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setembro 2, 2004
Quem Somos?
JULIANA MONACHESI
Na minha humilde opinião de artista-jornalista participante da hiPer, a exposição não poderia terminar sem que se tratasse aqui no Quebra de Padrão do próprio Canal Contemporâneo. Ao longo do desenvolvimento deste projeto, Patrícia Canetti e eu estudamos várias maneiras como o jornalismo cultural pode ser diferente: amplo, aprofundado e descentralizado. A cobertura da mostra no Santander Cultural foi um primeiro passo e ficou algo aquém de nossos planos _muito mais poderia ter sido feito_, mas torna evidente a potência de um jornalismo que se pauta pela interlocução contínua. Os meios de comunicação convencionais perderam o bonde porque centralizam e impõem uma visão dos "fatos" e não ouvem seus leitores (aquele espaço para cartas, vamos combinar que é totalmente pro forma, né?).
Gosto desta frase do Steven Johnson: "A sociedade do espetáculo é um chamado às armas. Em vez de ficar murmurando que 'o rei está nu' nas coxias, [as novas formas de comunicação, decorrentes do advento da internet] tiraram a roupa e pularam na bóia da mídia de massa. Há melhor maneira de denunciar o blefe do rei?". Não que a internet seja a panacéia para o jornalismo cultural (ou para qualquer outra coisa, enfim), mas sem dúvida o Canal Contemporâneo vem denunciando o blefe das mídias e do circuito de arte, desempenhando um papel político importante.
É deste assunto que trata a entrevista a seguir, com Patrícia Canetti, que foi realizada originalmente para a número 5, revista que será publicada neste mês em São Paulo, e é reproduzida na íntegra aqui. Em tempo: muito material referente à hiPer, como uma longa entrevista com a curadora Daniela Bousso no próprio espaço expositivo, por exemplo, não foi utilizado no Quebra até agora, mas pretendemos voltar ao tema mesmo depois de a exposição ter se encerrado. Afinal, uma boa exposição de arte não termina quando acaba, muito ao contrário, tem vida longa e deve continuar sendo debatida.
Gostaria de começar perguntando qual foi o papel desempenhado pelo Canal Contemporâneo no episódio Guggenheim-RJ; a mobilização da "classe artística" teria se dado de que forma, na sua opinião, não houvesse um canal insuflando as pessoas à ação?
Patrícia Canetti - Difícil saber como seria e para tentarmos imaginar, precisamos analisar o contexto e as ações praticadas pelo Canal Contemporâneo que constituíram a insufl-ação.
Era início de 2003, tínhamos, de um lado, o começo do governo Lula gerando questionamentos sobre a política cultural e as leis de incentivo, e, do outro, o governo do prefeito César Maia promovendo mudanças autoritárias na área cultural. No Rio, essa conjuntura foi responsável pelas duas grandes manifestações ocorridas nesse período: o Fórum das Artes, que reuniu artistas de várias áreas no Sérgio Porto para debater esses temas, e a mobilização contra a construção do Museu Guggenheim com o uso de recursos públicos.
No final de 2002, o Canal Contemporâneo começa a dar visibilidade às questões de política cultural e em janeiro de 2003 veicula uma carta ao presidente Lula, lida na Câmara de Vereadores do Rio e no Fórum das Artes, sobre a construção do Guggenheim em terreno do governo federal e com a utilização das leis de incentivo federais. A partir desse momento, um grupo de artistas e críticos começou a se reunir no AGORA e o texto do abaixo-assinado foi redigido enfocando principalmente duas questões: a necessidade de uma maior participação da classe artística na concepção das políticas culturais da cidade e o nosso repúdio à utilização de recursos públicos na construção do Museu Guggenheim.
Ao longo dos seis meses seguintes, esse grupo de artistas e críticos continuou a se encontrar (depois do fechamento do AGORA as reuniões passaram a ser realizadas no Parque Lage e também on-line, a partir de uma lista, que batizou o grupo de artesvisuais_politicas) e a discussão foi se aprofundando com novos contatos e com a análise dos estudos e do contrato do futuro museu. O Canal Contemporâneo dava visibilidade às reuniões, aos textos produzidos e pesquisados, e ao abaixo-assinado, que crescia conforme a informação e análise do problema eram difundidas. (Essas informações podem ser pesquisadas no banco de dados no www.canalcontemporaneo.art.br, que guarda todos os e-nformes já publicados.)
Manifestações foram realizadas. Colocamos o nosso bloco na rua (literalmente, no carnaval sambamos e cantamos o enredo Afundação do Guggenheim) e participamos de outras tantas, juntamente com os portuários e com os vereadores envolvidos (Mário Del Rei e Eliomar Coelho). O trabalho "prático" se juntava ao "teórico" na formulação de documentos, fruto dos esforços da classe artística, e de outros profissionais ligados à área de patrimônio, e dos políticos incomodados com a situação. Enquanto o Canal Contemporâneo divulgava as manifestações e as análises, também era responsável por alimentar um dossiê, que foi montado com tudo que ele já havia publicado, incluindo o abaixo-assinado, para ser encaminhado ao Ministro da Cultura.
Este mesmo dossiê, que reunia vários documentos, artigos nacionais e estrangeiros denunciando as péssimas condições da negociação engendrada pelo prefeito César Maia, passou a circular amplamente entre jornalistas, profissionais do legislativo, executivo e judiciário, tendo sido responsável por um novo patamar de informação dada à opinião pública, que culminou com a liminar impetrada pelo vereador Eliomar Coelho que suspendeu os primeiros pagamentos do contrato assinado às escondidas pelo prefeito César Maia (à revelia de todos os senões levantados pelos profissionais diretamente envolvidos com a construção de um museu).
Nesse momento, começamos a descobrir na prática a importância da visibilidade na contemporaneidade. Visibilidade que ilumina brechas e cria espaços a partir dos anseios e receios de uma coletividade. O espaço que o Canal Contemporâneo já havia criado a partir da informação recebida e espalhada agora se expandia para outros contextos, igualmente políticos e importantes.
O caso Guggenheim foi um belo exemplo do equilíbrio que podemos atingir na democracia com o uso da Internet. A voz da sociedade civil serviu para dar lastro ao legislativo e ao judiciário para impedir uma atitude ditatorial do executivo.
O Canal me suscita muitas questões a respeito do meio-internet, de mudanças de paradigmas e de sensibilidades -tendo a pensar que é da natureza da Internet como meio convocar o usuário a reagir, diferentemente do que a televisão faz, ou seja, mudou a interface, mudou o sujeito etc.-, mas gostaria nesta entrevista de me ater à camada ativista do Canal no sentido mais estrito mesmo, de atuação no nível da política cultural para as artes no Brasil. Assim sendo, passo à mobilização seguinte incitada pelo Canal Contemporâneo: o quê e por que mudar a portaria referente a leis de incentivos fiscais federais à cultura? Como o Canal fez para reunir tantas pessoas ligadas de alguma forma ao universo da arte/tecnologia?
Patrícia Canetti - Quando recebi o aviso do MinC referente à portaria eu tinha acabado de postar o projeto [do Canal] para o [festival] Ars Electronica e foi isso que me chamou a atenção para a exclusão dos segmentos tecnológicos da Lei Rouanet. Essa exclusão não era novidade, mas o fato de eu ter acabado de escrever e traduzir um projeto, por ter recebido um convite para participar de uma competição do outro lado do Atlântico, me fez perceber o absurdo da situação. Ficava claro para mim, naquele momento, o porquê de nossas instituições não investirem na rede e o porquê de nossos patrocinadores ainda não terem entendido o espaço cibernético como um espaço cultural; ora, se até mesmo o Ministério da Cultura não percebia, como esperar que toda a estrutura ligada a ele pudesse se voltar nessa direção?
Ao dar visibilidade a essa situação, a resposta da coletividade de Arte, Ciência e Tecnologia foi realmente muita rápida e creio que o motivo para isso foi um só: o sentimento de exclusão. Ao mesmo tempo em que esse sentimento gera uma indignação, alimenta também uma união, já existente, exatamente pela exclusão vivida.
O grupo de Arte Tecnológica vinha discutindo a criação de uma associação e esse chamado do Canal Contemporâneo para as regras da referida Portaria, baseada na Lei Rouanet, apenas serviu como um novo gancho aglutinador. O Canal Contemporâneo, da mesma maneira que divulga o material por ele recebido, dá visibilidade aos movimentos existentes dos vários sub-conjuntos que formam o conjunto maior de seu interesse, a arte contemporânea brasileira. E, novamente, é a visibilidade dos acontecimentos que vai permitir mudanças ou novos pontos de vista.
Sobre o fechamento das galerias Sérgio Porto: qual a importância deste espaço para o cenário artístico no Rio? Que problemas/circunstâncias políticas levaram à determinação de fechar as galerias? Por que a secretaria de cultura voltou atrás na decisão?
Patrícia Canetti - As galerias do Sérgio Porto são a plataforma histórica da arte contemporânea brasileira no Rio de Janeiro (Veja o histórico no www.canalcontemporaneo.art.br/brasa.) A sua permanência não é apenas importante para o Rio, mas para todo o Brasil, principalmente para lutarmos contra esse mal brasileiro da descontinuidade e da falta de tradição de nossas eternamente precárias instituições.
O fechamento das galerias é resultado da falta de uma política cultural séria para a área de arte contemporânea no Rio de Janeiro. A cada ano, vemos a Secretaria de Cultura atirar numa direção diferente e nunca somos avisados claramente sobre os motivos que levam aos novos lançamentos ou aos encerramentos de práticas já existentes.
Por enquanto, creio que a Secretaria de Cultura voltou atrás somente por causa do período eleitoral, pois na verdade o orçamento das galerias do Sérgio Porto continua reduzido a menos da metade, o que nos aponta para uma frágil permanência desse espaço cultural.
Na questão Mazeredo, um aparente resultado foi logo obtido, com a criação de uma comissão para estabelecer parâmetros para a escolha de obras públicas para a cidade do Rio de Janeiro; isso foi uma vitória do Canal (entendendo o canal naquela acepção que você costuma dar a ele, claro, de um coletivo que já tem um histórico de conquistas)?
Patrícia Canetti - Acho que o mais importante no caso Mazeredo é percebermos a importância da atuação da sociedade civil junto aos outros órgãos que compõem a sociedade, como a imprensa e o próprio governo, seja o poder legislativo, o executivo ou o judiciário.
A resposta rápida da Secretaria de Cultura deve-se ao fato de que o projeto da Comissão de Paisagem Urbana já existia previamente, mas sem sucesso em sua implantação. Ao levantarmos a questão da Mazeredo no Canal Contemporâneo, através de e-mails enviados aos jornais e ao "Como atiçar a brasa", o Secretário Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, Ricardo Macieira, aproveitou a deixa para mostrar a importância do assunto ao nosso alcaide, que estando em época de eleição, deve ter concordado rapidamente com a estratégia de seu secretário para barrar uma nova "pertub-ação" do Canal. Como disse a própria Mazeredo na recente matéria de 4 de agosto no Jornal do Brasil, sobre a retirada de suas obras por decisão da Comissão, "trata-se de um problema político entre a Secretaria do Meio-ambiente e a Secretaria da Cultura". Sim, devia ser. Mas o que a artista não comenta é sobre a lógica que essa política praticava, quando delegava ao Departamento de Parques e Jardins da cidade a responsabilidade sobre objetos culturais.
O "Como atiçar a brasa" foi pensado como resposta ao isolamento dos jornalistas que cobrem arte contemporânea dentro de suas editorias. Eles re-clamam pela nossa participação, que é normalmente nula, para que esta corrobore para a ampliação de um debate mais qualificado nas mídias tradicionais. O que aprendemos com o caso Mazeredo é que, com essa participação, podemos também contribuir para uma melhor atuação do poder executivo, quando este se vê impossibilitado de agir por falta de força política. Afinal, a força política somos nós.
Para terminar, gostaria que você comentasse qual tem sido o efeito do trabalho de mídia tática "Como atiçar a brasa"; eu percebo que, por mais fascinante que seja esta possibilidade de realmente interferir no conteúdo dos meios de comunicação, nós ainda sofremos de uma certa inércia e acomodação; as pessoas utilizam bem esse canal de "controle de qualidade"?
Patrícia Canetti - O "Como atiçar a brasa" ainda engatinha. O ceticismo e a paralisia política ainda impedem a maioria de perceber os efeitos que podemos conseguir com o simples "tornar visível certas questões", que podem resultar em pequenas e grandes conquistas para a nossa coletividade.
Por falar em coletividade, acho que para começar, teríamos que ter essa percepção e muito mais. Lembro-me quando, no ano passado, Juca Ferreira pediu ao grupo artesvisuais_politicas que entregasse ao MinC um documento falando de nossa cadeia produtiva... Até hoje não foi possível respondê-lo. Alguém se habilita?