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junho 29, 2004
Uma lente para ver a pós-subjetividade
Conheça o projeto de rede desenvolvido por Giselle Beiguelman para hiPer
JULIANA MONACHESI
"Hackeie o museu", incentiva a home do Egoscópio 2.0, trabalho de Giselle Beiguelman na hiPer, que pode ser visitado no endereço www.desvirtual.com. "Você é o WebJ", encoraja a página de postagem de arquivos de texto ou de imagem. Toda e qualquer coisa enviada para o egoscópio é jogada imediatamente em uma projeção dentro do Santander Cultural. A atividade de "webjaying" pode ser fixa ou nômade, integrando um número incontável de variáveis (e subjetividades) que, surpreendentemente, resulta em um retrato inteligível.
As imagens "artísticas" ou de obras de arte reconhecíveis disputam espaço com fotos do tipo que se costuma encontrar em fotologs (retratos anônimos de família, amigos, caras e bocas, poses etc.), com cenas de Porto Alegre e da própia exposição no Santander (muito em função da "parceria" não programada entre o Narkes, trabalho de Helga Stein que será apresentado e discutido mais adiante no Quebra de Padrão, e o Egoscópio) e com imagens de cunho jornalístico e/ou publicitário (o símbolo do time de futebol, a foto da cantora predileta etc.). Os textos variam do "fulano esteve aqui", fazendo do painel uma parede em que se deixa uma pichação banal, a máximas e comentários curiosos.
Como o próprio nome do trabalho diz, trata-se de uma nova versão do primeiro Egoscópio -"upgrade", nas palavras da artista. A versão 1.0 é apresentada no site desvirtual como "uma teleintervenção que propunha mapear um personagem fluido chamado Egoscópio. Combinando recursos de Internet e Intranet, o Egoscópio configurou-se como experiência bem-sucedida de ação de público aberto que recebeu mais de 2.200 contribuições gerando um interessante banco de dados das múltiplas identidades do nosso caráter 'descorporificado'. Egoscópio discutiu não apenas formatos de nova subjetividade, mas também veiculou práticas de autoria e recepção interceptadas por processos de entropia e aceleração".
Realizado em agosto de 2002, durante o FILE, o trabalho consistia em veicular as informações postadas no site do Egoscópio em dois painéis eletrônicos publicitários da avenida Faria Lima. Os usuários participavam escolhendo entre opções pré-determinadas e restritas a URLs, que indicavam o tipo de roupa, obras de arte, a língua materna etc. que configurariam este "sujeito pós-subjetivo, sem identidade porque amálgama da identidade de todos nós, sujeitos mediados por mídias". O trabalho logo fugiu ao controle da artista; cada um punha no ar o que bem entendia, a maioria tentando se promover. "Apesar de eu querer fazer um trabalho sobre subjetividade, as pessoas queriam seus dez segundos de 'cybercelebrity'", conta.
Desta vez, Giselle Beiguelman abre mão do controle da variáveis, permitindo o envio de qualquer tipo de arquivo, de forma que o Egoscópio 2.0 configura-se de fato como um instrumento para ver a subjetividade contemporânea. O usuário de internet fixa ou de tecnologias de internet móvel (SMS, MMS), assim como o visitante da exposição, pode colaborar com imagens ou textos. "A proposta é que o trabalho funcione como webjing mesmo", explica. A artista acredita no fator "peopleware", não estabelecendo qualquer controle apriorístico dos conteúdos postados: "Acho que o trabalho não se presta a determinadas coisas e o Egoscópio é uma aposta de que existe inteligência coletiva, sim. Eu nunca tive problema com público, nunca tive o site derrubado".
Interface em que Beiguelman se apaga como autora, o projeto não sobrepõe nem sampleia as intervenções alheias, antes dispõe de forma democrática as variadas colaborações (e nisso dialoga com a tentativa de conferir dignidade ao anônimo presente na obra de Jurandir Muller e Kiko Goifman - ver texto do dia 10 de junho). O borramento de limites entre mundo real e virtual, tão acentuado nas críticas elogiosas que a artista recebeu (em textos de sites especializados a matéria no NYT), propiciado pela interação entre a intimidade da navegação feita em casa e a veiculação em painéis na rua, sofre nesta versão um rebaixamento uma vez que o resultado pode ser visto apenas na projeção dentro do Santander Cultural.
junho 23, 2004
Em busca de uma ginga eletrônica
Kátia Maciel traz tradição brasileira para o centro da discussão tecnológica
Clique para assistir ao vídeo-clipe do Ginga Eletrônica feito pela artista
Caso você não consiga ver o vídeo, acesse a página www.realplayer.com, faça o download da versão gratuita e instale-a no seu computador.
JULIANA MONACHESI
"Eu nunca teria feito esse trabalho se não tivesse feito uma aula de capoeira." Habituada a ouvir cotidianamente as palmas e o berimbau de um grupo perto de sua casa, a artista Kátia Maciel resolveu fazer a experiência de entrar na roda deste ícone da tradição brasileira. Na primeira vez em que foi colocada na roda, "lugar onde só entra quem sabe jogar", vivenciou uma sensação de perda de centro. O mestre, ali bem na frente dela, tornou-se invisível naquele espaço e, ao mesmo tempo, uma transformação da temporalidade aconteceu: "Eu não era mais a mesma".
Com mestrado e doutorado feitos na área de cinema, Kátia Maciel desenvolve em seus trabalhos artísticos noções de cinema estendido ou espacializado, que via de regra prevêem experiência de interatividade. Em "Ginga Eletrônica", desenvolvido para a mostra "hiPer", cinco projeções simultâneas e sincronizadas recriam a sensação que ela vivenciou de perda de centro: construída como uma sala circular, com quatro entradas, a instalação mostra uma roda de capoeira. Quando o visitante "pisa na roda", aciona sensores que disparam uma primeira luta. Assim que outra pessoa entra, começa uma segunda luta, e assim sucessivamente. Do alto, uma projeção no chão mostra a luta do ponto de vista do jogador: estas imagens foram capturadas com uma câmera acoplada a um capacete na cabeça do capoeirista.
A idéia aqui foi deslocar para um ponto de vista diferenciado uma tradição incansavelmente registrada e documentada. A capoeira, nesta obra, é olhada a partir das possibilidades tecnológicas de ponta, "é um olhar contemporâneo sobre a capoeira; a virtualização de uma prática com séculos de existência". Para tanto, uma verdadeira orquestração precisou ocorrer. Tudo foi filmado em estúdio, coreografado, captado separadamente e depois editado para se obter a sincronia. Mesmo o som foi gravado de maneira independente, respeitando a coreografia, os altos e baixos da luta: "o berimbau é um instrumento de poder, que rege as relações dentro da roda. Uma pessoa que sabe capoeira entende o que o berimbau está dizendo", conta a artista.
O som foi transformado em música eletrônica e espacializado com sistema 5.1 pelo especialista em áudio Fernando Moura, que fez o som de todos os filmes de Kátia Maciel até hoje. A orquestração de todas as variáveis privilegiou o centro, assim como a roda de capoeira existe em função do que acontece dentro dela, como uma camada de proteção do mundo exterior e uma estrutura de apoio para que a singularidade do jogo seja possível, sem exceder as regras, e pelo primado da arte.
Instalado no centro da exposição no Santander Cultural, o trabalho de Kátia Maciel padece por vezes de variáveis do desgaste técnico de um maquinário que a equipe de manutenção não tinha como prever. A "Ginga Eletrônica" perde o rebolado na convivência cotidiana com os visitantes, mas não perde o encanto, assim como eventualmente um capoeirista dá um passo em falso para, em seguida, retomar o ritmo dos movimentos da luta. São as surpresas a que a produção feita com tecnologia de ponta está sujeita ao longo de uma exposição formatada ainda segundo paradigmas datados -como são todas as exposições de arte digital, em busca de um formato apropriado.
junho 22, 2004
hiPer>beckettianas
Leia trecho da conversa que o Canal Contemporâneo teve com os irmãos Guimarães no dia 29 de maio, em Porto Alegre, durante a montagem da exposição, em que falam sobre a relação de sua obra com a de Samuel Beckett:
Sobre o "encontro" com Beckett
Fernando: Nós já conhecíamos bem a obra do Beckett antes de fazermos nossa primeira exposição como artistas. Havíamos montado "Esperando Godot" em 1996, por exemplo. Mas a aproximação maior aconteceu quando nós passamos por uma experiência familiar que decidimos transformar em um trabalho, que foi naturalmente ao encontro de Beckett. O projeto partiu de um quarto que ficara fechado durante 40 anos na casa dos meus avós. Eu tinha um avô que era médico, que faleceu muito cedo, eu nem o conheci, e minha avó fez do quarto onde ele ficava uma espécie de santuário, onde nós nunca pudemos entrar.
Então, depois que ela faleceu, a gente entrou no quarto e viu as coisas que ela tinha guardado dele; havia cartas, fotografias, registros dos pacientes dele, e foi por meio desse material que nós começamos a saber como era aquela pessoa. E como não tínhamos conhecimento concreto algum sobre este avô, acabamos construindo uma identidade para ele; se era verdadeira ou não eu não sei, mas era a identidade possível. Partindo desse material, resolvemos mostrar em uma exposição algumas coisas que falassem sobre essa identidade construída. E como estávamos trabalhando o tempo inteiro com essa questão da memória, quando fomos escolher o que entraria de texto no trabalho, descartamos a idéia de traduzir as cartas que ele tinha deixado -porque tinham um valor muito pessoal, que, enquanto dramaturgia, não se sustentava_, e chegamos em Beckett, que fala muito sobre isso.
Sobre a metáfora do chapéu
Fernando: A questão do chapéu em Beckett é um exemplo de como ele trabalha a questão da memória. Em várias obras ele se refere ao chapéu, dizendo o seguinte: que o filho nasce e o pai faz com que o filho use chapéu, então o filho se rebela em relação à utilização desse chapéu o tempo inteiro, até que um dia o pai morre e o chapéu pode ser jogado fora, mas a cabeça já está acostumada com o chapéu, ou seja, essa identidade que vem herdada de várias formas é um tema freqüente em Beckett.
Sobre a linguagem descarnada
Adriano: O que primeiro a gente conheceu do Beckett foram as peças, só depois a gente foi para a literatura. As peças dele têm um aspecto singular, que é o texto não ser o principal, como em geral é no teatro. O Beckett constrói uma cena toda na qual o tempo é fundamental, ou a visualidade, e isso foi uma coisa com a qual a gente se identificou muito. Para ele, não é só o som da palavra que tem importância, nem só o significado da palavra tem importância.
Fernando: Uma coisa que a gente gosta muito em Beckett é essa questão de descarnar a coisa para chegar no mínimo da essência. Outro exemplo disso é que ele escrevia suas obras em um idioma e traduzia ele mesmo para outro idioma, nem sempre mantendo na tradução o texto original, porque se era o som de uma palavra que o agradava, então ele traduzia esse som.
Sobre a respiração
Adriano: O Beckett era irlandês, a língua mãe dele era o inglês, mas ele gostava de escrever em francês, justamente para não ter tanta possibilidade de alusão, para a palavra ser mais pura, digamos, estar menos ligada a outras experiências. Depois ele traduzia para o inglês. Formalmente ele já interessava à gente por ser uma pessoa que transitava por muita coisa, trabalhava com várias mídias diferentes, e conceitualmente nos interessavam essas questões de que ele está sempre falando, como a finitude...
Fernando: Tem uma peça dele que tem 35 segundos e que mostra a essência do discurso dele. Chama-se "Respiração". Ilumina-se o palco e nele há montes e montes de lixo. Aí começa a clarear uma luz muito suavemente, ela entra com um choro de bebê, depois entra uma inspiração, aí começa a expiração, a luz começa a diminuir até que se apaga com um choro de bebê de novo.
Adriano: Ou seja, a vida em 35 segundos, e o que você tem ali é lixo, matéria orgânica, aquilo de que o ser humano é feito. É uma síntese maravilhosa o que ele obtém nesta peça. Quer dizer, ele chama de peça, mas não tem ator, não tem texto... é uma obra visual.
junho 21, 2004
Luz sem luz
Adriano e Fernando Guimarães criam armadilha para os olhos na hiPer
Clique para ver a performance na instalação dos irmãos Guimarães
Caso você não consiga ver o vídeo, acesse a página www.realplayer.com, faça o download da versão gratuita e instale-a no seu computador.
JULIANA MONACHESI
O trabalho gira em torno da luz, unindo arte e teatro. Em Beckett, muitas vezes os grandes protagonistas eram a luz, os objetos, a respiração. Nesta obra de Adriano e Fernando Guimarães, a luz é o que determina a poética. Na parte externa de uma "casa" feita de tijolos aparentes, com acabamento tosco, foram construídas duas "caixas de performance", forradas com fórmica. Dentro das caixas existem fones de ouvido nos quais se ouvem definições de dicionário para a palavra luz. As instruções, elemento recorrente no trabalho dos artistas, plotadas nas caixas, determinam que quando a luz estiver acesa dentro da caixa, o performer deve correr e, quando apagada, deve permanecer parado em silêncio escutando o áudio.
Dentro da casa, na antecâmara, toda forrada com telas de aço inoxidável, quatro projetores com textos de Samuel Beckett têm sua luz refletida e diluída pela superfície espelhada. Os textos estão configurados sobre fundo preto com letra branca, fazendo com que, por vezes, a luz de uma letra cegue o espectador. Na sala do fundo, cinco monitores LCO mostram um mesmo personagem que abre uma janela virtual e percebe que, na medida em que a luz entra no ambiente, ele, personagem, é aniquilado por ela, uma vez que também ele é virtualidade, é pura luz. Ele fecha a janela enquanto uma outra se abre em outro monitor, para a qual ele se dirige em desespero, e assim começa uma batalha contra a extinção.
A instalação toda estabelece um jogo no qual a luz funciona como reguladora da ação. Este jogo nada mais é do que uma metáfora da vida. "O problema do ser humano é viver entre luz e escuridão, entre vida e morte, sempre tentando lutar contra a morte e o trágico, no que nenhum homem é bem-sucedido", diz Adriano, citando de memória uma frase de Beckett. Este embate se materializa na contraposição entre definições físicas e metafóricas da luz. A sintaxe científica pretende abarcar o fenômeno no que ele é, determinando-o, controlando-o. A sintaxe poética e artística possibilita que a palavra erre por sentidos diversos, até opostos, conferindo ao fenômeno seu caráter imponderável.
O fato de o invólucro do trabalho ser uma casa de tamanha concretude possui um caráter metafórico também: a primeira coisa que protege as pessoas da luz é a casa. Sobre a estrutura, construída no hall principal do Santander Cultural, outro texto em alto relevo pode ser visto do andar superior. As letras são grandes o bastante para serem lidas, mas pequenas o suficiente para dificultarem a leitura. Como no restante do jogo, aqui o espectador é convocado a se esforçar para apreender sentidos fugidios e, no limite, inalcançáveis.
A edição do vídeo do homem-luz fechando as janelas foi feita com a ajuda de uma especialista em animação, para sincronizar a passagem de um monitor a outro. Em montagem anterior do trabalho, no CCBB de Brasília, a sincronia era ainda mais refinada tecnicamente, uma vez que as cinco projeções não se interrompiam: de uma a outra a passagem tinha de ser perfeita porque o caminhar ou correr do personagem eram contínuos, em uma sala toda espelhada (com o mesmo material utilizado aqui na ante-sala) em que a figura aparecia em tamanho natural, assombrando o visitante.
Ali, o limite da obra era uma eclosão de luz que apagava as projeções e cegava o espectador. "O trabalho termina quando o público fecha os olhos. De novo, o corpo é o nosso primeiro regulador." Adriano se refere aqui a várias obras feitas em parceria com Fernando, em que os limites do corpo determinam o andamento das ações, como em "Respiração Embolada", em que os performers revezam-se em duas únicas ações: submergem o rosto em água ou entoam uma embolada, ritmo do Nordeste no qual não se fazem pausas entre as palavras.
Em outros trabalhos da série da respiração, o teste dos limites e o caráter patético das limitações e finitude humanas são experimentados de variadas maneiras. Em "Respiração -", uma performer fica dentro de um cubo de acrílico vedado por completo até não conseguir mais respirar. A dificuldade para respirar vai precipitando bolhas de água na superfície interna da caixa, de modo que, à medida que a respiração enfraquece, a figura vai desaparecendo. Em "Respiração +", dois performers submersos em caixas retangulares quase cheias d'água levantam a cabeça apenas quando não aguentam mais prender o ar, e têm que recitar textos técnicos sobre respiração enquanto estão fora da água. A fala cessa quando voltam a submergir.
Tem qualquer coisa de crueldade em tudo o que os irmãos Guimarães fazem, mas ela nada mais é do que um jogo que evidencia a condição ridícula do ser humano. Há também qualquer coisa de cômico nisso tudo.
junho 19, 2004
Tentativa de crítica de interface
OP_ERA, de Daniela Kutschat e Rejane Cantoni -
trabalho premiado no 4º Prêmio Cultural Sérgio Motta
JULIANA MONACHESI
Isso não tem nada a ver com um diário de bordo, mas como anunciamos que haveria aqui uma cobertura dinâmica da exposição hiPer e até agora fizemos míseros três posts, dá uma vontade de dar uma satisfação aos leitores do Quebra de Padrão, que talvez estejam aguardando este algo novo no ar e, ao longo de duas semanas, leram apenas uns poucos relatos sobre o que está acontecendo aqui em Porto Alegre.
Sim, estamos de volta à cidade (calma, isso não é MESMO um diário de bordo, daqui a três parágrafos prometo não recair mais na primeira pessoa, é só que o motivo pelo qual o Quebra de Padrão esteve um pouco parado tem relação direta com a possibilidade de vivenciar de fato a mostra), e voltamos para ver integralmente a exposição pela primeira vez. Na semana em que estivemos aqui acompanhando a montagem, atrasos de produção resultaram no óbvio: os trabalhos todos ficaram prontos e devidamente instalados apenas na hora em que o vernissage começou.
Desta vez, vimos uma exposição em que um conjunto de obras estabelece diversas relações e sentidos e pode ser percorrido sem interrupções e sem vazios (a não ser aqueles criados intencionalmente e que, portanto, fazem parte das leituras que se pode fazer da mostra). Foi como ver uma exposição completamente diferente daquela que deixamos duas semanas atrás ainda sob o efeito da tensão que todos os envolvidos no projeto sofreram em alguma medida. Trabalho coletivo é assim mesmo.
Passei o dia inteiro hoje imersa no Santander Cultural. Esqueci que estava em outra cidade e em muitos momentos esqueci também que estava trabalhando. Existe, me corrija se soar romântico demais, uma dimensão de experiência com a arte (e com a literatura ou o cinema ou o ecstudo de um tema apaixonante...) que faz a gente sublimar. Assim mesmo, intransitivo. Sublimei. O tratamento plástico que Chris Cunningham dá ao corpo humano, a viagem mental a que leva a instalação de André Parente, a possibilidade de simbiose com a máquina que o projeto da cave de Daniela Kutschat e Rejane Cantoni propicia.
Na verdade eu não entendi direito o trabalho da dupla. Voltaremos ao tema no Quebra de Padrão. O fato é que vislumbrar o que a interface que hoje define nossas vidas realmente é, adentrá-la, vê-la -como definiu a Patrícia Canetti em uma conversa- decupada, percorrer cada camada de informação, enfim, essa perspectiva é instigante. Porque o trabalho do Canal Contemporâneo na hiPer é também, de outra maneira, uma decupagem dessa interface e uma investigação do que é possível fazer com ela. A serviço de que podemos colocar a Internet?
Se você assistir televisão durante uma hora e meia, passeando algo aleatoriamente pelos canais, vai perceber que todo mundo está tentando responder essa pergunta. No final de vários comerciais aparece um endereço eletrônico, para quem quiser mais detalhes sobre aquele produto. No meio dos programas de entretenimento e/ou de jornalismo, o apresentador anuncia o link da emissora para as pessoas interagirem em tempo real com o programa ou para obterem detalhes sobre os temas abordados.
A propaganda da IBM é assim: um cara entra em um café e pensa alto "de uns tempos pra cá está todo mundo com seu notebook neste lugar". Alguém diz assim: "Aqui é um hotspot, a somatória dos negócios que estão sendo feitos a partir daqui pode chegar a milhões". "Milhões?", o desplugado pergunta. "Milhões, fica esperto". Aí mostra-se o nome do café, que é wi-fi qualquer coisa. E segue-se o slogan, que já está famosinho: IBM, a solução para a era on demand, ou alguma variação disso. Esqueci, deveria ter anotado.
Mas eis algumas notas que tomei na sequência: o canal GNT tem um programa às sextas-feiras, 21h, chamado e-love, sobre o amor na era digital, mostrando casais que começaram o romance pela Internet e que decidem se encontrar pessoalmente. O programa acompanha passo a passo os preparativos, a ansiedade, o encontro (ou desencontro -no episódio de hoje o cara ficou frustrado porque a garota não se parecia com a das fotos que ela tinha enviado) etc., uma variação de reality show.
Agora tem também essa modalidade de reality show em que alguém passa por um processo de transformação total, já viu algum? Tem o divertidinho Queer Eye for the Straight Guy, em que um grupo de gays dá um banho de loja, cultura, etiqueta em um hetero típico (a caricatura é que o macho que é macho não sabe se vestir, nunca vai ao cabeleireiro, não sabe cozinhar, tem péssimo gosto para decoração etc.). Tem o Esquadrão da Moda, com duas sargentonas jogando fora metade do guarda-roupa de alguma mulher e ensinando-a a encontrar seu próprio estilo reconhecendo o tamanho e a forma de seu corpo.
Outro dia descobri um que é bem mais punk: Extreme Makeover, cruel pra caramba, mas estranhamente emocionante no final. Pegam umas pessoas "bem feias" e levam aos melhores cirurgiões plásticos de Hollywood, dão banho de loja também, overdose de academia e depois devolvem pra família que as espera ansiosa. O patinho feito e a bruxa retornam lindos, reformados, com os dentes morbidamente brancos e roupas que ninguém nunca os viu vestir. Tem os depoimentos do alvo da transformação, "agora posso ser feliz, sou outra pessoa, tenho tudo com que sempre sonhei etc.", e dos familiares, constrangidos antes -"gosto dela de qualquer jeito"- e comovidos depois. Uma loucura.
Em Mundos Separados, famílias inteiras trocam de país e a gente vê o choque de realidade que advém da mudança radical. Faking It (traduzido como "Tudo É Possível") mostra uma equipe pegando um cara qualquer e o transformando em um falsário. No teste final, ele é avaliado junto de verdadeiros profissionais daquela determinada atividade que ele "aprendeu" em duas semanas e ganha se o júri não conseguir identificar quem ali está fingindo. Bem, mas tudo isso para dizer: o que são os reality shows senão uma tentativa (ou várias e as mais desesperadas) da TV de não ficar para trás, de se equiparar à Internet?
Talvez esses programas se enquadrem na definição de Steven Johson de "metaformas", formatos intermediários entre uma mídia e outra que surgem em momentos de transformação extrema provocada pelo advento de uma nova tecnologia. Na Bandeirantes tem um programa diário para falar de interface, ao menos foi o que consegui depreender vendo um pedaço hoje, em que mostravam o game de Star Wars. Chama-se G4 Brasil Drops, para mim um nome totalmente enigmático. Enfim: é um programa de TV ou um metaprograma em busca de um espaço onde possa funcionar integralmente?
Estamos todos nos perguntando o que a Internet nos torna capazes de fazer. Lá se vai minha promessa de não usar a primeira pessoa, mas fazer o quê? Estou aqui tentando descobrir novas formas de usar um novo canal de comunicação. Um canal que, para a minha área de trabalho, o jornalismo cultural, é absolutamente fascinante. Acho que o Quebra de Padrão é uma iniciativa de reflexão sobre as possibilidades que a Internet traz como veículo de comunicação e também uma ação propositiva de lançar alguns alicerces para que essa prática de jornalismo cultural de interface se desenvolva e se diferencie do jornalismo praticado convencionalmente. É ativismo, segundo me disse a curadora da hiPer em entrevista hoje lá na exposição.
junho 10, 2004
A tonalidade do gesto
Conheça a obra de Jurandir Muller e Kiko Goifman na mostra
Clique para assistir a pequenos trechos da entrevista com Muller e Goifman
Caso você não consiga ver o vídeo, acesse a página www.realplayer.com, faça o download da versão gratuita e instale-a no seu computador.
JULIANA MONACHESI
Uma cobertura de exposição que pode se estender no tempo três meses -o tempo de duração da mostra- ou mais -o tempo de permanência das questões trazidas pela mostra- levanta desafios inéditos para o jornalismo cultural: em vez de compactar muitas informações em um único texto, em que inevitavelmente precisam ser feitas escolhas drásticas (comentar três trabalhos no máximo, incluir aspas de não mais do que quatro pessoas e assim por diante), incontáveis camadas de informação/reflexão podem ser distribuídas ao longo de uma impensável centimetragem de texto publicada de acordo com a periodicidade que se desejar (ou se impuser).
Diante da vontade de discutir os trabalhos de 40 artistas, além de outros elementos constitutivos da exposição (montagem, curadoria, ação educativa, contextos regional, político e ideológico, entre outros), por onde começar? Na ausência de critérios, inventa-se um: pelo começo, pela entrada principal do Santander Cultural, na praça da Alfândega. Quem passa por ali, antes mesmo de entrar, entrevê um totem com cinco telas de plasma grandes o suficiente para as distinguir da rua. Trata-se do trabalho de Jurandir Muller e Kiko Goifman, "Geografia do Gesto".
Convidados a desenvolver um projeto a partir do conceito de "hiPer" como personagem fictício que encarna a subjetividade dos nossos tempos (hiper-subjetividade?), Jurandir e Kiko se propuseram mapear a gestualidade dos habitantes de Porto Alegre. São 38 pessoas os protagonistas do trabalho. As mesmas 38 pessoas que a dupla de artistas entrevistou e incluiu na exposição -inclusão com duas facetas: a da participação no trabalho e a da presença no coquetel de abertura, a maneira que encontraram de estabelecer uma ponte real entre o dentro e o fora da instituição. Ninguém foi excluído na edição e todos receberam o sofisticado convite que, de resto, deve ter sido endereçado apenas ao reduzido círculo de "convidados de vernissage".
O procedimento foi simples: os artistas passaram dois dias (a quarta e a quinta da semana anterior a da abertura) entrevistando transeuntes de Porto Alegre e, a certa altura do bate-papo, pedindo a cada um que desse algumas respostas por meio de gestos. "Geograficamente o centro da cidade já era diversificado o suficiente", contam, explicando porque não fizeram locações em muitos lugares da cidade. "A gente queria o gesto, eventualmente se interessava por vestuário, mas isso era um elemento residual", diz Goifman, explicando o resultado final: cinco monitores dispostos verticalmente em que cada pessoa aparece durante sete segundos, com o rosto no monitor central e detalhes de expressão facial e gestualidade nos demais.
A imagem do centro é sempre a mais naturalista. As outras têm filtros ou efeitos de slow motion etc. Tudo em prol de uma composição poética, que sempre favorece o retratado. "Quando se está trabalhando com anônimos -e esta nem é uma palavra muito boa porque anônimos somos todos-, não nos interessa pegar o pior da pessoa. Existe um sentido de dignidade. A gente por exemplo, nunca 'rouba' imagens: seria perfeitamente possível fazer este mesmo trabalho com a câmera escondida, mas isso não nos interessa", explica Goifman.
Diante da possibilidade de se manifestar por meio de gestos, as pessoas não se intimidaram, nem quiseram expressar indignação -sentimento que mais se vê diante das câmeras no contexto social brasileiro. Segundo a dupla, houve menos caretas do que imaginavam encontrar e também ouviram poucos "nãos". Ao longo da exposição, uma equipe contratada pela produção vai continuar fazendo o mapeamento do gesto em Porto Alegre. Para isso, os artistas estão criando um método, para que a seqüência da videoinstalação mantenha seus pressupostos éticos e estéticos.
Durante a edição, Jurandir e Kiko descobriram que os gestos têm tonalidades e criaram uma curiosa classificação tonal. Vermelho, laranja, azul e PB se intercalam na gramática visual de "Geografia do Gesto". O trabalho não tem som e as cores entram como um comentário a mais, outra camada de informação, explicam. Os critérios de classificação tonal deixam à imaginação do público: foi algo subjetivo, discutido caso a caso, uma pitada de "mão forte" autoral de quem prefere se apagar um pouco para dar voz e lugar ao outro.
junho 3, 2004
hiPer>montagem
O campo de batalha... Foto: Domingues
A montagem de uma grande exposição como a hiPer nos coloca diante dos novos desafios que a arte enfrenta na contemporaneidade. Cada trabalho que é exposto, por mais "pronto" que esteja, ainda está em processo, dada a quantidade de variantes que este encontra no momento decisivo de sua realização.
Os irmãos Guimarães com sua obra em construção ao fundo. Foto: Domingues
Não estamos mais falando de trabalhos que saem prontos do ateliê. Conceito, programação, edição, instalação e, finalmente, interações acontecerão no espaço expositivo e com a presença do público. Diante da estrutura complexa de um grande evento, é impossível para o artista, por mais perfeccionista e controlador que ele seja, conhecer a priori o resultado de sua obra. Para os outros envolvidos, não é muito diferente. Trata-se de uma cadeia complexa formada por diversos profissionais e suas equipes - artistas; curador; arquitetos de espaço; designers; técnicos; produtor e a instituição, que mesmo tendo o objetivo comum da exposição como resultado, encontramos cada um lidando com os desafios e limitações de cada etapa que lhe diz respeito. Tensão e estresse passam a ser ingredientes básicos desse trabalho gigante.
A curadora Daniela Bousso e as responsáveis pela a arquitetura do espaço da hiPer, Renata Motta e Eliane Koseki. Foto: Domingues
Ainda sob o forte impacto da montagem, que nos imprime a experiência de seu processo, do todo e de cada um dos elementos que a compõem, é difícil parar, focar e refletir sobre os trabalhos expostos...
Ricardo Ribenboim monta o Bicho. Foto: Domingues