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agosto 2, 2004
Do cubo branco à caixa preta
Texto de Giselle Beiguelman, publicado originalmente na Revista Eletrônica Trópico, na seção Novo Mundo - debate
Do cubo branco à caixa preta
Exposições de arte digital e eletrônica correm o risco de canonizar modelos modernistas
GISELLE BEIGUELMAN
O aumento do espaço institucional da produção artística que se vale de meios digitais e eletrônicos no Brasil é notório 1. No momento em que escrevo esse artigo, em julho de 2004, o Santander Cultural de Porto Alegre, o Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília e o Itaú Cultural, em São Paulo, apresentam mostras de arte exclusivamente devotadas à exploração das mídias eletrônicas e digitais.
Simultaneamente, o Sesc de São Paulo apresenta uma exposição que evidencia o impacto da digitalização na produção fotográfica contemporânea -"A foto dissolvida"- e promove "Zona de ação", uma série de intervenções de coletivos nacionais e estrangeiros na web e na cidade e no Estado de São Paulo.
Em agosto, e ainda em São Paulo, é a vez do Paço das Artes abrir as portas para a exposição dos premiados da 4ª edição Prêmio Sergio Motta. Em setembro, a cidade deve pegar fogo com a realização de duas mostras de arte midiáticas no contexto do Sonar Brasil.
O ano se encerra com o File (Festival Internacional de Linguagens Eletrônicas), que vai ocupar o Centro Cultural da Fiesp, com mostra expositiva, a Casa das Caldeiras, com ações e apresentações de VJs e DJs e o British Council, onde se realizará o simpósio do evento. Tudo isso, novamente em SP-SP.
A quantidade de foros está longe de implicar relação direta ou inversamente proporcional à qualidade dos projetos expostos, o que demandaria uma reflexão crítica direcionada à questão e feita por alguém que, preferencialmente, não estivesse, como eu, envolvido no (s) seu (s) contexto (s) expositivo (s).
Ainda que evitando uma discussão dos projetos expostos e suas particularidades, é difícil não perceber o quanto essa notória conquista de espaço denuncia o isolamento desse tipo de produção no cenário cultural brasileiro como um todo. Afinal, não questionar o fato dessas exposições se realizarem apenas dentro de circuitos exclusivamente ligados ao uso de tecnologias digitais e eletrônicas é querer encobrir um de seus impasses críticos mais óbvios.
Não apenas essa produção se realiza em contextos protegidos, sem ter que (nem poder) ser confrontada com outras formas de criação e experimentação, como também ilude o público e a mídia sobre uma suposta versatilidade nacional que não existe, haja vista que essa gama de exposições em cartaz reproduz em seus expedientes, basicamente, um mesmo grupo de criadores e críticos.
Um mesmo grupo que parece viver um desconcertante paradoxo: desenvolver projetos que, pela sua natureza, impõem o confronto com os espaços tradicionais de fruição e reflexão da e sobre a arte e adaptar-se à condição de objeto expositivo, a fim de romper a distância com o público e o próprio circuito de artes e da cultura.
Não-objetos na parede
Exemplo esclarecedor aqui poderia ser o premiado "OP_ERA", de Rejane Cantoni e Daniela Kutschat, um projeto de exploração e investigação de espaços em quarta dimensão que demandou não só desenvolvimento de softwares específicos, mas a implantação de toda uma rotina de programação na Cave (caverna adaptada à realidade virtual e sistemas imersivos) do Laboratório de Sistemas Integrados (LSI) da Poli, na USP.
Pois bem, sem esse espaço laboratorial o projeto não pode ser experimentado e, dificilmente, pode ser compreendido. Exposto no Itaú Cultural, pela primeira vez, e atualmente no Santander Cultural e no CCBB de Brasília, ele tem sido apresentado a partir de um DVD com finalidades documentais.
A solução é traiçoeira, pois transforma em imagem o atributo mais radical do projeto: sua rigorosa pesquisa científica e tecnológica, que conjugava uma experiência estética com uma vivência espacial, capaz de teletransportar os interatores do projeto à quarta dimensão. E isso é impossível de documentar...
Talvez o contato com os diários de pesquisa dessas duas criadoras, seus e-mails e suas diversas equipes, programas de computador que não funcionaram, máquinas queimadas etc., pudesse ser mais apropriado como documentação do projeto.
Contudo, será que isso conseguiria ocupar o espaço expositivo nos termos que público e instituições estão acostumados? Certamente, não. Rejane e Daniela nunca conseguiram sequer convencer uma instituição a alugar uma van e um horário na Cave para levar o público para o laboratório.
Não se pense, entretanto, que o problema se concentra nos projetos que demandam estruturas laboratoriais ou programação específica. Basta lembrar casos de projetos on line, baseados em Internet fixa ou móvel. A priori, esses projetos não precisam estar no recinto expositivo. Podem ser acessados em qualquer lugar dotado, minimamente, de um computador e uma linha telefônica, ou de um reles celular.
Em exposições como "hiper", no Santander, ou Emoção Art.ficial 2.0, no Itaú, isso limitaria a compreensão do público com relação aos links ou não-links entre os projetos on line e os outros tipos de projetos que estão no recinto expositivo.
Mas, se a presença de projetos que não estão localizados no recinto expositivo é justificável por essa perspectiva de análise, o que é inadmissível é a estratégia, largamente usada pelas instituições brasileiras, de travar os websites expostos em nome de "questões de segurança".
Argumenta-se que esse "lacramento" dos sites deixa os sistemas menos vulneráveis e garante que os vistantes não ficarão navegando em sites pornográficos e checando e-mails nos recintos expositivos.
Para proteger-se, em geral, tiram a barra de endereços do programa de navegação, exibem o projeto em modo "tela cheia", independentemente do fato de terem sido concebidos levando-se em conta a máscara do programa de navegação, e desativam o botão direito do mouse.
Consegue-se, assim, um feito notável: domesticar o inteartor e convertê-lo em espectador programado. Ele deve obedecer a um suposto artista onipresente e clicar apenas no website apresentado.
É um expediente comum, porém, incompatível com o próprio ambiente on line -que pressupõe não-sincronicidade da leitura, abertura de múltiplas janelas, abrir, fechar, pesquisar, flanar, voltar, enfim, processamento multitarefa.
O problema se agrava quando o projeto dialoga de fato com a internet, ou seja tem links para outros sites ou pressupõe que o interator visite por conta própria outros sites para realimentar o projeto proposto por um artista determinado.
Sim, é verdade. Esse modelo expositivo deixa tudo mais organizado e limpo. Dá até para acreditar que aquilo é um objeto, uma tela na parede. Mas quem disse que esses adjetivos podem ser utilizados como atributos da própria "Net_Condition", como bem definiu Peter Weibel, numa conceituação que extrapola qualquer invólucro?
Cultura da interface
É preciso entender de uma vez por todas que projetos on line não são projetos de tela, que se dão no monitor, ou no interior de um computador. São projetos mediados por uma interface que, conjunturalmente, ainda têm o computador como seu suporte mais comum.
Por serem projetos de uma cultura da interface, não só os projetos on line, mas todos aqueles que problematizam o uso de mídias eletrônicas e digitais no corpo de sua realização, impõe, necessariamente, que sua crítica e debate levem em conta as estratégias e as opções de programação e a arquitetura de informação que põem em questão.
Caso contrário, redunda-se em apreciações vulgares que oscilam entre o tecnoparnasianismo -o discurso da técnica pela técnica- ou do tecnoxamanismo -o discurso das bases atávicas do digital demiúrgico e redentor.
O resultado é um aborto da discussão tecnológica -a que produz conhecimento-, em favor de um debate essencialmente técnico -sobre ferramentas-, que se limita a conferir se algo é ou não produzido com mídia digital e contabilizar o número de cabos, tomadas e equipamentos envolvido num ou noutro projeto.
A ausência desse tipo de discussão e, especialmente, da revisão crítica de como tem sido operacionalizadas as exposições do tipo das que estão em cartaz de norte a sul do país, se agrava quando se recorda que tratamos aqui de um conjunto de criadores e curadores diretamente ligados a universidade e cursos -tradicionais e emergentes- de pós-graduação.
É alentador pensar que, no contexto de barbárie globalizada em que vivemos, um dos méritos dessa produção (no Brasil e no exterior) é ter como um de seus pilares o vínculo com a universidade, não por necessidade compensatória da fragilidade do mercado de arte, mas pela sua complexidade interdisciplinar e pela impossibilidade de pensá-la como uma produção dicotômica que teria uma esfera teórica e outra prática.
Lidamos com uma linguagem única e inédita. Com uma linguagem fundada em um código executável e não apenas de transmissão, que opera rotinas algorítmicas e pode, inclusive, redundar em processos autogenerativos (um dos campos, aliás, mais fecundos da arte baseada em exploração de recursos digitais).
Isso faz com que sejam considerados extemporâneos, e sem fôlego crítico e artístico, projetos que não tragam embutidos pressupostos teóricos em suas linhas de comando, bem como opções estéticas que não sejam validadas por repertórios tecnológicos.
É bom lembrar que essa é uma área sem valor de mercado, mas que dispõe de alguns programas institucionais mais ou menos generosos e uma interlocução com algumas empresas de tecnologia e telecomunicação, que, vez por outra (nem sempre), podem se interessar em apoiar determinados projetos.
Nesse sentido, estaria longe de ser sensata a opção pela vida acadêmica como corretivo para determinadas incompatibilidades com o mercado. O vínculo universitário, e especialmente com a pós-graduação, se estabelece aí como lugar necessário e decisivo para calibrar uma produção capaz de implodir os limites entre as hierarquias do processo de criação.
É preciso ser capaz de desenhar um sistema, administrar rotinas de programação, lidar com profissionais de diversas áreas, conhecer equipamentos, redigir com clareza, dominar recursos de comunicação e edição -não é possível ter um projeto para o patrocinador, outro para o CNPq e outro para a Instituição-, manter coerência entre os pressupostos teórico-conceituais e as opções metodológicas e, acima de tudo, articular saberes especializados para produzir algo que, pelos seus atributos e funcionalidades, se diferencie do que o mundo do e-biz e do infotainment esteja despejando em velocidade e quantidade avassaladoras.
Isso é o diferencial da criação que se debruça hoje sobre as mídias digitais e eletrônicas. Isso é que faz dela radical e explosiva, teimando em chamar a atenção para a necessidade de a universidade ser levada a sério por aquilo que, essencialmente, a justifica: descompromisso com o imediatismo e capacidade de driblar a suposta separação entre teoria e prática.
Isso é justamente o que não aparece nas mostras supracitadas.
É fácil culpar as instituições e mostrar como elas nos martirizam pedindo objetos onde só temos a oferecer uma intensa reflexão sobre como operamos a crítica dos objetos. Nada mais emblemático do que pensar na situação dos VJs, recentemente alçados à categoria de "dignos do circuito das artes".
Arte do instante e da química entre público, espetáculo, desconstrução narrativa, som, imagem e compartilhamento, é adaptada aos circuitos expositivos como documentação do que não foi.
O vídeo que resulta dessa arte do trânsito, intervenção que se faz em fluxo, entre criadores e no âmbito de um público que não é espectador, mas que está ali, desconcentrado no que se dispara dos e nos telões -ou concentrado em "n" coisas ao mesmo tempo, sem um foco particular- é um detalhe de processo que se esvazia no compacto de resultados que se apresenta, posteriormente, à contemplação dos visitantes de uma sala expositiva escura.
É hora de repensar as estratégias e as motivações. Optar por formatos diferenciados capazes de caber em salas expositivas, sem redundar em coisificações grosseiras e simplificações de problemas que estão abertos pela contemporaneidade da qual fazemos parte.
Caso contrário, a aposta será estúpida: trocar o velho e confortável cubo branco pela barulhenta e incômoda caixa preta.
1 - Esse artigo dá seqüência e discute algumas reflexões de Lisette Lagnado em "O que fazer com o audiovisual no museu?" e em "Arte e universidade: uma relação conflituosa?". Esses dois textos estão acessíveis no "link-se" no final deste artigo. É fruto, também, de um debate realizado no dia 6 de julho com Tadeu Chiarelli, no Sesc Pompéia, em São Paulo, a propósito do lançamento do catálogo da exposição "A foto dissolvida".(retorna ao texto)
link-se
O que fazer com o audiovisual no museu?, por Lisette Lagnado
Arte e universidade: uma relação conflituosa?, por Lisette Lagnado
Hiper - relações eletro/digitais
Emoção Art.ficial 2.0
File
Giselle Beiguelman
É professora do curso de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Autora de "A República de Hemingway" (Perspectiva), entre outros. Desde 1998 tem um estúdio de criação digital (desvirtual - www.desvirtual.com) onde são desenvolvidos seus projetos, como "O Livro Depois do Livro", "Content=No Cache" e "Wopart". É editora da seção "Novo Mundo", de Trópico.
A identidade dissolvida
Sobre a obra de Alice Miceli e a questão do pós-humano
JULIANA MONACHESI
Alguns trabalhos que me vieram à mente enquanto assistia ao vídeo Ínterim, de Alice Miceli: Gisela e Leandro (1998), díptico com saída digital em papel fotográfico feito pela dupla Gisela Motta e Leandro Lima em que o retrato de um foi sobreposto ao do outro no computador e a imagem resultante é a fusão de ambos; a série de fotografias Mom and Dad (1994), de Janine Antoni, em cuja ficha técnica figura o curiosa descrição da técnica utilizada: mãe, pai e maquiagem; as auto-intervenções performáticas de Orlan; a série Pintura (2000), de Clarissa Campello, auto-retratos em que por meio de intervenções digitais e/ou manuais a artista obtém imagens completamente diferentes, como se não fora sempre a mesma pessoa retratada; e, claro, o projeto Narkes (2003), de Helga Stein.
Cada um destes trabalhos tem sua especificidade e não vou me deter nelas, pois não é o caso aqui; só faço a ressalva para não parecer que estou colocando tudo no mesmo "saco". Anyway, o que há de comum entre estas obras? O problema da auto-imagem, uma discussão do auto-retrato? Ok. Mas tanto Janine Antoni quanto Alice Miceli, e a dupla Gisela e Leandro, obviamente, se utilizam de outras pessoas, outros retratados, para "representar" suas próprias identidades, se é que é isso o que está em jogo. A artista francesa traveste o pai com as roupas da mãe e vice-versa, obtendo assim fotografias de dois pais, duas mães e dois travestis.
O que está em pauta é uma transformação, um trânsito entre polaridades ou entre possibilidades; nenhum destes trabalhos propõe um retrato clássico, estático, com cada elemento definidor da identidade em seu devido lugar. Ínterim tem 20 minutos de duração, o tempo exato que transcorreu entre o nascimento da artista e o de sua irmã gêmea. Um close permanente e estático no rosto de uma vai terminar como um close do rosto da outra. Durante os 20 minutos, a transformação é "traduzida" digitalmente: um olho começa a mudar, uma linha de expressão depois, tudo muito sutil, mas encenado como que "ao vivo", diante dos nossos olhos. A mudança é palpável, mensurável, matemática.
É claro que o fato de dispor dos meios técnicos para fazer esta "operação" não implica em dar conta do que se passou naqueles 20 minutos nem do que diferencia uma pessoa da outra. Mas é do embate com este impalpável, imensurável e imponderável que a artista toma partido em seu trabalho. Ela brinca de Deus. Em um plano metafórico, bem entendido, mas que não impede que se analise a obra do ponto de vista das intervenções não-metafóricas desta natureza que a tecnociência torna possíveis nos dias de hoje. Uma "operação" que interroga ou até determina a identidade: eis uma interpretação polivalente, que vale para o vídeo Ínterim e também para a cultura do upgrade humano. Cirurgias plásticas, modificações genéticas... estaríamos nos encaminhando para uma condição de pós-humanidade.
Existe um livro que ilumina esse buraco negro filosófico de forma indescritível. O Homem Pós-Ôrganico - Corpo, Subjetividade e Tecnologias Digitais, de Paula Sibilia (editora Relume Dumará, 230 páginas e os R$ 28 mais bem pagos da história do mercado editorial). Eu poderia escolher inúmeras passagens igualmente iluminadoras para vir em meu auxílio na tentativa de analisar a obra de Alice Miceli à luz desta temática, mas segue esta, em que a autora começa a diferenciar duas linhas de pensamento sobre a técnica que podem ser rastreadas na tradição epistemológica e que contribuem para detectar as bases da tecnociência moderna e contemporânea (está na página 46):
"Os conhecimentos e as técnicas dos homens não são todo-poderosos; seus 'dedos profanos' não podem perturbar todos os âmbitos, pois há limites que devem ser respeitados. Como se depreende logicamente de seus postulados, o progresso dos saberes e das ferramentas prometéicas redunda em um certo 'aperfeiçoamento' do corpo, porém este será sempre naturalista e não-transcendentalista; ou seja, não pretenderá ir além dos limites impostos pela 'natureza humana'. Pois, de acordo com essa visão, os artefatos técnicos constituem meras extensões, projeções e amplificações das capacidades próprias ao corpo humano. Aí a tecnociência de inspiração prometéica se detém, sem pretender ultrapassar o umbral da vida -os 'segredos tremendos as estrutura humana' profanados pelo dr. Frankenstein."
À tradição prometéica apõe-se a fáustica, esta que vai decretar o corpo humano obsoleto e buscar transcendê-lo, rumo ao pós-humano. Orlan é logicamente fáustica. Pois bem, nem se trata de uma dualidade apocalípticos e integrados revisitada nem de um instrumental teórico em que eu vá tentar enquadrar o vídeo de Alice Miceli, mas são questões que se colocam para pensar qualquer trabalho de arte em novos meios que discuta identidade. Outras obras na exposição do Santander adensam este debate, como a de Helga Stein, já mencionada, e a de Patrícia Piccinini, entre outras, e a elas voltaremos.