|
dezembro 21, 2009
Cultura Computacional
Os tempos atuais exigem outros entendimentos sobre a relação entre arte e técnica. A complexidade com que os tempos contemporâneos engendram a subjetividade vão muito além das possíveis simplificações a que estávamos acostumados. As formas representacionais das informações e do conhecimento que hoje existem já exacerbam as questões do século XX como autoria, autor, remixagem, colagem e colocam em questão a própria concepção de sujeito em relação aos aparatos tecnológicos mediados via computador. Pierre Francastel, ao analisar o texto de Sigfried Giedion Mechanization Takes Command (WW Norton, 1969) observa a interrelação entre homem-máquina e afirma que “o objetivo da máquina não era mais reproduzir ou simplesmente melhorar os gestos manuais...uma nova representação do poder do homem no trabalho confronta o conceito puramente quantitativo do aumento da produção”
O teórico russo Lev Manovich, influenciado pelo texto de Giedion, observa que a cultura contemporânea vive um novo momento em que as máquinas foram substituídas por processos abstratos gerados através dos sistemas computacionais, o que ele resolveu denominar de “Software Takes Command” , uma espécie de homenagem ao texto de Giedion. Para Manovich "Software is the engine of contemporary societies", ou seja, atualmente os processos sociais, em sua grande maioria, são regulados via software.
Podemos afirmar com facilidade que não há mais tráfego em grandes capitais do mundo que não funcione e seja regulado por softwares, que não há telefones que não operem ou demandem programações complexas via software, que os controles das torres aéreas funcionem e se auto-regulem via emaranhados complexos de informações, entre várias outras esferas sociais, que vão da administração de estoques de supermercados à reação do público a determinado candidato em uma eleição. Tudo passa a sofrer influência de processos algorítmicos e as decisões se tornam dependentes de análises desses resultados complexos promovidos pelo software. Em outras palavras, a técnica deixa de ser física e passa para uma abstração que, apesar de não se fazer presente, altera e configura outros processos de compreensão da subjetividade contemporânea.
No campo da arte computacional, as primeiras experiências artísticas mediadas via computador foram criadas em 1952, com a composição Electronic Abstractions de de Ben Laposky, que utilizava um computador analógico ligado a tubos de raios catódicos. Já as obras em computação gráfica surgiram nos anos 1960, quando Kurd Von Alsleben e William Fetter criaram as primeiras imagens mediadas via representação computacional na Alemanha. Em 1967 Frank Malina, pai de um dos maiores críticos das artes digitais, Roger Malina, criou a revista de arte digital Leonardo, hoje editada pela MIT Press e produziu as primeiras obras de arte cinética com o uso do computador. As primeiras exposições de arte digital foram a Cybernetic Serendipity, no Instituto de Arte Contemporânea em Londres, com a curadoria de Jasia Reichardt em 1967 e em 1970 a mostra Software, Information, Technology: Its New Meaning for Art, com a curadoria de Jack Burnham no Jewish Museum de Nova Iorque (STILES, Kristine, Art and technology em Contemporary Art. STILES, Kristine & SELZ, Peter (org.), Berkeley, UC Press, 1996).
O campo da Arte Digital é o encontro dessa denominada cultura computacional com o campo da arte e da cultura, e procura analisar o seu impacto e influência nas mais variadas áreas culturais da sociedade, procurando deslocar o debate, que geralmente se dá por meio da computação ou das “novas tecnologias” (que são computacionais), para as relações que envolvem o computador e suas representações como elemento de criação. Acredita-se que esse deslocamento seja essencial, pois trata-se de promover a discussão em torno da linguagem em relação com as particularidades do processamento, não mais partindo somente da discussão sobre a máquina computacional nem somente dos processos de programação, mas tentando interdisciplinarmente pensar nos dois aspectos concomitantemente. Pensando em software como linguagem, será necessário reposicionar as questões que hoje envolvem conceitos como “cibercultura”, “virtual”, “hibridismo”, “interatividade”, “simulação”, entre outros - que foram criados e resgatados de outros campos para configurar o universo da máquina computacional ou os mecanismos das “novas tecnologias”6.
Evidentemente, a complexidade da linguagem dos softwares é um dos problemas fundamentais para a sua compreensão. A aceitação passiva pela sociedade de tal complexidade, além de promover ações culturais pouco refletidas como blogs, sites de relacionamentos como Orkut, Facebook e Myspace, promovem também produtos visuais e sonoros com desenhos pré-definidos como aqueles que são produzidos por softwares como Adobe Flash e After Effects. No campo da educação, a interatividade proporcionada pelos chats talvez seja o ponto que melhor demonstra os efeitos computacionais em seus novos empreendimentos. O que se quer dizer, em resumo, é que os softwares estão sendo recebidos como se fossem máquinas - e mais ainda: como se fossem máquinas mecânicas ou eletrônicas com formatos pré-estabelecidos sem se levar em conta a maleabilidade e flexibilidade de seus códigos.
Se por um lado temos maleabilidade, por outro percebemos sua complexidade, daí a necessidade de se observar com maior profundidade os efeitos e procedimentos do computador e do software na cultura e na arte. Por exemplo, no campo das artes observa-se que as grandes exposições que legitimam a arte contemporânea como as bienais, as mostras importantes em museus reconhecidos não exibem trabalhos sofisticados de arte computacional. Mesmo lembrando que os inúmeros vídeos destas exposições são exibidos a partir de matriz digital e portanto computacional, é preciso deixar claro que eles poderiam ser exibidos em vídeos analógicos ou película cinematográfica. Ou seja, a linguagem computacional digital à disposição não está em jogo. Por outro lado, observa-se que as produções computacionais ficaram relegadas aos festivais (dos quais o Festival Internacional de Linguagem Eletrônica (FILE), o Prêmio Sérgio Motta de Arte e Tecnologia e o Itaú Cultural são exemplos) e aos centros de tecnologia como o ZKM (na Alemanha) ou Ars Electronica (Áustria). Suspeita-se que é a própria complexidade do software é que inibe sua exibição - já que a arte contemporânea tem como procedimento tradicional revelar seu próprio meio. Percebe-se um tratamento bastante focado na interatividade como efeito intrínseco às obras, sem uma reflexão sobre tal cultura. Acredita-se que promover estudos sobre o computador e o software poderá ser o começo de outro caminho para as artes e seu campo conceitual.
No campo artístico, a complexidade da linguagem digital pode ser percebida nas inúmeras maneiras de se distribuir a informação e pela maneira com a qual os estudantes de artes visuais fazem uso dessa informação que lhes é transmitida. O software é uma ferramenta crucial, muitas vezes invisível, para a disseminação da informação, mas pode ser também vital para um bom aproveitamento de uma disciplina pelo aluno. Como sabemos, não basta o acesso à máquina, mas sim o que fazer com esse acesso, de que forma construir um processo criativo mediado via softwares, que softwares escolher para produzir obras on-line, em que momento introduzir ferramentas mais complexas, tais como widgets com vídeos, música, animações e hipertextos. Essas decisões são, quase sempre, baseadas nos softwares e nas linguagens existentes. Antes da chamada Web 2.0, um artista não podia postar, em tempo real, uma foto associada à um vídeo em um blog e depois criar um comentário compartilhado com todos os membros do Blog, ou da sua comunidade e receber, também em tempo real um feedback de seus pares. Além disso, com a introdução dos denominados “mashups”, ficou cada vez mais complexa a forma de interagir nos sistemas, pois essas “fusões” permitidas pela estrutura do software que funciona on-line em tempo real permite que um artista crie links e insira em sua página ou blog pessoal informações de outros sites, utilize mapas para se localizar ou mostrar alguma coisa importante, que insira imagens advindas de outros sistemas de gerenciamento de imagens e que publique vídeos em formato “embed” que estão postados em sites como Youtube, Vimeo, entre outros.
Os sistemas de publicação on-line cada vez mais incorporam essas possibilidades de uso das redes, mesmo sem saber conscientemente, que os softwares são responsáveis, ou melhor, que o software é a base da linguagem que permite uma representação do que estamos vivenciando e vendo na superfície da tela. Pode-se inclusive supor que existe uma relação entre a complexidade desta linguagem e o recurso do uso excessivo de termos filosóficos em sua conceituação na área de humanas. Se tal afirmação pode mesmo ser constatada, pode-se conceber o esvaziamento teórico do campo em suas discussões, pelo esforço do empréstimo conceitual em detrimento de uma construção conceitual mais aproximada do próprio campo que possa oferecer maior riqueza e sofisticação metafórico-conceitual.
4 Pierre Francastel, Art & Technology. Nova Iorque, Zone Books, 2000, p. 100.
5 Lev Manovich. Software Takes Command. La Jolla, Software Studies Initiative, 2008.
6“Para começar, precisamos fazer uma distinção entre novas mídias e cibercultura. Em meu ponto de vista eles representam dois campos de pesquisa distintos. Eu definiria cibercultura como o estudos de vários fenômenos sociais associados com a Internet e outras formas novas de comunicação em rede. Exemplos do que cabe nos estudos da cibercultura são as comunidades on-line, os jogos multiplayer on-line, os problemas da identidade on-line, a sociologia e a etnografia da utilização do e-mail, o uso do telefone celular em várias comunidades e assim por diante. Observe que a ênfase é no fenômeno social; a cibercultura não lida diretamente com novos objetos culturais surgidos e possibilitados pelas tecnologias de comunicação em rede. O estudo desses objetos é o domínio das novas mídias. Além disso, as novas mídias estão preocupadas com os objetos culturais e paradigmas possibilitados por todas as formas de computação e não somente pelas realizadas através das redes. Para resumir: a cibercultura é focada no social e nas redes; as novas mídias são focadas no cultural e na computação. (Lev Manovich, New Media From Borges to HTML em New Media Reader, organização de Noah Wardrip-Fruin e Nick Montfort, Cambridge, MIT Press, 2003, p. 16, minha tradução).
Texto retirado do Relatório da Curadoria de Arte Digital - Cícero Inácio da Silva
Cultura Digital - http://culturadigital.br