais antes impossíveis de serem observadas devido aos lentos índices das mudanças mecânicas". De modo semelhante Kac nos conduz à poesia holográfica ou às esculturas infravermelhas desenvolvidas por Mario Ramiro, que fogem aos limites sensoriais da visão humana.

Longe de desenvolver uma visão negativa em relação aos efeitos da tecnologia no mundo contemporâneo Kac aponta para seus efeitos positivos como é o caso de "A Nova Visão do Corpo", em que discute as aplicações da computação gráfica na medicina para a preservação da vida humana.

Na terceira parte de "Luz & Letra", Eduardo Kac examina as trajetórias da poesia experimental brasileira. Da poesia concreta, passando pelos poemas-objetos de Ferreira Gullar e pelos poemas-processo de Wladimir Dias Pino, até chegar à holopoesia e aos poemas digitais de Erthos Albino de Souza, Kac fornece dados importantes para o entendimento dos novos procedimentos poéticos que explodiram em meados do século passado em nosso país. Cabe ainda ressaltar o clima de busca por instrumentos de ação política por meio da literatura que, na época, parecem ter encontrado eco, entre outros, nos poemas corporais produzidos por Kac, da qual "Escracho" parece ser um dos melhores exemplos. Estes poemas reverberam em suas obras mais recentes, principalmente naquelas em que o corpo humano e vivo é suporte para a produção artística. Sob este aspecto vale a pena lembrar seu trabalho "Time Capsule" (1997), quando implantou um microchip com um número de identificação em seu próprio tornozelo, registrando-se, através da Internet, em um banco de dados. Esta experiência coloca em debate não somente os processos de vigilância e controle desenvolvidos pela sociedade contemporânea, bem como discute questões sobre a natureza e os limites éticos da manipulação do humano.

"Luz & Letra" é, neste sentido, uma referência indispensável a todos os que pretendem entender não somente as dimensões estéticas da utilização dos meios tecnológicos na produção artística bem como as mudanças de paradigmas trazidas pela interface entre arte, ciência e tecnologia.

Priscila Arantes
É pesquisadora e crítica de arte e novas mídias, professora do Curso de Tecnologias e Mídias Digitais da PUC/SP e doutora pelo Programa de Comunicação e Semiótica da PUC/SP, onde desenvolveu a tese "Arte e mídia no Brasil: por uma estética em tempo digital".

Posted by Patricia Canetti at 6:38 PM