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junho 21, 2005
merzblog - diário de bordo da Ocupação
merzblog
merzblog é o diário de bordo do grupo de críticos formado por Cauê Alves, Daniela Maura Ribeiro, Fernando Oliva, José Augusto Ribeiro, Juliana Monachesi e Paula Alzugaray sobre o projeto Ocupação, que ocorre entre 7 de junho e 16 de julho de 2005 no Paço das Artes
Quinta-feira , 9 de Junho de 2005
Que o ateliê acabou de se desmaterializar na década de 90 não há dúvida.
Que os artistas não levariam ao pé da letra a idéia de transferir seus ateliês para o Paço também é óbvio.
Mas entre aqueles que decidiram fazê-lo é interessante ver como a concepção de ateliê se transfigurou: para uns é um espaço de descanso. Muito clean. Para outros é o escritório. Para outros é o "caos" do ambiente doméstico. Coisinhas. Caixinhas. Cosy. Para uns é papel e caneta. Para outros, um rádio e quitutes para servir.
Sexta-feira , 10 de Junho de 2005
Antes da Ocupação, o branco potencial. Os painéis em L, distribuídos de forma enviesada no Paço, não sugerem a cartografia das cidades projetadas. Indicam áreas compartilhadas, cuja delimitação ou diluição das fronteiras será desenhada pelas relações entre os ocupantes. A partir da instalação determinada por um sorteio inicial, os artistas reconhecem seus espaços em movimentações sutis e cuidadosas.
Ações
Política. Um passeio a bordo de um 'art detector', de Guto Lacaz, nos conduziria a alguma forma de ação política? É possível que um desses robôs antenados com espelhos giratórios hesitasse diante da proposta de ocupação de Augusto Citrângulo, que move uma ação panfletária a favor do desarmamento. Citrângulo corta, fura e encaixa embalagens de produtos de limpeza e utilidades domésticas para construir versões imaginárias de fuzis, metralhadoras e outros modelos último tipo de armamentos pesados. Pensar as relações entre a violência da bala perdida e o caráter invasivo do objeto de consumo, que entram nos lares seja pela televisão, pela janela, ou em saquinhos de supermercado. Ao construir armas de brinquedo o artista está combatendo o inimigo fazendo uso de - ou manipulando - seus meios? E que alcance tem a distribuição de panfletos em uma ocupação artística? O site www.controlarms.org está recolhendo imagens de rostos para fortalecer sua campanha. Dê a cara. Nos primeiros dias, Citrângulo trouxe estas provocações.
Segunda-feira , 13 de Junho de 2005
Trânsito
Dia 5.
Entre os artistas ocupantes, nota-se o interesse comum pelo deslocamento. A proposta de work in progress dessa Ocupação ajuda. Há os que deslocam as ações para o público e há os que projetam toda a questão da mobilidade para o trabalho em si. Caso do objeto móvel de Mariana Lima, que ao longo dos 12 dias do evento, ocupará 12 posições no espaço e sofrerá 12 pequenas (às vezes imperceptíveis) alterações da forma. Colocando sempre à prova seus próprios limites e esforçando-se em manter o desenho original, no terceiro dia o objeto mostrou os primeiros sinais de arrefecimento. Instalado sobre o gramado, do lado de fora do edifício, mostrou-se claramente incomodado de estar pousado em terreno irregular, abrindo feixes e brechas, e maculando a geometria dos primeiros dias.
Quinta-feira, 16 de Junho de 2005
Ação afetiva
Março de 1969. John Lennon casa-se com Yoko Ono em Gilbraltar, almoça com Salvador Dalí, em Cadaqués, e realiza a primeira ação (político-pacifista) de sua vida: Bed-in. Durante sete dias, instala-se nu com Yoko na cama do quarto 902 do Hilton Amsterdam. A ação voltaria a acontecer em abril, em cama de hotel no Canadá, onde o casal gravaria a canção Give Peace a Chance. (No Paço, Citrângulo parece cantar All You Need is Love quando decide cuspir flores das armas de plástico).
A lembrança de John Lennon na cama e a memória de Joseph Beuys descascando batatas na cozinha de sua casa (e, por que não, o registro de Duchamp jogando xadrez) levam Regina Johas a instalar sua cama no Paço das Artes. A meta é "estar com os amigos, jogar, fabular, fundar outros espaços, heterotopias", escreve ela na parede. Na cama com Regina, numa militância arte/vida, confabula-se, joga-se, conversa-se, tramam-se camas de gato.
A ação coletiva também amarra o pensamento de Beth Moysés, que propõe um mito de Penélope compartilhado entre 12 mulheres. A comunicação entre elas se dá pelas mãos, entretidas na reconstrução de novelos simultaneamente desfeitos. O grupo, como corpo único, empenha-se numa só tarefa: a reconstrução e o reparo das dores. O reestabelecimento do elo. Afeto silencioso.
Sexta-feira , 17 de Junho de 2005
Delícias da Ocupação
Jorge Menna Barreto "ocupa" - assim entre aspas por que na verdade está fora dos espaços delimitados para a Ocupação - a área do bar com um Café.
O Café está muito bem equipado, sinalizado e decorado: existe um cardápio escrito a giz na parede; o balcão - frio de granito cinza -, está coberto por diversas toalhas estampadas; os bancos do balcão são altos e feitos de madeira e palha e existem mesinhas espalhadas pelo local para quem quiser se alimentar (ou conversar) com calma. Isso além das louças para servir o café, do forninho, da cafeteira, e dos penduradores (suspensos em fios de nylon) para segurar o saquinho de pó de café e a caixa de chá de hortelã, por exemplo.
Mas de nada adiantaria, se fosse somente infra-estrutura. A estrutura de funcionamento é que faz a diferença: o artista vem ocasionalmente servir os produtos que vende e se investe com perfeição desse papel, usando até um charmoso avental.
(...) o trabalho é auto-sustentável, uma vez que o artista sustenta sua participação no local com o dinheiro que arredada e propicia igualmente esta possibilidade para seu(s) assistente(s). E o artista sustenta - no sentido de alimentar - todos os outros artistas que convivem diariamente no Paço por conta do projeto de Ocupação, o público, a equipe da instituição...
Sábado , 18 de Junho de 2005
Isso não é moda!
Embora Nino Cais tenha trazido sua máquina de costura, faz questão de deixar claro que seu negócio não é a moda. Sim, na parede há vários objetos de uso doméstico. E como a mulher esteve nos últimos 3.000 anos como principal responsável pelo ambiente privado, enquanto o homem de um modo geral tomou pra si a função pública, alguns dos objetos podem ser associados ao "universo feminino". Há também os de uso tradicionalmente masculino, mas isso não importa, o que interessa é sua função primordial, mesmo que eles não sejam usados desse modo. Acoplados ao corpo eles se tornam uma espécie de tentáculo, ou melhor, uma extensão do corpo. Na verdade, parece que mais do que discutir função dos objetos, Nino quer pensar o próprio corpo, as pessoas e as relações sociais. Mas não deixa de ser curioso que como em "O pequeno príncipe", em que um chapéu pode ser um elefante engolido por uma jibóia, as formas dos objetos de Nino se camuflam completamente quando ensacadas e amarradas ao seu corpo.
uma mão lava a outra
Del Pilar fotografa mãos de artistas. Mas suas fotos vão além do mero registro. A mão dos artistas, e a arte, esteve durante muito tempo associada apenas com o trabalho manual, traz dezenas de outros sentidos. "Dar uma mão" é sinônimo de ajuda; "mão de fada" é uma mão hábil, enquanto "mão de ferro" significa um poder opressor, com firmeza implacável. "Mão dupla" em oposição à "mão única", tem relação com o trânsito em dois sentidos, mas não apenas de veículos. Já "mão na bola", dependendo do contexto, interfere no humor de uma nação, ainda mais se for dentro da área. Uma "mão pesada" pode acabar com qualquer trabalho ou pode ser a marca de um artista. Há alguns que não abrem mão disso. Afinal, não é apenas com a mão que se faz arte.
Domingo , 19 de Junho de 2005
Ação afetiva a 2
"Toda minha palavra tem um coração onde circula sangue", diria Clarice à caneta vermelha de Paulo Buenoz riscando o papel. A circulação é alma da ação de Buenoz. A circulação dos afetos: você me responde uma pergunta com uma fotografia que eu te dou um souvenir carregado de significado vital. Um acordo fotográfico para reinventar o elo. Nessa comunicação mediada pela câmera, cabe pensar o que se passa dos dois lados da lente, nos instantes que sucedem o clique: quando tocam aqueles acordes agudos, embalados pela memória das caixinhas de música. Estranhamento, impaciência, solidão, satisfação?
Duplamente retido - no visor da câmera e no frame do cenário - Buenoz diz fazer papel de personagem. De si próprio, insisto, porque a autoria da fotografia não pertence a quem aperta o disparador. A autoria é do personagem ou trata-se aqui de um grau zero de autoria, como aquele das máquinas automáticas? O mesmo retrato foi tirado dezenas de vezes, mas o negativo não terá a mesma imagem repetida.
"Tudo se passa exatamente na hora em que está sendo escrito ou lido", diria Clarice ao grupo de críticos, que inventaram lançar-se em experiência sincronizada com o tempo da ação.