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dezembro 2, 2008
Do conhecimento físico e moral dos povos, por Juliana Monachesi
Do conhecimento físico e moral dos povos
JULIANA MONACHESI
O bom e velho gabinete de curiosidades voltou definitivamente à moda. Os artistas que me desculpem começar este texto falando em “moda”, palavrinha que preferimos não associar à “arte séria”, mas, como acho que eles estão, entre outras coisas, questionando a tal da arte séria, vou usar esse termo mesmo. A associação entre arte e moda, aliás, me parece cada vez mais urgente em vista das práticas contemporâneas de edição do passado. Um dos mecanismos da Moda é reciclar idéias em desuso, dar (aqui um clichê para falar de outro clichê) nova roupagem a velhos conceitos, e o que mais artistas estão fazendo desde que o maneirismo pós-moderno ficou para trás (digamos, a partir do final dos anos 1990) é justamente repensar o bom proveito que se pode fazer da apropriação, da colagem, da coleção e do arquivo em chave já não pós-moderna, mas apenas não-moderna mesmo. Os artistas da “geração 2000” são assim despretensiosos.
Gosto da imagem do Massimiliano Gioni (que é curador de exposições especiais do New Museum) de que o século 21 começa em uma ruína. Essa intuição de que o World Trade Center estilhaçado por dois homens-bomba muçulmanos é a cena fundante do novo século não é nenhuma novidade, mas não tinha visto, antes do Gioni, uma associação entre este fato e a produção contemporânea tão bem formulada (refiro-me ao ensaio Pergunte ao pó, publicado no catálogo da mostra Unmonumental: O objeto no século 21, que aconteceu no New Museum no final de 2007). É pena que Baudrillard e Stockhausen, autores das duas visões (opostas, diga-se) mais certeiras sobre os destinos da arte pós-11 de Setembro, tenham morrido sem ver no que a arte contemporânea iria dar. É que o refluxo de traumas universais leva tempo para aparecer clara e profundamente na cultura. Fato é que Unmonumental demarca (na minha modesta opinião) uma guinada significativa na arte ao estabelecer um corpo conceitual para as práticas recentes daquilo que os curadores da exposição denominam, também despretensiosamente, de “nova assemblage”.
Você pode estar se perguntando: “Do que diabos esta pretensa resenha da mostra Gabinete está falando?”, e tem razão. Acontece que, para tratar de uma exposição árida, só delineando o contexto mais amplo dela, e já aviso que o contexto desse evento anárquico passa não apenas pelo 11 de Setembro, mas também pelas duas últimas Bienais de São Paulo e por uma quebra de paradigma epistemológico. Depois não diga que eu não avisei. Então, prosseguindo, e de forma bem resumida: Unmonumental estabelecia três características básicas da “nova assemblage”. Primeiro, o território da “escultura” seria marcado hoje pela escala não-monumental (todo trabalho que se situa entre o intimista e o não-instalativo, ou seja, de pequena escala, mas também de tamanhos maiores, contanto que mantendo minimamente um “centro”); segundo, essas novas esculturas tomariam como matéria-prima fragmentos pré-existentes no mundo (refugos cotidianos, industriais e urbanos); e, terceiro, assim como são marcadas pela não-monumentalidade de escala e de material, as novas assemblages teriam igualmente um tom não-monumental (ou seja, diferente da assertividade da escultura moderna, seriam afirmações provisórias sobre o mundo). Este “quase nada” da arte do menos, menor e mais lento ajuda a definir as obras que compõem Gabinete, em cartaz na galeria Virgilio.
Com certo espírito pitoresco e vontade de anexar o mundo inteiro a uma experiência de arte sem ímpetos catalográficos, os artistas Rafael Campos Rocha, Fábio Tremonte, Diogo de Moraes, Daniel Steegmann e Marcelo Comparini revisitam o gabinete de curiosidades dos séculos 17 e 18. “Herdeiro do tesouro das capelas e antepassado do museu, [o gabinete de curiosidades] busca ser o espelho do mundo. Na época das grandes descobertas, ele sugere que a realidade admirável de cada objeto colecionado se prolongue como périplos em que a imaginação rivaliza com a paixão do saber, da invenção e da arte. [...] Nas coleções medievais religiosas, relíquias de santos, portadores de presença invisível, figuram ao lado de objetos insólitos, tais como o chifre de um legendário unicórnio, os ossos de um gigante ou um crocodilo fervido em óleo suspenso nas abóbadas”, escreve Francis Adoue em “Les cabinets de curiosités ou Le Voyage immobile” (1).
É boa a imagem de "antepassado do museu" para guiar uma visita pela exposição na Virgilio. Em tempos de desencantamento com nossas instituições culturais e de tomada de partido institucional por parte de galerias como a Virgilio, a empreitada dos artistas faz pensar na apatia geral diante da última edição da Bienal de São Paulo. Minha impressão é que o debate que deveria estar ocorrendo dentro (e por conta) da bienal, está mais vivo e mais denso em lugares como a exposição Gabinete. O que me mobiliza nesta bienal é a aridez. É uma exposição que, mais do que tematizar, mostra um estado de coisas; ela evidencia um período de “seca” e de indiferença no contexto da arte e, sobretudo, nos âmbitos social e subjetivo. Acredito que, por ser uma proposta menos expositiva e mais reflexiva, os “vazios” que estão por toda parte, e não apenas no segundo piso do edifício, revelam esse contexto do mundo atual de forma não-impositiva. Dizendo de outra forma, a crise enunciada na edição anterior de modo (na minha opinião) autoritário volta à pauta da bienal, mas ganha uma expressão mais ambígua, mais “fraca” mesmo, o que dá lugar a uma participação maior na construção de sentidos para o evento.
(continua...)
Notas:
1. Citado por Fernanda de Camargo-Moro em "Câmaras de maravilhas, studioli e gabinetes de curiosidades: Vandelli e suas circunstâncias", in O gabinete de curiosidades de Domenico Vandelli, editora Dantes, 2008.