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julho 31, 2004
hiPer = tempo X recuperado X arte
Foto de Domingues
tempo X recuperado X arte
sobre o trabalho O tempo não recuperado de Lucas Bambozzi, por Patricia Canetti
O som do papel sendo riscado e a imagem do NÃO sendo escrito obsessivamente entre as palavras TEMPO e RECUPERADO foram a minha porta de entrada ao trabalho de Lucas Bambozzi. Sim, sempre existem várias entradas num trabalho de arte, mas nesse trabalho, ainda mais explicitamente.
O tempo não recuperado é formado por 5 vídeos projetados em formas irregulares e adjacentes com suas fronteiras superpostas, com o som dos dois vídeos das extremidades audíveis nas duas pontas do trabalho, enquanto o som dos outros três estão distribuídos em 3 pares de headphones. Esse formato repassa para nós, espectadores, a mesma maneira aleatória de revirar guardados, o espaço-tempo registrado de nossa memória, retratado nesse trabalho com as imagens das caixas de vídeos empilhadas sendo buscadas, que, vira-e-mexe, aparece em algum dos vídeos.
Quando reviramos nossas lembranças, algum tipo de ordenação passa a encadeiá-las e formar seqüências. Cada novo acesso, poderia gerar uma nova ordenação ou mesmo uma nova porta de entrada, mas geralmente os caminhos já percorridos nos viciam a visão e tendemos a revisitar seqüências "prontas".
O que é memória? O que são lembranças? O que é história?
Os computadores geralmente registram nas propriedades dos arquivos apenas as suas datas de criação e última modificação. O computador entende como modificação qualquer acesso ao arquivo, mesmo que nenhuma vírgula tenha sido modificada. O dia que percebi isso, achei os computadores muito burros, mas, num segundo momento, entendi a sua lógica. A informação armazenada só se transforma em memória a partir do acesso ou do uso de algum agente. O computador entende que o tempo é fator suficiente para que um simples contato entre o agente e a informação armazenada modifique a memória. Claro, pensei, teoricamente eu não sou a mesma pessoa de um minuto atrás. O problema dessa teoria é que nós, os agentes, somos humanos. Alguns sistemas operacionais já "evoluíram" nesse entendimento e agora separam acesso de modificação. Agentes humanos sofrem com nós, enganchamentos e vícios que afetam a passagem do tempo e a leitura de suas marcas. Qualquer pessoa que tenha feito análise por um longo período conhece a angústia de revisitar seqüências de acontecimentos, ano a ano, sem que isso resulte numa modificação.
Em o Tempo NÃO recuperado, temos seqüências de imagens formando os vídeos, que estão dispostos alinhados num conjunto de 5 projeções. Lucas Bambozzi consegue com esse formato transpor para o trabalho as várias características do acesso à memória: aleatoriedade, seqüencialidade e simultaneidade. Esse conjunto de características também está presente quando lidamos com os álbuns de família, fotos de viagem, filmes super-8 e vídeos que guardam pedaços da nossa história.
Muitas vezes não consigo saber se uma lembrança minha se relaciona à vivência ou ao registro dela. E mais, esse registro, que pode ser uma foto, um filme ou bilhete, tem atrelado a ele a sua própria "vivência", ou seja, às vezes em que foi visto; o que foi pensado e sentido durante o "acesso", como também os comentários de outras pessoas sobre o registro e o objeto a que ele se refere. Além disso, ainda temos as contaminações que passam de uma história para outra.
No trabalho do Lucas, a simultaneidade das projeções, assim como as edições dos vídeos, permite um transbordamento de sentidos que se deslocam e nos deslocam incessantemente; saltando de um pufe para outro, esperando a nossa vez para trocar o áudio, zapeando o olhar pelos diferentes vídeos ou simplesmente olhando para um outro vídeo com o canto do olho, enquanto mantemos a atenção principal no vídeo que acompanha o áudio que estamos vestindo, e mesmo depois, que nos afastamos da obra... O esforço é mais do que mental, é físico também. Bill Viola é que está certo, quando diz que o vídeo é uma experiência física, maior até que a do cinema.
"Essa é a minha história", revela o pai do artista, que aparece sendo entrevistado numa seqüência de vídeos em preto e branco, que forma uma das projeções.
"Quando foi que o senhor começou a beber muito?", Lucas pergunta ao pai, que responde ter começado a beber aos 17 anos, sem nunca ter sido moderado. Percebemos que se trata do artista e de seu pai durante a gravação, quando Lucas é chamado pelo pai e quando seu tio, Célio, diz a Lucas, "Seu pai foi um menino de ouro, o protegido das tias, o mais simpático, o mais inteligente...";
"O trajeto se confunde, não só com a subjetividade das pessoas, mas com a do próprio meio, como essa se reflete naqueles que o percorrem". Lucas lê esse trecho numa outra projeção, aonde, em outra seqüência, ele caminha ofegante por uma paisagem gelada, dizendo a filha, recém nascida ou ainda por nascer, que ela teria que ver aquilo e muito mais.
Entre a projeção em preto e branco e a que o artista aparece - em várias idades, com amigos, viajando, trabalhando, dançando, brincando, dormindo, ou com sua filha Lívia, ainda neném -, está uma projeção de vídeos com cenas de movimento, de ônibus, de trem ou simplesmente de edições rápidas, inserindo um ritmo, uma pulsação acelerada, que contamina as imagens adjacentes. Nas duas extremidades, outros ritmos pontuam o trabalho. À esquerda, são recortes demorados, de nuvens, lua no céu, brilho na água, paralelepípedos de uma estrada, imagens que seduzem a todos, quando do primeiro relacionamento com uma câmara; à direita, vemos as páginas do projeto de "O Tempo não recuperado" sendo viradas e marcadas com o NÃO, uma a uma.
Vou perguntar ao Lucas o que determinou a escolha das seqüências e o número de projeções. E ainda uma curiosidade técnica: como são feitas as formas irregulares das projeções, que se modificam, cada uma delas, durante a duração do trabalho (ou será apenas uma impressão).
Não sei como terminar esse texto - acho também que o trabalho do Lucas Bambozzi não tem um fim, assim como não tem um começo. (O trabalho que está sendo visto na hiPer é um estágio do work in progress, que ganhará uma versão interativa na mostra do Prêmio Sérgio Motta, que abre na segunda, 2 de agosto, no Paço das Artes, em São Paulo. Estou curiosa para vê-la, pois considero que Lucas já conseguiu uma interatividade bastante interessante na sua primeira versão, resultado do jogo das 5 projeções com a movimentação do espectador em direção a um áudio desejado.)
Do tempo recuperado e não recuperado, concluo apenas que formam um processo, que resulta na nossa história - construída na contaminação do trajeto, que se dá no tempo passado-presente-futuro.
julho 27, 2004
Cristina Miranda e Cristina Salgado
Conversas sobre a exposição Sensores cotidianos, de Cristina Miranda, em cartaz até 8 de agosto de 2004 no Espaço Cultural Sérgio Porto
Espaço Cultural Sérgio Porto
Galeria 1
Rua Humaitá 163
Botafogo Rio de Janeiro
21 2266-0896
Terça a domingo, das 12 às 21h.
Cristina Salgado - Como você vê a formação acadêmica do artista hoje e especialmente no Brasil?
Cristina Miranda - Na minha opinião é importantíssimo que exista a formação acadêmica do artista, porque assim questionamos a idéia tão difundida de que só seria artista aquele que nasce artista. Por debaixo desta idéia está o conceito de artista gênio, dotado desde o berço de algo diferente das outras pessoas Eu considero muito mais atrativa a idéia de que um artista se faz. Acredito na possibilidade de formar a sensibilidade, de ajudar que a criatividade que todos levamos dentro -em distintos graus, campos e níveis de expressão- possa encontrar um leito e fluir, protegida e nutrida. A formação artística acadêmica pode ser um instrumento para o cultivo desta criatividade que pode chegar a dar origem a artistas, ou a pessoas criativas em qualquer campo da atividade humana. Neste sentido a ênfase da formação acadêmica deveria ser tanto na formação prática como nas teórica e analítica. Ajudar para que a pessoa possa fazer perguntas e buscar as suas próprias respostas, conhecer como a arte deu respostas a algumas perguntas e dar os instrumentos para que o artista possa pesquisar e aprofundar sua percepção e seu conhecimento do mundo, do espaço, da matéria, do tempo, da sua sociedade, cultura e época, e do sistema da arte no qual está submerso. Com respeito às técnicas e tecnologias, para mim, estas têm um papel restrito como meios e nunca como fins em si mesmos.
Em relação à formação acadêmica no Brasil, lamento dizer que não a conheço em profundidade pois me formei como artista plástica na Espanha, mas acredito que as preocupações sejam as mesmas dos diversos países do mundo.
CS - Seria possível que você identificasse algumas experiências -estéticas ou não- que você considera que foram fundamentais, mesmo a longo prazo, para a produção que você apresenta agora na galeria do Espaço Cultural Sérgio Porto?
CM - Esta exposição expressa uma acumulação de experiências perceptivas e conceituais. Venho trabalhando com os diversos sentidos, a transsensorialidade na arte e especialmente com processos artísticos não visuais. Por outro lado, este trabalho se refere muito especialmente ao observador, à posição que assumimos como observadores e observados na nossa relação com o mundo. Estamos dentro e fora, nos vemos vendo. Esta idéia está presente na imagem que se forma no recipiente com água, uma espécie de microcosmos que capta todo o espaço e nos insere nele, enquanto nós, como observadores, permanecemos à margem da imagem, fora do microcosmos, expectantes, observantes.
Na obra tento capturar estas imagens de luz que vejo ao meu redor, efêmeras, frágeis, pequenas. São imagens que sempre nos acompanham e que apenas vemos. São presenças quase invisíveis.
Os objetos cotidianos atuam como sensores constantes. As superfícies espelhadas destes sensores que nos espreitam, nos captam, nos registram, funcionam como telas ativas de projeção, que conformam as imagens que captam dando-lhes suas próprias características, reinterpretando-as. Esta reinterpretação é sempre um registro borroso, mudado, pouco nítido, distorcido e que nos oferece uma imagem deformada, uma imagem que se adapta à forma destes sensores, uma imagem que se adere, que veste a superfície refletora destes objetos cotidianos como se fosse uma segunda pele. Aqui também se produz uma analogia com filtros interpretativos, ou teorias que temos para interpretar a realidade. Somos também como estes objetos que captam a realidade de forma estereotipada, deformada. Classificamos e estereotipamos a realidade em função dos nossos filtros de educação, de cultura, de posição social, de situação pessoal etc.
CS - Neste trabalho você estrutura uma subversão no uso da tecnologia da imagem. Seria possível falar sobre as relações dessa estrutura com uma narrativa poética?
CM - Para mim a tecnologia é somente um meio e o que importa é o que se revela através de qualquer meio. Na instalação existe uma forte inter-relação entre a presença do observador, a imagem-luz que se forma e a tecnologia que a capta e a projeta ampliada. É uma poética da fragilidade, do efêmero, da impossibilidade de reter a realidade, da impossibilidade de reter e fixar a fluidez da vida. A fixação é sempre o passado.
Por outro lado na exposição se produz uma situação dupla, de contraste. A imagem captada instantaneamente na água (parte da "instalação") é sempre êfemera, não se estabiliza, como a vida que é inapreensível, algo que se resiste à "apropriação humana e geométrica do visível", como diz Hubert Damisch, e que permanece irrepresentável: é o sensor em ação. Em contraposição, as fotografias são momentos congelados desta mesma ação, captados sobre sensores que já não captam, simplesmente informam de uma situação que já está desconectada da realidade que sucede na sua presença. São os sensores descontextualizados, inativos neste espaço, mas que continuam ativos em outros espaços. Nas fotografias que acompanham a instalação, os sensores cotidianos estão inativos, oferecem imagens de objetos e situações que já não estão mais presentes. Se produz uma dessintonia entre a imagem que oferecem e a realidade do observador, enquanto, por contraste, a imagem na água está sempre atualizando-se, mas nesta fluidez constante não é capaz de representar. Quando há fixação não há presença, quando há presença não pode haver retenção.
Um sensor cotidiano, quando ativo, é capaz de condensar todo o espaço que o cerca em imagens microcósmicas, como pequenos universos densos. Pequenos mundos deformados, estranhos, que nos observam constantemente, se queremos também observá-los. Somos observadores e observados, nos observamos observando e nos observam enquanto observamos. Estamos aprisionados dentro destas geometrias objetuais, em círculos viciados impossíveis de superar.
As imagens fotográficas estão transladadas à tela por processos digitais por uma alusão à pintura: o observador é simultaneamente pintor, artista, performer, simultaneamente produtor e consumidor, emissor e receptor.
Cristina Miranda mora em Viscaya, Espanha, onde fez formação acadêmica em artes plásticas. Atualmente cursa o Doutorado em Belas Artes na Universidade do País Basco UPV-EHU.
Cristina Salgado é artista plástica e professora do Instituto de Arte da UERJ e doutoranda em Artes Visuais da EBA|UFRJ.
julho 14, 2004
hiPer>entrevista
Betty Leirner comenta seu filme Political Mistakes
Canal Contemporâneo - Por que você escolheu trabalhar com os idiomas inglês, hebraico, iídiche, árabe e japonês na obra Political Mistakes?
Betty Leirner - Em se tratando de um filme que tem por cenário de fundo o conflito no Oriente Médio, a escolha do árabe e do hebraico aparece por serem estas as principais línguas através das quais o conflito se processa; o iídiche entra enquanto língua híbrida e nômade, e o japonês enquanto a língua incógnita, a língua que representa o estrangeiro, o desconhecido; o inglês aparece enquanto denominador comum. Para quem entende japonês, quem sabe seja o iídiche a língua incógnita? Para quem não entende nenhuma destas línguas, a música aparece enquanto a língua de Babel.
As cenas principais do filme, nas tomadas no Muro das Lamentações, nas tomadas dos aparatos de segurança e da cúpula sagrada do outro lado do muro, se iniciam ao som de um sensível e importante intérprete do mundo sufi ao cantar em árabe um poema que fala da impossibilidade do amor e de separação, e passam à grandiosa e rara interpretação da reza judaica dos mortos, o kadish, cantada a partir da música de Ravel. Quem não conhece estas duas línguas, talvez não perceba e não imagine que sejam diversas.
Canal - De que tipo de produção você precisou para realizar as locações? Era permitido filmar em todos aqueles lugares?
Betty - Geralmente, com algumas exceções, filmo a realidade e os locais por onde vou para depois passar ao processo de montagem a partir do material escolhido. No caso de Political Mistakes, alguns "milagres" aconteceram. Por exemplo, é proibido filmar no Muro das Lamentações. Eu realmente não tinha a intenção de filmar, estava apenas visitando, mas parece que fiquei invisível e tudo se passou como se fosse um sonho. As cenas intimistas foram filmadas a poucos centímetros de distância, subi numa cadeira e, simplesmente, filmei. Foram momentos de transgressão, suspensão e profunda introspecção.
Canal - Algumas pessoas são retratadas bem de perto, principalmente aquelas rezando junto ao Muro das Lamentações, e também os turistas japoneses. Houve algum tipo de "encenação" ou as pessoas realmente se deixaram filmar no local?
Betty - No caso dos turistas japoneses, podemos sentir no filme o desconforto que provoquei ao filma-los. Eles se escondiam, e eu parava de filmar. Não trocamos palavras. Na hora de montar o filme, utilizei as seqüências inteiras e misturei o som direto das cenas com passagens sonoras escolhidas para modificar o sentido das imagens.
Em Petra, na Jordânia, pedi aos beduínos montados a cavalo que passassem algumas vezes pela câmera para que eu pudesse filmá-los. No caso do Muro das Lamentações, creio ter havido uma espécie de "intervenção divina" que possibilitou a filmagem. Esta foi, porém, até agora, a primeira e a única vez que filmei a dor alheia.
Canal - Os travellings por montanhas e paisagens desertas contrastam com a câmera quase estática quando da presença humana; as diferenças religiosas são o elemento mais paralisante na questão israelo-palestina, na sua opinião? As disputas por território seriam a mera simbolização deste conflito mais profundo? A câmera "cala" para evidenciar uma divergência irredutível?
Betty - Quando filmo pessoas, busco deixar passar as expressões e os sentimentos sem palavras através das imagens fixas para depois encaixá-las enquanto seqüências do filme, utilizando o pensamento silencioso e aberto dos atores, que no caso são todos incidentais, para criar um trabalho subjetivo. A câmera não cala, a câmera observa e capta de maneira quase neutra, para deixar que o sujeito, no caso o protagonista, desenvolva seu pensamento sem desvios provocados pela distração que os movimentos de câmera poderiam produzir.
Não creio serem as diferenças religiosas o elemento mais paralisante das questões israelo-palestinas, mas sim as semelhanças percebidas enquanto diferenças e principalmente a instrumentalização do conflito pelos atuais dirigentes dos dois povos irmãos.
Canal - Qual a função das palavras na obra Political Mistakes?
Betty - As palavras aparecem em meus filmes primeiramente enquanto elemento da paisagem, filhas da imagem e do som. Por vezes, as palavras propõem as imagens e traduzem ou modificam os sons. Em Political Mistakes, uma função adicional das palavras é a de configurar um esqueleto poético que sustenta e conduz a relação entre as diversas linguagens (musical, imagética e de sentido), propondo desta maneira uma colocação sugestiva a respeito do conflito, através do fato de contrastar palavras diversas que querem dizer a mesma coisa.
Canal - Qual o papel semântico dos animais no filme? As pombas e os tubarões dizem algo que as palavras não podem dizer?
Betty - Bem, sempre me perguntei se os animais também falam línguas diferentes, quando nascidos em países diferentes. Ao avistar o casal de pombas, uma branca e outra cinza, no mais profundo pedaço de terra do planeta, muito abaixo do nível do mar, no meio do deserto do Neguev, dei risada ao pensar no sentido simbólico que estes animais possuem, ao vê-los quase imóveis no espaço quase infinito. Quanto aos tubarões, estes não precisam dizer nada: são comuns a todas as nacionalidades e a (quase) todos os mares.
Canal - Você poderia comentar o encontro das imagens com a música em seu filme?
Betty - Eu poderia destacar o momento em que os peixes dançam exatamente aos sons do sax egípcio, o ponto em que a paisagem e as diferentes texturas e cores de terra do deserto aparecem fragmentadas e corridas ao som do bíblico texto Children go where i send thee ("Crianças, ide aonde vos envio"), e a passagem em que o Mar Vermelho (de um profundo azul) é agitado ritmicamente pelo vento, fazendo pensar que as imagens tenham sido manipuladas. Em todos os meus filmes (de 1994 a 2000) nunca modifiquei o tempo de filmagem, acelerando ou diminuindo o ritmo das imagens. Tenho um profundo respeito à realidade, que passa a se tornar ficção a partir do momento em que começo a modificá-la. Isto não se dá a partir de processos mecânicos, mas através das relações entre as linguagens.
julho 11, 2004
Você viu o que eu vi?
Obra de Chris Cunningham na hiPer possibilita infindáveis leituras
JULIANA MONACHESI
Ao longo dos 12 minutos de duração do vídeo flex, de Chris Cunningham, acompanhados de uma composição eletrônica de Richard James (do Aphex Twin), acontecem algumas coisas perturbadoras. Uma mulher nua se arrasta, ensangüentada, olhando com pavor para trás. Para nós, espectadores. Da escuridão surge uma superfície corpórea difícil de identificar. É pele, tem veias, não se move. Então surge uma mão que lhe imprime movimento, como uma ameaça.
Não vou generalizar e dizer que neste momento "nós, espectadores" tememos estar prestes a presenciar um estupro. Afinal, cada um entra na sala onde está sendo projetado o filme de Chris Cunningham na hora que quer, podendo vê-lo desde o começo, o meio ou o fim, podendo também assistir apenas a um destes pedaços e nem chegar a ver a cena em que parece que aquele homem violento vai estuprar aquela mulher fragilizada. Alguém deve ter tido a experiência oposta: tendo visto a história a partir do ponto em que a mulher massacra o cara, pode ter dado um sentido completamente diverso à cena da masturbação.
O fato é que o acaso me fez ver flex pela primeira vez a partir de um ponto determinado que levou à interpretação que eu comecei a esboçar no primeiro parágrafo deste texto. Como boa espectadora de exposições de arte contemporânea, entretanto, não permiti que o acaso interferisse mais do que o aceitável. Vi e revi e revi e revi flex. Estou convencida de que não se trata de um estupro. Estou convencida de que o tema desta obra de Chris Cunningham é a Criação, uma fábula cósmica para os tempos contemporâneos.
Entretanto, não consegui começar este texto para o "Quebra de Padrão" de outra forma. Precisei mencionar a primeira impressão que eu tive da obra pelo simples acaso de ter entrado na sala no momento em que aquele pequeno trecho de filme sugeria (ao menos para mim) que pudesse se tratar de uma ameaça de estupro. Isso me leva a duas únicas conclusões possíveis: 1. o mito da Criação nada mais é do que a história de um estupro; 2. em uma exposição com videoinstalações, o momento em que se entra na sala é determinante na fruição da obra.
Deixo essa questão maior e alarmante (1) para os especialistas e me detenho na questão de não menor envergadura (2). Levaria o exemplo da minha irrelevante experiência assistindo ao magnífico (e muito mais complexo do que fiz parecer, com inúmeras camadas de significados: da questão da releitura de pinturas clássicas ao interesse pela anatomia, passando pela suposição de ser ele "metáfora do amor e do ódio entre homem e mulher", como o define a curadora de hiPer) filme flex a concluir que as repisadas noções de obra aberta e anticinema (instalações de arte com hora marcada?, nem pensar) ainda dão pano para a manga?
Aproveitando-me descaradamente do veículo de comunicação em que esta "reportagem" será publicada, vou quebrar mais um padrãozinho e parar o texto na metade. Mais que isso, só posso dizer que Chris Cunningham voltará à baila. (Aceitam-se comentários e sugestões!!!!!!)
julho 2, 2004
Museu submerso
Obra de Ricardo Ribenboim mostra novas formas de pensar e executar arte
JULIANA MONACHESI
Levando ao limite a discussão do "habitat natural" da arte, o trabalho de Ricardo Ribenboim na exposição hiPer é uma crítica contundente à situação fossilizada da obra de arte dentro do espaço museológico. Em uma estratégia de fazer do mundo novamente o habitat da arte, o artista mergulhou uma de suas conhecidas esculturas de madeira -articuladas de modo a conferir movimento à peça- dentro da lagoa da Conceição, em Florianópolis. Ao longo de 18 meses, a peça foi incorporada ao novo habitat, absorvendo elementos faunísticos e configurando-se como um recife artificial em potência.
Seu futuro foi, entretanto, interrompido para que a obra pudesse ser exibida em Porto Alegre. Em meio a caixas de transporte de obras e de aparelhagens, muito semelhantes entre si, destacava-se durante a montagem um estranho recipiente cinza fechado com uma tampa que parecia uma escotilha e trazia afixado o aviso: "SÓ ABRIR NA PRESENÇA DO ARTISTA". O Bicho LC2 foi dali para um aquário, cheio com água da lagoa da Conceição, e os crustáceos, moluscos, tunicados, anelídeos e briozoários que a escultura hospeda foram logo alimentados com uma ração flutuante ("ovos sem casca de artemia", segundo a embalagem).
O Bicho LC2 é um de vários objetos de Ribenboim que hoje vivem submersos em Florianópolis. "Minha intenção era tirar o trabalho da situação de obra acabada, de idéia fossilizada", conta o artista. O trabalho já tinha tido uma circulação em espaços de cubo branco, como o PS1 (MoMA, NY, 2001-2) e a galeria Nara Roesler (1999), mas havia muito tempo que o artista queria radicalizar sua pesquisa acerca da mudança da natureza da matéria. Com a ajuda de biólogos marinhos, entre eles seu filho, o artista realizou o monitoramento e registro da peça no fundo da lagoa durante 18 meses. "É um espaço não-visto pelo espectador, que por meio do vídeo pôde ser também deslocado para a exposição."
Os outros bichos vão permanecer na lagoa, "pertencem a este espaço", mas o LC2, retirado de lá para que se pudesse mostrar o resultado do trabalho do ponto de vista plástico (das transformações que sofreu) e videográfico (trechos do monitoramento são projetados em uma placa colocada sobre o aquário) ao mesmo tempo, vai passar por um processo de plasticação (espécie de mumificação, que pereniza o material): "um obsoletismo planejado", nas palavras de Ribenboim.
O artista experimentou fundir a peça em alumínio e colocar no fundo da lagoa essa versão ainda mais estranha ao ambiente marítimo: "No caso do alumínio, a peça fica ainda mais cheia de craca. Parece um leão marinho, um bicho novo. Um amigo meu comentou que o trabalho lembra as transformações plásticas do Michael Jackson -altera-se tanto que vai sobrar apenas a casca, mas sempre terão o mesmo 'DNA'."
No longo prazo, é de se perguntar de que lado do limiar entre arte e arqueologia as peças vão ficar: à medida que cada escultura vira um grande recife artificial, ela é totalmente integrada ao "acervo" do museu submerso. "Forçar a adaptação de um elemento estranho dentro deste espaço é como promover um curto-circuito no tempo; pode-se fazer uma projeção no presente do que ele será no futuro. O que pode acontecer com ele daqui a mil anos? Vai ser tratado como objeto antropológico ou como obra de arte?", pergunta.
O trabalho é todo projetado no computador e as partes que compõem a estrutura, devido a seu encaixe, como que permitem um amolecimento da madeira. Este amolecimento estava presente de forma um pouco distinta em instalações como a do Paço das Artes, em 2000, onde havia uma escultura de mármore e a mesma forma colocada em movimento digitalmente em projeção sobre o pó do mármore. Nos "infláveis", o enrijecimento acontecia por conta do ar injetado naquela forma amolecida, e no projeto do Arte/Cidade 3 (1997), os diferentes estados de uma matéria (derretimento, fervura, liquefação e evaporação da água) eram vivenciados ao longo do serpenteante ramal ferroviário.
"Buscar um novo lugar para pensar e executar a produção artística é parte das minhas formulações. Poder instalar meus trabalhos na ilha de Fernando de Noronha será outra etapa, onde não haverá apenas o observatório das minhas experiências, como na lagoa da Conceição, pois se trata do lugar onde as pessoas de fato têm um museu embaixo d'água. Lá poderá ser o lugar do olhar submerso -o foco de atenção na ilha é efetivamente subaquático. É interessante pensar no deslocamento do trabalho para onde estão os olhos em vez de pensar em levar os olhos para onde ficam os trabalhos, como nos museus", defende Ribenboim.