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outubro 19, 2005
Esvaziar o discurso e preencher o vazio
"Manta de Rio", intervenção de Marcos Costa no SPA 2005
Esvaziar o discurso e preencher o vazio
JULIANA MONACHESI
Lugar-comum, na crítica de arte, como na vida, é coisa que surge rápido e contamina as falas permanentemente. Nos primeiros dias do SPA, percebi que as ações e intervenções, tão logo ocorriam, tornavam-se banalidades na esfera do discurso. Ouvi comentários sobre a "menina da grama", a "poética do balde", o "cara do casulo" etc. O papel da crítica é adensar a reflexão sobre a arte contemporânea, e na oficina demos preferência a uma prática que se dá no calor da hora, próxima mesmo da atividade de intervenção que configura a crítica de arte no âmbito do jornalismo cultural.
A tal ação dos baldes, ou melhor, a intervenção do artista Marcos Costa, que ocorreu na quarta-feira à tarde na ponte Duarte Coelho, tem evidentemente muito de poético e lírico -o próprio Marcos Costa, em entrevista realizada após a ação, definiu desta forma o trabalho-, mas cabe à crítica ver além disso, ler além do discurso do artista e pensar para além do lugar-comum. Não se trata de buscar uma teoria filosófica na estratosfera para "enriquecer" o objeto de análise e sim de investigar, ali nos elementos intrínsecos a ele, outras possibilidades de leitura.
Trata-se, enfim, de perguntar à obra um pouco mais.
Ok, é poético fazer o rio passar por sobre a ponte, mas por que não fazê-lo, por exemplo, invertendo o curso do rio? Por que não fazê-lo com mais participantes? Por que não jogar o rio por sobre a ponte e, depois, seguir em passeata até a ponte seguinte e fazer saltar aquela mesma água por mais outra ponte? Sugiro outras perguntas para tentar fugir ao óbvio: qual a implicação do trabalho coletivo nesta obra? Ou que tal contar a história do rio Capibaribe e a ligação de Marcos Costa com ele, que já foi motivo de outras obras suas? Qual o sentido da câmera e o microfone na cara do artista assim que a ação termina? Por que não se entrevistam os participantes em vez do artista que, na condição de diretor da ação, não pôde integrar a própria?
Ou, ainda, retomando uma conversa do grupo em nosso primeiro encontro, na segunda-feira, já que o binômio apocalípticos/integrados é um paradigma ultrapassado, por que não considerar esta mediação excessiva -a ação do Duplicidades invadida de câmeras, que prejudicaram a diluição da obra na cidade, a saída de João Feliciano de seu casulo em vez de se concluir como um ritual, acabar com um microfone interrogando e exigindo, tão cedo, uma elaboração sobre aquele processo de transformação que mal acabara de acontecer etc.- não como obstáculos ou entraves à prática artística, mas sim como elementos constitutivos desta prática na vida contemporânea?
A sociedade do espetáculo não é mais um conceito, um jogo de forças ao qual resistimos apocalipticamente; nós já partimos dela como realidade, não existe um fora da sociedade do espectáculo, assim como não existe um fora da sociedade do controle. Como pensar na atuação de crítico quando a crítica é, à nossa revelia, mais um instrumento de banalização? Como inverter ou subverter este dado da natureza da crítica hoje? Como falar dos baldes ou da grama de outra maneira que não esta? Como destoar do coro dos contentes?
Vamos dizer, por exemplo, que o trabalho de Marcos Costa não é poético. Adotar o partido contrário como um exercício. "O casulo", em vez de ritualização, vamos dizer que fala da impossibilidade da ritualização, do fim dos ritos em nossa sociedade. "O balde" fala também deste mundo desencantado porque é apropriado muito rapidamente por um discurso que o banaliza e o esvazia de seu lirismo. "A grama" como ecologia sim, mas não em relação à natureza, e sim em relação à cultura: como ecologia do pensamento, como reciclagem de visões cristalizadas sobre o cotidiano da cidade e sobre o anestesiamento dos pedestres em trânsito constante, como transe em oposição ao trânsito, como fluxo em oposição ao congestionamento, como brecha em oposição aos obstáculos das ruas e também das mentalidades.
Vamos tomar os trabalhos pelo reverso do que parecem ser e, assim, talvez, cheguemos a arranhar o que eles realmente são.
outubro 14, 2005
Afinal, o que é um público de arte?
POR AMÉLIA COUTO
A arte contemporânea põe em xeque, entre outras coisas, o próprio público da arte. Expressões, performances, ações efêmeras que acontecem nas ruas, no espaço urbano, ao meu ver, destinam-se ao público comum, ao cidadão comum que desfruta do espaço urbano, ou seja, a todos sem exceção.
Quando a proposta é interferir no cotidiano dos "outros", seja de forma plástica no sentido mais romântico, no sentido conceitual da intervenção, seu público alvo é naturalmente o transeunte. Para assimilar a arte contemporânea é necessário também assimilar espaços e atitudes contemporâneas.
Três performances distintas em lugares próximos e momentos diferentes marcaram este 4º SPA no centro do Recife:
No primeiro momento, Clarissa Diniz caminhou pelas ruas pisando unicamente no seu tapete de grama, de pouco a pouco ela movia esse tapete formado por quadrados e, dessa forma, se locomovia tendo que se desviar de muitos obstáculos, o que tornava sua caminhada cada vez mais difícil e exaustiva. Em três horas, sem interrupção, ela percorreu sua jornada.
Apesar de não falar com ninguém, durante todo o percurso ela se comunicou com todos que a viram. Uns acharam que era promessa, outros, maluquice. Uns tentaram ajudar, outros interromperam seu caminho, porém todos foram contaminados com a sua idéia. Era óbvio que não se tratava de alguém daquele cotidiano. O objetivo foi alcançado. O que foi? Para quem foi? Não interessa. Todos foram tocados, de uma forma ou de outra.
No segundo momento, o coletivo Duplicidades lançou-se pelas ruas vendendo palavras, frases, com um trabalho intitulado "Molecular". Ao contrário da situação anterior, o propósito deste era a fala do artista com o público. Confundido, na maioria das vezes, com mais um entregador de papéis que propagam não se sabe o que nem pra quem, o artista percorreu a Ponte Duarte Coelho. Foram poucos os momentos de relação com o público, de interação, mas estes poucos momentos foram, de certa maneira, profundos. Uma senhora questionou o artista por vender palavras, alegando que as mesmas "têm que ser construídas, e não construir é a razão porque o Brasil está passando por essa crise política". No final ele jogou todas as frases no rio Capibaribe, mas o vento trouxe-as de volta para os seus pés. As palavras retornaram para o seu dono.
O terceiro momento foi marcado pelo trabalho do coletivo Pardiero.
Com uma proposta clara de intervenção urbana, um grupo de designers, junta-mente com uma cooperativa de catadores, fez cinco tipos de faixas a exemplo de: Eu cato porque você não separa, ou, ainda, Você vem sempre aqui? Eu venho. Anuncie aqui, Adote uma carroça. Estas frases foram postas nas carroças dos catadores - cata-dores - e foram para as ruas a partir das cinco horas da tarde, horário normal da coleta. Mais uma vez a comunicação se fez presente, só que agora as palavras nem foram faladas nem caladas, foram lidas por todos dentro do silêncio de cada um, do que cata, do que separa, do que não separa, do que não cata.
Catar, separar e reciclar tiveram ali um sentido bem maior. Quantas vezes o material reciclado voltará à mão do catador para nova reciclagem? Esse círculo vicioso terá fim? A cobra mordendo o seu próprio rabo - oruborus. Não vi como um trabalho engajado, muito menos assistencialista. Senti muito mais uma troca calorosa entre pessoas que pertencem àquele espaço urbano e, como tal, decidiram se unir para trocar experiências. Daí cada profissional fez sua proposta de intervenção. O coletivo Pardiero me parece muito interessante, pois convive com um lugar onde a paisagem é o próprio pardiero e, dessa forma, possibilita fazerem ações pontuais, contando ainda com vários projetos que estão serão desenvolvidos após o SPA.
O espaço expositivo deste grupo, sua galeria, é a rua ou o Bar da Laje. Um grupo com propostas provocativas, instigantes, mas com um sentido de plasticidade muito forte. Entre outros trabalhos eles pensam em interferir nos outdoors que marcam a imagética da cidade. A construção e a desconstrução são atitudes recorrentes desses artistas.
Acredito que eles definiram seu espectador, sua galeria urbana, seu público de arte de forma mais permanente, apesar das ações efêmeras.
Do meu ponto de vista, os três movimentos articulados por Clarissa Diniz, coletivo Duplicidades e coletivo Pardiero tomaram a palavra, sendo ela calada, dita e vendida ou em forma de faixas como ponto em comum e dessa forma conceitual fizeram, cada qual à sua maneira, sua poesia visual.
Respondendo a provocação: afinal, o que é público de arte? A meu ver é todo aquele que se contamina com a idéia do artista. O mesmo acontece com os painéis e esculturas públicas espalhadas por toda a cidade.
Não é indispensável ao público o conhecimento específico da arte para que ele se torne público da arte. Não devemos subestimar a sensibilidade do povo que reflete sua inteligência sempre que provocada.
outubro 13, 2005
Terça-feira, no SPA...
POR CLARISSA DINIZ
Certas coisas que ontem fiz e vi me fizeram sentir e pensar sobre os direitos de posse e de uso que temos sobre os lugares que, por não serem de ninguém, são de todos; e mais: sobre as curtas distâncias que separam-nos uns dos outros, e sobre como e quando essas distâncias não só podem, mas devem, ser vencidas.
Refiro-me ao que habitualmente chamamos de arte pública e todas as suas variações, raramente dando-nos conta do complexo de relações em níveis diversos (social, econômico, político, estético, religioso, sexual, etc.) com o qual lidamos quando nele inserimos nossa arte.
Nesse sentido, duas ações do SPA, realizadas na terça-feira, me chamaram a atenção por influírem, mesmo quando não pretendiam, na relação das pessoas entre si e com a cadência da cidade.
Uma dessas ações foi uma intervenção urbana/social do Grupo Pardieiro, integrado, em sua atual formação, por Anna Zidanes, Guilherme Luigi, Noá Jofilsan e Renata Galvão.
O Pardieiro propôs utilizar as carroças dos catadores de lixo do Recife como locais para anúncios, como sugere o título da intervenção - Out Media, ou como local de denúncias, provocações ou conscientização social, ao afixar, nas carroças, faixas que ora referiam-se à (sub)profissão do catador ("Eu só cato porque você não separa." ou "Você faria o que eu faço?", entre outras), e ora convites a prováveis anunciantes ("Você vem sempre aqui? Eu venho. Anuncie aqui!", entre outras).
O trabalho do grupo partiu de uma clara sensibilização e preocupação política e social, ao apropriar-se da causa de um grupo específico da sociedade para dela extrair (ou impor...) um discurso pronto a ser revelado para o restante da mesma, através das faixas acima referidas.
O que percebo na trajetória desse trabalho que, claro, deu-se com algumas reuniões entre proponentes e catadores, é que, com a perigosa apropriação de um discurso alheio ao seu, por mais que se possa tê-lo tentado elaborar em conjunto, e sua posterior alocação nos genuínos locais de onde esse discurso realmente poderia ter saído, as carroças, leva-se, em última instância, àquele que vê a carroça com as frases, pensar que foram os próprios catadores os idealizadores não somente das frases, mas, sobretudo, da ação. Ou seja, consolida-se um discurso que é simples aparência, no sentido literal da palavra, pois se faz parecer como sendo dos catadores, quando, em verdade, não o é. Cria-se, portanto, mesmo que ingenuamente, um espaço propício à simulação de um sentimento ou idéia que não lhe é original; gera-se espaço para a hipocrisia.
É aí que mora minha maior preocupação com a intervenção Out Media, pois não é preciso ser um psicólogo para perceber a sincera intenção do Pardieiro de ajudar os catadores ou lutar pelos direitos de sua classe, mas, apesar desta admirável intenção, faltou-lhes perceber a perversidade dos mecanismos de uma cidade, que são capazes de transformar uma ação de base notadamente generosa, numa ação que soa, ao menos para mim, como fingida.
É também nesse espaço entre idéia do artista e sua concretização em espaço público que se situa a minha preocupação - e meu espanto, com uma performance por mim realizada, a Afora.
Nessa, eu caminhava sobre pedaços de grama, que sob meus pés formavam um tapete, colocando cada parte do tapete à frente do anterior, de modo que, em minha caminhada, eu pudesse estar sempre pisando na grama. A ação foi feita à exaustão.
Não pensava eu, provavelmente pela mesma ingenuidade do Pardieiro, que uma ação tão simples pudesse intervir tão intensamente na cidade e nas pessoas, a ponto desta intervenção ser rebatida e recair-se novamente sobre mim, ainda durante a realização da performance.
Em três horas de caminhada nas ruas do centro do Recife, minha imagem foi brinquedo nas bocas e mãos do povo, como não poderia deixar de ser, mas em instância muito mais abrangente do que eu pensara. Nessas três horas, passei de uma mulher normal a uma pagadora de promessas, à pecadora, à artista, à ecologista, à esquizofrênica, e, pasmem!, a alguma espécie de mulher santificada.
O que antes era uma intenção puramente poética e estética, tornou-se, quando entregue aos mecanismos e à cadência da cidade, um acontecimento que quase foge ao meu controle, não somente arrancando as mais diversas reações das dezenas de pessoas que me acompanharam durante o trajeto, mas, sobretudo, recaindo sobre mim de forma surpreendente.
Refiro-me a alguns episódios marcantes da caminhada, possíveis somente pela autônoma ação do povo que me assistia e a mim assistia, sem interferência de alguém que de fato soubesse o que eu ali estava fazendo, apesar de, ao final da performance, nem eu mesma saber, por vezes, o que ali fazia. Foram alguns dos mais marcantes episódios da performance: um exorcismo que uma mulher tentou fazer, numa língua por mim incompreendida, pressionando minha cabeça com força incrível; os inúmeros toques de pessoas que insistiam em saber o que eu fazia, se precisava de ajuda, etc.; a ligação de um policial para um hospital psiquiátrico, chamando uma ambulância para me resgatar (o que foi logo desfeito); as incontáveis vezes que compraram e quase me forçaram a beber água, tendo, inclusive, um homem jogado água em cima de mim; a surpreendente atitude das pessoas resolverem, já nos últimos 30 minutos da performance, carregar as gramas junto comigo; a generosa atitude de construir uma barreira humana e parar o trânsito quando eu resolvi atravessar uma movimentada rua da cidade; e, com o fim da performance, a extremada atitude de me seguirem até o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, onde estavam minha roupas, me tocando, puxando, exigindo que eu falasse, pois até então permanecera em silêncio.
E mais: o forte rebatimento que tantas reações do povo tiveram sobre mim. Se para eles eu parecia uma pecadora, eles realmente me fizeram assim sentir. Se eu era um artista dos Estados Unidos, e por isso não compreendia sua língua, era como um estrangeiro em território estranho que eu me sentia. Se, ao final, as pessoas queriam me tocar como se eu fosse santa, foi como uma espécie de figura não-humana que eu me senti. E, durante as três horas de exaustiva ação, fui imersa numa energia e nas malhas da cidade e do povo, que fizeram de mim coisas que nem sempre eu queria ser. Eu, que havia me disposto a fazer uma arte pública, senti, de fato, o peso do que isso significa, e, talvez por sorte, consegui finalizar a ação mais ou menos dentro do que eu pretendia.
Ao final dessas experiências todas, fico com a certeza da impossibilidade de um artista ter domínio sobre o que pretende, sobretudo quando a arte toma o espaço de todos, e da importância que tem refletir critica e calmamente sobre a ação e seus possíveis desenrolares, para que nossas mais sinceras intenções não sejam traídas pelo instrumento básico das mesmas, o olhar dos outros.
outubro 11, 2005
alô, câmbio!
Estamos diante de mais um desafio para o jornalismo cultural e a crítica de arte: como "cobrir" um evento que se caracteriza por ações efêmeras em ruas nem sempre pré-determinadas e em horários nem sempre marcados? Como analisar trabalhos de arte que não se deixam analisar porque preferem a fluidez e a contaminação da cidade em lugar da rigidez e da proteção do espaço expositivo?
Como a crítica se posiciona, afinal, diante de obras que não foram pensadas para o público de arte? Para quem esta crítica, caso ela seja possível, deve se endereçar?
Nosso cenário é o SPA 2005 (Semana de Artes Visuais do Recife), que está em sua quarta edição e congrega intervenções urbanas, performances e ações nas ruas, mostras de fotografia e vídeo, palestras, oficinas e serões performáticos (também conhecidos como baladas).
As perguntas acima não são novidade. Não é de hoje que a crítica de arte tem de sair correndo, debaixo de sol, por quebradas suspeitas, à cata de seu objeto. Às vezes o objeto nos escapa e nos contentamos em escrever a partir dos malfadados registros de performance. Às vezes trombamos com as ações e produzimos, nós mesmos, nossos registros textuais.
Durante o período de realização deste SPA, um grupo de pessoas, reunido por conta de uma oficina de crítica oferecida pelo evento, se dispôs a encarar o desafio e produzir textos no calor da hora, sem pretender dar conta de todos os acontecimentos, mas interferindo aqui e ali, sempre que possível, com leituras críticas dos projetos apresentados.
Estes textos serão publicados no Quebra de Padrão, que gentilmente nos cedeu o espaço para fazer circular de forma mais ampla esta experiência de produção de pensamento a respeito da arte contemporânea brasileira.
"Nós" somos: Adriana Dória, Amélia Couto Córdula, Clarissa Diniz, Júlia Rebouças, Juliana Monachesi, Júlio Cavani, Marília Sales e Silvia Paes Barreto.