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agosto 24, 2009
Duas mentes e um futuro digital por Rafael Cabral e Filipe Serrano, Estadão
Duas mentes e um futuro digital
Matéria de Rafael Cabral e Filipe Serrano originalmente publicada no Estadão, em 18 de agosto de 2009.
Um é russo e o outro brasileiro. O que Lev Manovich e Artur Matuck, dois dos maiores pensadores da sociedade pós-digital, pensam sobre as mudanças e desafios de hoje?
Em 1984, o termo ciberespaço foi popularizado com a publicação de Neuromancer, de William Gibson. Hoje, 25 anos depois, seu uso não faz mais o menor sentido. Ao menos é isso que defende um dos mais respeitados teóricos da cultura digital, o russo Lev Manovich, professor-diretor do grupo de Estudos Culturais do Software na Universidade da Califórnia e um dos palestrantes do Festival Internacional de Linguagem Eletrônica (FILE) deste ano. Projetada como uma utopia na ficção cyberpunk, a web se concretizou e, com o tempo, “foi totalmente domesticada e assimilada”. Não há mais razão, portanto, para diferenciar online de offline, ou mesmo cultura de tecnologia: “Esses espaços se fundiram e hoje são o mesmo. É tudo um fluxo contínuo”.
O remix, por exemplo, era tratado com desconfiança no início dos anos 1990 e hoje já é, segundo Manovich, “uma prática cultural dominante”. “Todos os dias, agregadores e leitores de RSS embaralham notícias produzidas por jornais do mundo todo. Isso mostra que o remix já é o padrão”, afirma.
Para ele, a separação entre os mundos real e virtual valeu só até 2005, quando a fusão se completou, com a ascensão da web 2.0 e das mídias sociais. A interatividade que isso trouxe é “uma mudança fundamental para a cultura humana”, mas apenas o começo do que uma sociedade inteiramente digitalizada poderá produzir.
“A Wikipédia e os textos colaborativos mudaram a maneira como a informação é produzida, compartilhada e recebida. Porém, isso não é nada perto do que virá”, projeta.
Mas o que virá, afinal? Basicamente, um mundo em que o conceito de autoria fica cada vez mais borrado e, aos poucos, deixará de existir da forma como o encaramos - assim como o ciberespaço futurista de Gibson. Todos seremos autores a cada livro lido, game jogado, disco ouvido.
Sim. Parece - e é mesmo - teórico demais. Mas já estamos dentro disso a cada vez que jogamos um videogame, diz o pesquisador. “Nos games”, exemplifica, “a chance de duas pessoas percorrerem o mesmo espaço e fazerem as mesmas decisões é próxima do zero”. A arte do futuro não será mais feita de quadros ou instalações e nem mesmo de conceitos, e sim de cada jogo iniciado, da “experiência de cada pessoa”.
Com todo o futuro já bolado na cabeça, não é de se surpreender que Manovich tenha um certo tédio nas formas que teimam em se manter, como a do álbum na música e a do livro (“estático”) na literatura. “Por que eu gastaria quarenta horas acompanhando a vida de alguns poucos personagens? Isso me parece velho e desinteressante”.
A tensão entre a velha e a nova mídia, que ele estudou em seu livro mais comentado, The Language of the New Media (A linguagem da nova mídia), ainda não teria produzido um efeito significativo nos escritores. Segundo o professor, eles estão perdendo, na batalha pela atenção dos leitores, para os milhares de blogs na internet.
Para Manovich, os livros só merecerão sua cabeceira quando estiverem dispostos a se renovar. Mas como? “Que tal um livro que seja uma interface para tudo o que os habitantes de São Paulo falam quando estão online? Esse sim seria um livro pelo qual eu me interessaria”. Alguém disposto a escrevê-lo?
Artur Matuck
Se existe um brasileiro excêntrico que trabalha com mídias digitais, esse cara é Artur Matuck, 59 anos. Pouco conhecido fora do meio artístico e acadêmico, ele foi um dos pioneiros ao pensar a transformação que o impacto das linguagens do vídeo, do computador e da internet em uma época em que essas tecnologias nem eram populares.
Na década de 1970, por exemplo, Matuck esbarrou na muralha do direito autoral quando quis usar um texto em um projeto artístico. Da indignação, ele propôs um selo que identificava obras que pudessem ser copiada gratuitamente. O símbolo ganhou um nome bem nonsense: Semion - “Sinal Internacional para Informação Liberada”.
Visto de hoje, dos dias pós-internet, o nonsense de Matuck era cultura livre pura - numa época em que o criador do Creative Commons, Lawrence Lessig, ainda era adolescente.
Mas a proposta do Semion era mais artística do que econômica e não ganhou divulgação ampla. “Eu era muito ingênuo e continuo sendo”, contou, ao Link, em entrevista no seu apartamento em São Paulo.“Era uma ideia de contestação, de que a propriedade intelectual, o copyright e as patentes deveriam ser combatidos e de que poderia haver outra maneira de as pessoas serem criativas e de a informação se espalhar.”
Matuck também é excêntrico porque atua em áreas aparentemente distintas. Além de ser professor livre-docente de comunicação digital na Escola de Comunicação e Artes da USP, como videoartista, abordou matadouros nos EUA - ele é vegetariano e combate a “escravidão dos animais”; criou um software que confunde as letras digitadas (para dar a ideia de coautoria entre homem e máquina); e já chegou a misturar poesia com ficção científica.
Agora, na última edição do Acta Media 7, um simpósio anual de “Artemídia e Linguagens Digitais” organizado por Matuck na semana passada em São Paulo, ele falou sobre sua nova proposta, não tão excêntrica, mas bem provocadora: a de que o acesso à tecnologia digital deveria ser um Direito (com D maiúsculo mesmo) do ser humano.
Faz sentido. Uma vez que, na sociedade, é essencial que cadapessoa tenha uma identidade na internet - seja ela por e-mail, por redes sociais ou por uma conta no site da Receita Federal - o acesso a essas ferramentas deveria ser garantido, por que não, até pela Constituição.
“A linguagem contemporânea passa pelas linguagens computacionais e da mídia. E os seres humanos deveriam ter direito a usar a linguagem do seu tempo. Todo mundo deveria ter direito a usar os softwares mais complexos, mais avançados.”
Mas já não temos?
“Assim...”, pausa e sorriso irônico. “As pessoas são presas porque fazem download. Então não temos. Se tivéssemos, seria diferente.” E vai mais longe. “A empresa que cria o software tem direito de cobrar por ele, mesmo que isso impeça o desenvolvimento de países periféricos. É um pensamento atrasado.”
Mas, não. Matuck não defende a pirataria. Acredita que é, sim, um crime fazer download ilegal. Só que soluções precisam ser criadas. E cita a fotografia, cuja patente foi comprada pelo governo da França, no século 19, e doada para a humanidade. “É o primeiro exemplo de open source (código aberto) da história.” Quem sabe, um dia, isso possa acontecer com softwares?
Novas Linguagens
“As novas tecnologias transformaram a forma de analisar a cultura. A linguagem colaborativa veio com a rede e se concretizou há apenas cinco anos. Ela já criou formatos e ainda vai mudar muito a produção de conhecimento” - Lev Manovich
A representação virtual é essencial para a negociação política. Para que grupos e pessoas se representarem no mundo virtual e terem atuação relevante, eles têm de dominar linguagens que a escola ou a universidade não ensinam” - Artur Matuck
Direitos autorais
“Hoje, muito mais gente produz cultura e tudo faz parte de uma grande nuvem de informações. As pessoas escolhem pedaços de informação dessa nuvem e fazem suas próprias versões. O remix, que já foi tabu, hoje é o padrão” - Lev Manovich
“Não estou de acordo que as pessoas devam ser acusadas (porfazer download). Há campanhas de livreiros que falam que copiar um livro é um crime. Eu acho que essa frase é um crime. Quer dizer que autoeducar é um crime” - Artur Matuck