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julho 31, 2004
hiPer = tempo X recuperado X arte
Foto de Domingues
tempo X recuperado X arte
sobre o trabalho O tempo não recuperado de Lucas Bambozzi, por Patricia Canetti
O som do papel sendo riscado e a imagem do NÃO sendo escrito obsessivamente entre as palavras TEMPO e RECUPERADO foram a minha porta de entrada ao trabalho de Lucas Bambozzi. Sim, sempre existem várias entradas num trabalho de arte, mas nesse trabalho, ainda mais explicitamente.
O tempo não recuperado é formado por 5 vídeos projetados em formas irregulares e adjacentes com suas fronteiras superpostas, com o som dos dois vídeos das extremidades audíveis nas duas pontas do trabalho, enquanto o som dos outros três estão distribuídos em 3 pares de headphones. Esse formato repassa para nós, espectadores, a mesma maneira aleatória de revirar guardados, o espaço-tempo registrado de nossa memória, retratado nesse trabalho com as imagens das caixas de vídeos empilhadas sendo buscadas, que, vira-e-mexe, aparece em algum dos vídeos.
Quando reviramos nossas lembranças, algum tipo de ordenação passa a encadeiá-las e formar seqüências. Cada novo acesso, poderia gerar uma nova ordenação ou mesmo uma nova porta de entrada, mas geralmente os caminhos já percorridos nos viciam a visão e tendemos a revisitar seqüências "prontas".
O que é memória? O que são lembranças? O que é história?
Os computadores geralmente registram nas propriedades dos arquivos apenas as suas datas de criação e última modificação. O computador entende como modificação qualquer acesso ao arquivo, mesmo que nenhuma vírgula tenha sido modificada. O dia que percebi isso, achei os computadores muito burros, mas, num segundo momento, entendi a sua lógica. A informação armazenada só se transforma em memória a partir do acesso ou do uso de algum agente. O computador entende que o tempo é fator suficiente para que um simples contato entre o agente e a informação armazenada modifique a memória. Claro, pensei, teoricamente eu não sou a mesma pessoa de um minuto atrás. O problema dessa teoria é que nós, os agentes, somos humanos. Alguns sistemas operacionais já "evoluíram" nesse entendimento e agora separam acesso de modificação. Agentes humanos sofrem com nós, enganchamentos e vícios que afetam a passagem do tempo e a leitura de suas marcas. Qualquer pessoa que tenha feito análise por um longo período conhece a angústia de revisitar seqüências de acontecimentos, ano a ano, sem que isso resulte numa modificação.
Em o Tempo NÃO recuperado, temos seqüências de imagens formando os vídeos, que estão dispostos alinhados num conjunto de 5 projeções. Lucas Bambozzi consegue com esse formato transpor para o trabalho as várias características do acesso à memória: aleatoriedade, seqüencialidade e simultaneidade. Esse conjunto de características também está presente quando lidamos com os álbuns de família, fotos de viagem, filmes super-8 e vídeos que guardam pedaços da nossa história.
Muitas vezes não consigo saber se uma lembrança minha se relaciona à vivência ou ao registro dela. E mais, esse registro, que pode ser uma foto, um filme ou bilhete, tem atrelado a ele a sua própria "vivência", ou seja, às vezes em que foi visto; o que foi pensado e sentido durante o "acesso", como também os comentários de outras pessoas sobre o registro e o objeto a que ele se refere. Além disso, ainda temos as contaminações que passam de uma história para outra.
No trabalho do Lucas, a simultaneidade das projeções, assim como as edições dos vídeos, permite um transbordamento de sentidos que se deslocam e nos deslocam incessantemente; saltando de um pufe para outro, esperando a nossa vez para trocar o áudio, zapeando o olhar pelos diferentes vídeos ou simplesmente olhando para um outro vídeo com o canto do olho, enquanto mantemos a atenção principal no vídeo que acompanha o áudio que estamos vestindo, e mesmo depois, que nos afastamos da obra... O esforço é mais do que mental, é físico também. Bill Viola é que está certo, quando diz que o vídeo é uma experiência física, maior até que a do cinema.
"Essa é a minha história", revela o pai do artista, que aparece sendo entrevistado numa seqüência de vídeos em preto e branco, que forma uma das projeções.
"Quando foi que o senhor começou a beber muito?", Lucas pergunta ao pai, que responde ter começado a beber aos 17 anos, sem nunca ter sido moderado. Percebemos que se trata do artista e de seu pai durante a gravação, quando Lucas é chamado pelo pai e quando seu tio, Célio, diz a Lucas, "Seu pai foi um menino de ouro, o protegido das tias, o mais simpático, o mais inteligente...";
"O trajeto se confunde, não só com a subjetividade das pessoas, mas com a do próprio meio, como essa se reflete naqueles que o percorrem". Lucas lê esse trecho numa outra projeção, aonde, em outra seqüência, ele caminha ofegante por uma paisagem gelada, dizendo a filha, recém nascida ou ainda por nascer, que ela teria que ver aquilo e muito mais.
Entre a projeção em preto e branco e a que o artista aparece - em várias idades, com amigos, viajando, trabalhando, dançando, brincando, dormindo, ou com sua filha Lívia, ainda neném -, está uma projeção de vídeos com cenas de movimento, de ônibus, de trem ou simplesmente de edições rápidas, inserindo um ritmo, uma pulsação acelerada, que contamina as imagens adjacentes. Nas duas extremidades, outros ritmos pontuam o trabalho. À esquerda, são recortes demorados, de nuvens, lua no céu, brilho na água, paralelepípedos de uma estrada, imagens que seduzem a todos, quando do primeiro relacionamento com uma câmara; à direita, vemos as páginas do projeto de "O Tempo não recuperado" sendo viradas e marcadas com o NÃO, uma a uma.
Vou perguntar ao Lucas o que determinou a escolha das seqüências e o número de projeções. E ainda uma curiosidade técnica: como são feitas as formas irregulares das projeções, que se modificam, cada uma delas, durante a duração do trabalho (ou será apenas uma impressão).
Não sei como terminar esse texto - acho também que o trabalho do Lucas Bambozzi não tem um fim, assim como não tem um começo. (O trabalho que está sendo visto na hiPer é um estágio do work in progress, que ganhará uma versão interativa na mostra do Prêmio Sérgio Motta, que abre na segunda, 2 de agosto, no Paço das Artes, em São Paulo. Estou curiosa para vê-la, pois considero que Lucas já conseguiu uma interatividade bastante interessante na sua primeira versão, resultado do jogo das 5 projeções com a movimentação do espectador em direção a um áudio desejado.)
Do tempo recuperado e não recuperado, concluo apenas que formam um processo, que resulta na nossa história - construída na contaminação do trajeto, que se dá no tempo passado-presente-futuro.
Quebra de padráo, quebra de leitura crítica, quebra de olhar. Patricia Canetti em sua leitura atenta e precisa sobre o novo trabalho de Lucas Bambozzi me fez lembrar a quebra de padráo que Roland Barthes empreende sobre seu próprio trabalho crítico em seu livro "A Câmara Clara". Neste livro, Barthes nos conduz sobre aquilo que ele chama de "a passagem de um vazio" que o trabalho de arte (no caso, a fotografia) produz, como uma "imobilidade viva". Parabéns, primeiro ao Lucas por ter feito um trabalho capaz de suscitar tanta vida e linguagem, depois, parabéns Patricia pela leitura táo sensível.
Ela me estimula a ir na exposiçáo do Prêmio Sergio Motta em Sáo Paulo e a conhecer melhor este trabalho sobre o tempo, que me parece, neste caso, estar sendo apresentado de forma tangível e, quem sabe, recuperado.