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julho 21, 2005

Arte & Controle de Materiais Biológicos no Brasil: Vale a Pena Dialogar?, por Dolores Galindo

Arte & Controle de Materiais Biológicos no Brasil: Vale a Pena Dialogar?

DOLORES GALINDO (1)

O grupo Critical Art Ensemble (CAE) é bem conhecido entre nós, seja por seus trabalhos em mídia tática, seja pela sua atuação na área de biotecnologia (2). Em virtude das novas leis contra o terrorismo em vigência nos Estados Unidos, Steve Kurtz, um dos seus membros, vem sendo investigado pelo FBI (3). A acusação repousa na posse ilícita de materiais biológicos que estavam sendo usados para trabalhos artísticos, nada que um laboratório biológico de ensino médio não pudesse abrigar em suas aulas.

Segundo a acusação atual, Steve Kurtz obteve o material sem seguir os protocolos de biossegurança. Como? Teria contado com a participação de um cientista que também está sob investigação. O artista haveria recebido os materiais do cientista que ao fazê-lo violou o contrato que o impedia de ceder o material sob seu controle. A prática de trocas de materiais biológicos entre acadêmicos não é nova e integra ou, pelo menos, já integrou o cotidiano de vários cientistas. O caso de Kurtz em nada difere dos demais, recebeu o material de um colega de profissão.

Obviamente a motivação do inquérito policial excede o reconhecimento da quebra das regras de biossegurança. A acusação inicial ao artista havia sido de bioterrorismo uma vez que junto ao material biológico, os policiais apreenderam equipamentos laboratoriais que vinham sendo usados nas últimas performances do grupo. Mostrando-se impossível de ser sustentada, a acusação passou a ser assentada sobre as bases da regulamentação de biossegurança vigente no país.

O CAE não é o primeiro grupo a fazer uso de materiais biológicos em trabalhos artísticos (4) e a resposta desproporcional da autoridade policial norte-americana nos faz pensar que outros artistas que atuam nesta seara podem vir a sofrer acusações deste tipo. Bem, podem não ser acusados de um crime, mas há probabilidades de que sejam solicitados a apresentar registro dos materiais biológicos utilizados, a cumprir requisitos de cursos específicos para o manejo de certas substâncias.

Desconsideradas as possibilidades de acusação ou de demanda de cumprimento de normas, artistas que desejem fazer trabalhos com interface científica, com destaque para a área biológica, podem vir a enfrentar problemas no suprimento de materiais, dificuldades em encontrar parceiros cientistas ou financiamento governamental.

No Brasil, os documentos de referência nacionais fazem alusão aos setores de agropecuária, saúde, meio ambiente e indústria no conjunto das áreas de circulação de materiais biológicos. Como produtos da atuação destes segmentos constam: medicamentos, alimentos, fertilizantes, defensivos e domissanitários. Veja-se quadro constante no Sistema de Avaliação de Conformidade do Material Biológico (5):

Dolores Galindo.jpg

O caso de Kurtz aconteceu nos Estados Unidos, mas o deslocamento do problema como uma questão política a ser pensada pelo segmento artístico brasileiro é justificável. Em Primeiro lugar, recentemente temos um movimento organizado pela inclusão da arte e tecnologia nas políticas artísticas brasileiras, abarcando aí um segmento arte e ciência que inclui a bioarte, arte transgênica e a nanoarte. Trata-se da mobilização Arte e Tecnologia cujas ações podem ser acompanhadas na sessão tecnopolíticas do Canal Contemporâneo (6). Em segundo lugar, a legislação brasileira não contempla trabalhos artísticos no conjunto dos segmentos por onde circula material biológico e, nem o poderia, dado que estes ainda não possuem visibilidade governamental - uma das lutas da Mobilização Arte e Tecnologia.

No Brasil, faltam políticas de incentivo à prática artística que envolve materiais biológicos a qual, por suas características, costuma envolver um significativo custo financeiro ou demandar o acesso a laboratórios científicos razoavelmente equipados. Porém, mesmo com todas as dificuldades, estão sendo dados os primeiros passos no uso de materiais biológicos e de recursos de biotecnologia com finalidades artísticas. Na XXVI Bienal de São Paulo, o trabalho Move 36, de autoria de Eduardo Kac, que envolvia a exposição de uma planta transgênica, esteve entre os selecionados. Além disso, no círculo acadêmico, pesquisas têm se voltado para o campo da bioarte, o que aos poucos possivelmente abrirá linhas de financiamento.

Eduardo Kac, em entrevista divulgada no site da Bienal explicava o projeto Move 36, vejamos trecho:

Entrevistador: Quais procedimentos ou processos de trabalho foram necessários para a construção de sua obra [Move 36]?
Eduardo Kac: A instalação apresenta um tabuleiro feito de terra (quadrados negros) e areia branca (quadrados claros) no meio da sala. Não há peças de xadrez no tabuleiro. Posicionada exatamente onde o Deep Blue fez o seu "Lance 36" está uma planta cujo genoma incorpora um novo gene, que eu criei especialmente para esse trabalho. O gene usa ASCII (o código universal do computador, empregado para representar o número binário como caracteres romanos, online e off-line) para traduzir a afirmação de Descartes: Cogito ergo sum ( "Penso, logo existo" ) nas quatro bases da genética (A, C, G, T) (...) (7).


Talvez num futuro próximo, artistas brasileiros enfrentem o desafio de lidar com a tensão entre a legitimação da arte que envolve técnicas de biotecnologia/materiais biológicos e a necessidade de dialogar com a regulamentação do setor que foi criada tendo por base o cotidiano de profissionais, pesquisadores e empresários envolvidos nos segmentos hoje contemplados como passíveis de manipular materiais biológicos. Por material biológico está circunscrito:

"(...) todo material que contenha informação genética, e seja capaz de auto-reprodução ou de ser reproduzido em um sistema biológico. Desta forma, material biológico inclui os organismos cultiváveis e microrganismos (bactérias, fungos filamentosos, algas, vírus, leveduras e protozoários); as células humanas, animais e vegetais; as partes replicáveis desses organismos e células (bibliotecas genômicas, plasmídeos e fragmentos de DNA clonado) e os organismos ainda não-cultivados, assim como os dados associados a esses organismos, incluindo informações moleculares, fisiológicas e estruturais referentes ao material biológico (8)".

O desafio também abarcaria o Ministério da Cultura Brasileiro que teria que ser incluído no conjunto dos ministérios relacionados aos materiais biológicos que atualmente contempla: Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa); da Saúde (MS); do Meio Ambiente (MMA); Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC); da Ciência e Tecnologia (MCT); das Relações Exteriores (MRE); das Minas e Energia (MME) e da Justiça (MJ), este último com relação aos aspectos da defesa do consumidor (9).

Os gestores de biossegurança, por sua vez, se enfrentariam com a necessidade de incluir artistas dentre o público convidado aos congressos, aos comitês gestores e demais instâncias de representação. Ou ainda, se veriam impelidos a incluir o segmento artístico entre setores por onde circulam materiais biológicos - na cadeia produtiva do material biológico.

Como justificar a utilização de insumos biológicos com finalidades artísticas? Esta seria uma questão a ser solucionada pelo setor nacional de controle de materiais biológicos que começa a dar passos mais consistentes para a criação de um marco referencial para o Brasil.

Afirmar a necessidade de diálogo entre artistas e o segmento que regulamenta o uso de materiais biológicos é antecipar-se demais a acontecimentos que podem nem sequer vir a ocorrer? A prática artística envolve especificidades que merecem ser consideradas?

Caso seja reconhecida a importância de um diálogo entre artistas e gestores de materiais biológicos, resta saber: o diálogo deveria ser contextual, isto é, em função de tal ou qual trabalho artístico a ser realizado? Ou seria necessário um movimento que legitimasse a atuação artística no uso de materiais biológicos?

Longe de buscar soluções reativas diante do acirramento dos dispositivos de biossegurança norte-americanos ou dos possíveis acirramentos dos dispositivos brasileiros, o que temos pela frente é um trabalho político e reflexivo por realizar. As possíveis respostas, certamente, conectam-se com a distribuição de responsabilidades entre artistas e cientistas: as preocupações com biossegurança e marcos regulamentares devem ser deixadas aos cientistas e aos financiadores dos equipamentos ou devem integrar as práticas artísticas?

Ao invés de solicitar o cumprimento de protocolos de biossegurança a serem seguidos, gostaria de deixar a pergunta: é necessária uma atuação propositiva por parte do segmento artístico na criação de um espaço de diálogo com as instâncias brasileiras de regulamentação do controle de materiais biológicos?

Notas:

1 Psicóloga social, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Práticas Discursivas e Produção de Sentidos PUCSP. Atualmente desenvolve tese de doutorado sobre as relações entre biossegurança e bioarte, sob orientação da Prof. Dr. Mary Jane Spink. Contatos pelo e-mail: tinagalindo@uol.com.br

2 Maiores informações sobre o grupo podem ser obtidas no site http://www.critical-art.net/

3 Para obter subsídios sobre a acusação a Steve Kurtz ou deixar seu apoio, consultar http://www.caedefensefund.org/

4 Para ampla bibliografia sobre a interface entre arte e genética consultar o texto Art and Genetics Bibliography de autoria de George Gessert e disponível no site http://mitpress2.mit.edu/e-journals/Leonardo/isast/spec.projects/art+biobiblio.html

5 BRASIL. Ministério da Ciência e Tecnologia. Sistema de Avaliação da Conformidade de Material Biológico. Brasília, SENAI/DN, 2002. 102 p.

6 http://www.canalcontemporaneo.art.br/tecnopoliticas/archives/cat_abaixoassinado_e_reunioes.html.

7 Entrevista completa pode ser lida no site http://bienalsaopaulo.globo.com/26/professores/26profEK.asp

8 BRASIL. Ministério da Ciência e Tecnologia. Sistema de Avaliação da Conformidade de Material Biológico. Brasília, SENAI/DN, 2002. 102 p.

9 BRASIL. Ministério da Ciência e Tecnologia. Sistema de Avaliação da Conformidade de Material Biológico. Brasília, SENAI/DN, 2002. 102

Posted by João Domingues at 1:31 PM