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Como atiçar a brasa

 


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abril 21, 2021

Arte e os desafios do Antropoceno por Luiz Camillo Osorio, Prêmio Pipa

Arte e os desafios do Antropoceno

Artigo de Luiz Camillo Osorio originalmente publicado no Prêmio Pipa em 8 de abril de 2021.

Uma das razões pelas quais nos sentimos tão impotentes quando chamados a nos preocupar com a crise ecológica – a razão pela qual eu, para começo de conversa, me sinto tão impotente – é a total desconexão entre, de um lado, a extensão, a natureza e a escala dos fenômenos e, do outro, o conjunto de emoções, hábitos de pensamento e sentimentos que seriam necessários para lidar com essa crise.
Bruno Latour(1)

Este é um tema urgente. Aqui é só uma tentativa de começar uma conversa sobre os modos como a arte pode nos ajudar diante da catástrofe ambiental. A arte nos expõe ao que há de mais periclitante no mundo à nossa volta. Muita coisa se passa ao mesmo tempo e no meio de tudo está uma compreensão mutante do que seja arte. Essa indecisão constante, essa flutuação de possibilidades sobre o que tomamos como arte, acaba gerando uma certa exasperação pública. Se tudo parece poder ser arte, acabamos deduzindo que qualquer coisa de fato se torna arte. Dedução apressada. Falta aí um aspecto bastante desprestigiado hoje – a experiência subjetiva de cada um, o que se produz, em termos de subjetividade e sociabilidade, no encontro com algo neste estado “provisório” de arte.

A mesma inquietação diante da condição mutante da arte está presente diante do que denominamos natureza. Temos visto nos últimos anos algumas exposições bastante interessantes que se afirmam como “não sendo de arte”, apesar de exporem obras de arte junto a outros materiais não artísticos. Não são “de arte”, mas querem nos expor ao conjunto complexo de emoções e sentimentos associados ao modo como vivemos ou recusamos, por exemplo, nosso desastre climático; sendo ao mesmo tempo exposições de arte, de ciência, de política. Quiçá uma nova tentativa, mais que urgente, de reeducação estética da humanidade. Elas enxergam neste espaço da arte um território interessante para se forçar alguma reconfiguração das nossas formas de perceber e pensar o mundo atual e seus impasses. Como a arte pode abrigar este debate sobre o antropoceno? Como falar e mostrar os desafios desta nova época em que a atividade humana é a principal força geofísica planetária? Uma força de transformação e de ameaça iminentes.

O que a arte pode aqui é simplesmente pôr em cena os dilemas, dar alguma configuração sensível ao que nos escapa na ânsia de objetividade e eficiência cotidianas. Mais que isso não caberia à arte, mas isso já é bastante tendo em vista que o trabalho da imaginação que aí se desdobra é fundamental para a recomposição dos termos do debate político. Apresentarei brevemente dois projetos recentes de exposições que buscaram levar aos museus o debate ambiental, sua estética e sua política. Já aviso que não visitei presencialmente estas exposições, apenas visitei suas plataformas online. A tecnologia é uma aliada incontornável.

As exposições são “Critical Zones: Observatories for earthly politics” no ZKM na Alemanha, com curadoria de Bruno Latour e Peter Weibel e “Countryside: the future”, no Guggenheim de NY, com curadoria de Rem Koolhaas e Samir Bantaal. Ambas realizadas entre 2020 e 2021. O estatuto de ambas as exposições é muito singular. Não são exposições de arte, pelo menos não apenas, mas contam com a expectativa de usar este espaço no sentido de ampliar o escopo do debate. Expectativa essa com fortes ressonâncias no nosso modo de lidar e experienciar a arte. Conversas com dois alunos de mestrado aqui na PUC-Rio têm sido muito importantes(2); Rachel Pires (orientada pela Deborah Danovski na Filosofia) e Luiz Felipe Reis (orientado pelo Fred Coelho na Letras) discutem em suas pesquisas o Antropoceno, levando em conta as possibilidades de sensibilização da crise climática e o papel das artes. Ambos trabalham a partir dos textos, performances e curadorias de Bruno Latour.

No caso de Koolhaas e Bantaal, no Guggenheim, o desafio é levar ao museu uma nova direção para o processo de “modernização” de nossas formas de vida. Neste aspecto, a tese é de que o futuro está no campo. Não se trata de uma volta ao campo, mas de uma necessária invenção de formas de vida que incluam um melhor consumo de energia, alguma desaceleração da produção, outros tipos de habitação, de alimentação, de circulação. Fizeram vários levantamentos de projetos instigantes ao redor do planeta. Enfim, buscam encaminhar possibilidades de composição entre tecnologia e agricultura, voltada para outros tipos de consumo e de temporalidade. Evidentemente, há que se imaginar menos concentração de gente, de riqueza, e mais integração entre o que fazemos e como vivemos. Ecologia política implicando outra economia ambiental.

A recepção crítica da exposição foi predominantemente negativa. Considerada esteticista, apologista da geoengenharia, ingênua etc. Como toda exposição deste porte, a escala atrapalha, o excesso de informação desorienta. A multiplicação de saberes especializados e a dificuldade de expô-los e apresentá-los é outro problema recorrente. Muitas imagens, estatísticas, projetos e informações ficaram espalhadas por todos os andares do prédio. Entre uma feira de ciência e um palácio de cristal anacrônico, o visitante se via lançado a uma série de interrogações. Todas elas pertinentes, diga-se de passagem. Como dizem os curadores, há muito mais questões que soluções, mas tratando-se de um arquiteto, a preocupação com a proposição de alternativas acaba sempre se insinuando. Independentemente disso, é do meio destas dificuldades que o debate central da exposição se anuncia: construir o futuro implica repensar formas de habitação e uma ocupação sustentável de territórios. Isso necessariamente exige novos paradigmas existenciais e novos modelos de sociedade, novas articulações entre países ricos e pobres, novas alianças entre humanos e não-humanos, entre economia e geologia, entre moedas, corpos e vida.

A denominação de Latour e Weibel de “Zona Crítica: observatórios para uma política terrena” aponta para a superfície viva do planeta na qual as formas de vida se retroalimentam e garantem as condições de habitabilidade da Terra. Um ponto importante que salientam, nas muitas “lives” e conversas de que participam promovidas pela ZKM, é não se tratar de uma exposição utópica. Pelo contrário – foram as utopias dos últimos dois séculos que nos levaram para este lugar insustentável. Usando uma metáfora da história das ciências, a utopia moderna teria começado com Galileu apontando seu telescópio para a lua. Ali nos aventuramos enquanto sujeitos desterrados, um cogito expandido tecnologicamente cujo limite era o infinito. Agora, temos que voltar todos os instrumentos para a terra e buscar retomá-la e habitá-la, afinal só aqui podemos respirar, caminhar, seguir vivendo.

A exposição também é composta por uma combinação variada de experimentos artísticos e científicos. Um trabalho curatorial que busca agregar vários campos desarticulados das pesquisas científicas e dar-lhes alguma voz, algum corpo, alguma materialidade, alguma sensibilização. A escala da exposição é mais amigável que a do Guggenheim. É interessante estas duas exposições terem acontecido simultaneamente ao longo de 2020, no meio de uma pandemia que nos faz sentir mais de perto o quanto somos dependentes um dos outros e do que fazemos com as formas vivas que coabitam o planeta.

Um vírus liberado pela manipulação desenfreada de animais silvestres junto ao desmatamento crescente e ao desprezo pelo equilíbrio ecossistêmico, parou o planeta e nos fez perceber que o antigo normal estava fora de controle. Tanto do ponto de vista das desigualdades sociais, como do atropelo ambiental e climático. A sensibilização do problema vivido por nós no antropoceno ficou mais urgente, sublinhado o fato de estarmos todos embarcados no interior de um único planeta e que ele pode nos expulsar para seguir sua viagem com formas vivas mais resistentes do que nós.

Na introdução do livro Diante de Gaia, Bruno Latour revela uma cena de um espetáculo de dança da coreógrafa Stefany Ganachaud, que reorientou suas pesquisas sobre Gaia, sobre o que estamos fazendo de nosso planeta e de como buscar alguma visibilidade a algo que todas as estatísticas evidenciam, mas que segue na ordem intangível dos números. Esta imagem ecoa no desdobramento de sua pesquisa e, consequentemente, em seus projetos curatoriais. “Tudo começou com a imagem de um movimento de dança a que assisti, há dez anos, e da qual não consegui me livrar. Uma dançarina, correndo de costas para escapar de algo que devia lhe parecer assustador, não parava de olhar para trás, sempre mais inquieta, como se sua fuga acumulasse a suas costas obstáculos que constrangiam cada vez mais seus movimentos, até que ela foi impelida a se virar por completo; e aí, suspensa, imóvel, ela via, vindo em sua direção, algo ainda mais assustador do que aquilo de que fugia – a ponto de forçá-la a ensaiar um gesto de recuo. Ao fugir de um horror, ela encontrava outro, em parte criado por sua fuga”(3).

Fugindo do passado pela crença cega no progresso, nós modernos fomos fazendo do futuro um campo de ruínas que, agora, se precipita sobre nós. Estamos no meio do turbilhão e temos que imaginar formas de lidar com isso. Esse é o principal objetivo destas exposições. Uma imagem poética da força de Gaia e deste embate entre nossa empáfia e nossa dependência, foi dada pelo curador Ricardo Sardenberg em um post recente nas redes sociais. Ele falava do super navio com 400 metros de extensão, 60 metros de largura e 200.000 toneladas de peso, além dos seus 20.000 containers, que encalhou no Canal de Suez por conta de uma forte ventania que o fez inclinar como se fora uma caravela. Em seguida desencalhou quando a lua cheia com sua força gravitacional fez a maré subir e ajudou a levantar 200 mil toneladas sem grandes malabarismos. O planeta, Gaia, e suas forças naturais, é muito mais potente do que imaginamos.

O que mais chama a atenção nestas curadorias é o fato das montagens apresentadas, recompondo pesquisas e experimentos que se complementam, buscarem acima de tudo enfrentar um negacionismo subliminar. Negacionismo indireto, escondido na esperança, mais do que nunca perigosa, de que a mesma hybris que gerou o problema é capaz de resolvê-lo. Como se o cogito tecnologizado, turbinado pelo capital, bastasse para nos impedir de irmos aceleradamente para o abismo. As proposições da geoengenharia são relevantes no debate, as invenções futuras podem encaminhar algumas soluções, mas não parecem suficientes. Ambas as exposições explicitam a complexidade dos desafios, mas apostam em soluções ao mesmo tempo mais radicais, mais singelas, mais difíceis – não há caminho sem mudarmos nossas formas de vida. Isso exigirá imaginação, negociação, conflitos, transformações. A arte é, certamente, um dos lugares privilegiados para lidarmos com o desconhecido e assumirmos nossa fragilidade constitutiva. Para não terminarmos apenas no tom trágico, sugiro o vídeo do artista indígena Isael Maxakali (vencedor do PIPA Online de 2020) intitulado “O dilúvio Maxakali”. Pode ser visto aqui abaixo ou na página do artista, aqui no site do PIPA. É uma lição de resistência e poesia através do naufrágio iminente.

(1) LATOUR, B. Esperando Gaia. Piseagrama, Belo Horizonte, seção Extra!, XX fev. 2021 (tradução de Alyne Costa)
(2) Conversas que se iniciaram no semestre passado em um curso que dei na pós-graduação sobre curadorias de filósofos e se desdobra neste em um novo curso sobre a atualidade do sublime
(3) LATOUR, B. – Diante de gaia. São Paulo: UBU editora, 2020 (tradução Maryalua Meyer)

Posted by Patricia Canetti at 4:36 PM

abril 4, 2021

Arte como encruzilhada por Moacir dos Anjos, Revista Zum

Arte como encruzilhada

Artigo de Moacir dos Anjos originalmente publicado na revista Revista Zum em 26 de fevereiro de 2021.

A poeta Audre Lorde faz, em seus escritos, um recorrente chamado às mulheres – em especial, às mulheres negras, mas também a quem mais sentir-se socialmente imobilizado – para que falem sobre aquilo que lhes afeta e importa. Para que narrem as próprias vidas e afirmem o que desejam delas, desse modo transformando silêncio social em “linguagem e ação”. Para que construam uma história em disputa aberta com aquela tida como dominante, escrita por quem subjugou outros no passado e que abafa, distorce ou subtrai as vozes dos subalternizados. Tal chamado à fala não se restringe, é evidente, ao campo da oralidade ou da escrita, podendo ser extensivo a outros meios expressivos, como o movimento de corpos e a construção de sons e imagens. Em verdade, a escritora alerta para a importância de escrutinar não somente a “verdade do que se fala”, mas, igualmente, “a verdade da linguagem com a qual se fala”. Emancipar-se implica inventar as formas necessárias para narrar, como discurso articulado e potente, o que era antes somente ruído.

Várias artistas brasileiras têm respondido a essa convocação de Audre Lorde, mesmo quando não diretamente interpeladas por seus textos. No campo da criação audiovisual, inclui-se e destaca-se um conjunto articulado de três vídeos realizados pela artista fluminense Aline Motta entre 2017 e 2019: Pontes sobre abismos, Se o mar tivesse varandas e (Outros) Fundamentos. Neles, aspectos centrais da vida das mulheres e dos homens negros no Brasil de antes e de agora são contados – juntando-se a outras narrativas contemporâneas que têm reescrito essas histórias rasuradas – valendo-se de estratégias criativas que põem em crise metodologias assentadas de investigação e locução de fatos. A vontade de uma reescritura histórica avizinhada da prática artística não esgota, contudo, o que motiva a feitura desses trabalhos. Assumidamente, eles são também interlocuções da artista com sua avó materna, que pouco antes de morrer lhe segredou o nome do pai (seu bisavô, portanto) que nunca pôde conhecer, despertando-lhe a necessidade de investigar quem foi este seu ascendente. O que Aline Motta engendra nesses vídeos são, assim, formas de lidar, em simultâneo, com uma responsabilidade pública e uma outra, íntima; a responsabilidade de uma mulher brasileira negra e a de uma neta comprometida com a memória de sua avó. Ante tal conjunção de razões, termina por entrelaçar, como uma só, a história do país e a de sua vida familiar.

No primeiro dos trabalhos, Pontes sobre abismos, há a busca por entender a genealogia recente de sua família, até então quebrada pela deliberada ocultação do nome do bisavô materno da artista. É somente bem perto do fim da vida que Doralice, sua avó, revela o nome de seu pai biológico, do homem que engravidou Mariana, sua mãe. O nome dele era Enzo, e essa era a informação que ninguém mais em seu entorno próximo possuía. A partir dessa nomeação do parente ausente, Aline Motta se dedica a investigar e apresentar o contexto da aproximação e subsequente ruptura entre sua bisavó e seu bisavô, o qual marca a história da família. Descobre que Enzo vinha a ser filho do dono da casa onde Mariana trabalhava, e de onde foi mandada embora tão logo sua gravidez se tornou evidente. Mariana era negra e pobre. Enzo era branco e rico. Ambos muito jovens, ele ainda bem mais que ela. As descobertas da artista foram baseadas em pesquisas em jornais da época e documentos achados em cartórios, bem como no que escutou (ou entreouviu) nos relatos lembrados de pessoas mais velhas que encontrou no decorrer da realização de seu projeto. De acordo com a certidão de nascimento de sua avó Doralice, informou-se de que a filha de Mariana e Enzo nasceu em 1911, na cidade do Rio de Janeiro; fontes orais contradizem, entretanto, a informação ali escrita, assegurando-lhe que Doralice seria, de fato, natural de Vassouras, cidade do interior fluminense. Lendo colunas sociais antigas, soube que seu bisavô Enzo se casou, alguns anos depois, com uma mulher chamada Palmyra, com quem teve um único filho, chamado Sylla. Soube que foi homem de mediano sucesso profissional no Rio de Janeiro e que exerceu alguma influência na rede de poder local, possivelmente a partir da administração de bens herdados da família. Foi também assíduo desportista. Não encontrou na imprensa, evidentemente, notícias sobre o que se passou, ao longo desse tempo, com sua bisavó Mariana.

São informações tão prosaicas quanto relevantes. Explicitam práticas e partições comuns à época no Brasil e que, de modos vários, continuam a marcar as violências de classe, de raça e de gênero no país. A dupla exploração do corpo da mulher negra como trabalhadora e amante – ou como “doméstica” e “mulata”, como resume e atualiza a filósofa Lélia Gonzalez –, seguida do descarte desse corpo dúplice quando algum protagonismo a partir dele se insinua. Quando algum evento fratura a conciliação precária entre o desprezo pelo corpo que é força de trabalho e a exaltação deste mesmo corpo sexualizado. Eventos como o da gravidez de Mariana, que gerou Doralice, mulher de mãe negra e pai branco que não foi reconhecida pelo último como filha. Abandono fundado nas abissais desigualdades materiais e nos abusos racistas constitutivos da sociabilidade brasileira.

Saber disso não resume nem substitui, em qualquer sentido relevante, o que Aline Motta faz desses fatos. Não se trata, para a artista, de simplesmente apresentá-los como descoberta documental. Mas de criar estratégias audiovisuais que possam equivaler a eles como coisa sensível. Que transformem os dados sempre insuficientes e quase opacos dos arquivos convencionais em algo que enlace o interesse dos sentidos. Na tessitura envolvente do vídeo, a voz cadenciada fornece as informações pesquisadas que as imagens exibidas modulam e desdobram em outras direções, como a atestar a impropriedade (ou até a impossibilidade) de narrar linearmente uma história feita de quebras, golpes e faltas.

Fotografias ampliadas em tecidos dos rostos da avó e da bisavó da artista são “unidas pela cabeça” e conduzidas, por pessoas também negras, para dentro das águas de localidades diversas – no Brasil, em Serra Leoa e em Portugal –, onde flutuam e deslizam. Imagens de suas antepassadas são exibidas ainda à beira-mar, juntas a uma reprodução agigantada da certidão de nascimento da própria artista, ali registrada como pessoa de cor branca. Doralice, por sua vez, foi oficialmente registrada por seu tio como “criança de cor parda”. Declarações que expressam e atestam a ideologia eugenista então em voga no país, na qual se associava embranquecimento da pele com a melhoria das “qualidades raciais” da população. A isso se alia o fato de Mariana, com 22 anos quando sua filha Doralice nasceu, ter sido identificada na certidão daquela como mãe e solteira – não havia afinal como atenuar, no documento oficial, a violência do abandono sofrido. Fotografias de homens brancos – que poderiam ser do pai ausente – são igualmente ampliadas em tecido e, junto com os demais retratos, pendurados nos lados de dentro e de fora de uma casa antiga em ruínas, ambiente que evoca o desmanche do frágil arranjo afetivo que um dia aproximou Mariana e Enzo.

Das muitas sensações que esse encadeamento de sons e imagens provoca, questões se formam e gradualmente se assentam. Se a água parece ser abrigo e lugar de aconchego para os personagens femininos da narrativa esboçada, ela é também lembrança de abismo, posto que rios e mares foram rotas por onde milhões de corpos negros foram conduzidos em direção à teia fechada do colonialismo, sendo escravizados e tornados mercadoria. Abismo humano que já fez o historiador Paul Gilroy chamar de Atlântico Negro o oceano que foi, por três séculos, espaço do tráfico que uniu, tragicamente, África, Europa e Américas. Breves cenas filmadas em Serra Leoa e Portugal parecem sublinhar as novas relações genealógicas surgidas entre os habitantes do Brasil e desses países no contexto do empreendimento colonial. Relações em que se sobrepõem e se articulam, para os que descendem de tantas Doralices, a continuidade de uma ancestralidade africana e o início forçado de uma ascendência de origem europeia. Pontes sobre inescapáveis abismos.

Ao fim do vídeo, uma inesperada animação articula imagens do perfil de um leopardo se deslocando em passos rápidos, acompanhadas da narração de uma fábula sobre a amizade do animal com o fogo. Querendo também conhecer de perto o elemento natural, a mulher-leopardo pede que o leopardo convide o fogo para vir à sua casa. O fogo atende ao chamado, mas termina por incendiar a casa dos felinos. “É esse o seu amigo?”, reclama a mulher-leopardo diante do desastre. Chamuscado pelo fogo, o leopardo, até então possuidor de um pelo de cor uniforme, ganha suas características pintas. Marcas de uma violência impressas no corpo; marcas de um passado brutal sempre trazido ao presente, e que dele faz sempre parte. As imagens animadas do leopardo foram originalmente feitas pelo fotógrafo inglês Eadweard Muybridge, em 1887, como parte da conhecida série que retrata, em múltiplos registros, as fases consecutivas da locomoção de animais e pessoas. Ao inventar uma máquina para projetar essas fotografias sequencialmente, criou as bases para o que se passou a se chamar, já na época, de imagens em movimento. Processo de representação do mundo que Aline Motta elegeu para realizar sua trilogia de vídeos e com o qual aproxima história íntima e pública.

Se o mar tivesse varandas é o segundo dos trabalhos que compõem a trilogia destacada aqui. Nele, Aline Motta retoma e amplia, em alcance histórico, as questões formuladas, em sons e imagens, no vídeo anterior. Fotografias impressas em tecidos novamente aparecem penduradas em árvores, em varais e, sobretudo, flutuando em água corrente – elemento fluido como o tempo que integra o que se passou e o que ainda passa com aqueles ali representados e seus descendentes. Fotografias dos antepassados da artista e de outras mulheres e homens que partilham, com aqueles, a história da diáspora forçada de pessoas africanas em direção ao mundo “novo” inventado pela Europa por meio da violenta invasão de territórios. Deslocamento de um continente a outro e de uma vida autônoma para uma outra, de trabalho forçado, tal como atestam documentos sobre o tráfico de escravizados também exibidos como imagens grandes mergulhadas em tanques de água.

Mais do que no outro trabalho, porém, a artista enfatiza aqui a relação geopolítica entre os continentes participantes desse trânsito humano compulsório e as implicações pessoais para os milhões de mulheres e homens que dele obrigatoriamente participaram. Sujeitos inapelavelmente cindidos, sequestrados de seus lugares de origem e impedidos de poder para ali voltar. Mesmo seus descendentes, já libertos da escravização aberta, não teriam nem têm mais para onde retornar, posto que inescapavelmente atravessados pela condição de deslocados. Pela condição de serem, simultaneamente, de um e de outro lugar, ou de nenhum deles de modo integral; por terem que perenemente negociar seu pertencimento a um lado e ao outro do oceano que aparta e aproxima África, Europa e Américas.

Além dos sons e imagens captados no Brasil, em Portugal e em algum lugar não definido da costa oeste da África, ouve-se no vídeo a narração de um texto que expande a quadra portuguesa que dá título ao trabalho, em que o mar é definido quase como casa. De sua escuta aprende-se que “se o mar tivesse varandas”, seria possível ter a mesma vista “da praia daqui e da praia de lá”; e “a memória de uma costa seria passada à outra”, em sugestão de como as histórias de diferentes lugares estão articuladas e de alguma maneira se fazem próximas. Mas se o mar fosse mesmo morada, adiciona Aline Motta, a morte ocuparia um de seus principais cômodos, tamanha sua centralidade nos fatos evocados em sua obra.

Destacar a natureza violenta da travessia do oceano rumo ao trabalho forçado ou a um fim abreviado de vida na empresa colonial não impede, todavia, que a artista se deixe imobilizar pelo luto ou pela raiva. Pois se o mar é arquitetura, pode-se pensar nesse exílio sem fim certo como “passarela”, através da qual seria possível – apesar de toda impossibilidade já mencionada – ir de um a outro lado desses lugares do passado. Como ela fala ao final, enquanto as ondas do mar suavemente lavam as fotografias conjugadas de sua bisavó negra e de sua avó que teve um pai branco, um descendente de portugueses que nunca conheceu: “se o mar tivesse varandas, uma filha caminharia em direção ao seu pai, sobre as águas, embaixo do mar; uma neta encontraria sua bisavó, sobre as águas, no meio do caminho. E tudo, tudo ficaria subtendido”. Imagens e texto que se articulam em paradoxos e que, contrariamente a qualquer método de investigação científica, se recusam a ensaiar a busca por explicações inequívocas, concedendo à opacidade dos fatos qualidade cognitiva. Fabular, nesse sentido, é resistir ao apaziguamento que a racionalidades consensual tantas vezes produz diante dos episódios violentos que averigua. Não é da natureza da arte, afinal, desvelar a suposta verdade de evento algum, mas rearranjar pessoas, paisagens e acontecimentos a partir de miradas dissidentes, por vezes incompletas e impermanentes. Para que tudo fique subtendido – ou implícito –, entranhado no corpo de quem se permite afetar por tais articulações sensíveis.

(Outros) fundamentos, terceiro dos vídeos, é certamente aquele em que a investigação sobre um fato particular (o segredo contado pela avó da artista) assume um caráter mais amplo, aproximando e quase confundindo história pessoal e coletiva. Ao caminhar pelas ruas cheias de gente de Lagos, na Nigéria, Aline Motta conta ter sido identificada pela população local como mulher branca, oyinbo. No Brasil, entretanto, foi sempre vista socialmente como mulher negra em função da mesma cor de sua pele. Cor que traduz e inscreve nela, como memória, o relacionamento entre seus bisavôs Mariana e Enzo, atravessado pelas clivagens hierárquicas (de classe, de raça, de gênero) existentes, em inícios do século 20, entre empregada negra e patrão branco: “ninguém ficou mais branco no Brasil por amor”, atesta a artista. Era “embranquecer ou desaparecer”, dilema falso que, para o filósofo Frantz Fanon, impede que se identifiquem (e se combatam) as “estruturas sociais” que verdadeiramente constrangem a “possibilidade de existir”. Hierarquias violentas que, tanto tempo passado, ainda persistem, mal encobertas pelo mito de “democracia racial” desde então inventado no país.

E é fundamentada nos motivos históricos para a existência de um reconhecimento pessoal ambíguo (branca para uns, preta para outros) que a artista alude, por meio dos entrechoques entre imagens e falas que cria, à partilha de um legado comum entre ela (mais tantas outras netas de Doralices) e as pessoas negras de Lagos. Delicadamente avizinha, no vídeo, as paisagens humanas e físicas da cidade africana, banhada pelo oceano Atlântico, e de Cachoeira, na Bahia, situada às margens do rio Paraguaçu. Para além da presença importante da água nos dois lugares – matéria e metáfora tão caras à lógica e à ética desses trabalhos –, a aproximação visual e recente entre as duas cidades atualiza sua proximidade histórica. Se grande parte das mulheres e homens escravizados no Brasil no período colonial veio da região de Lagos, a cidade baiana teve, à época, uma das maiores concentrações de pessoas negras do país, sendo local de forte resistência à permanência do trabalho forçado. Não é à toa que existem, lá e cá, tantas passarelas e pontes sobre as águas.

É na busca por rastros que unam, no presente, territórios que no passado participaram, por circunstâncias diversas, do processo de escravização e desumanização de pessoas negras que se funda este trabalho. Violência que, não faz tanto tempo, era institucionalizada no Brasil, conforme lembra Aline Motta com a inclusão, no fluxo do vídeo, da fotografia e do registro de nascimento de outra personagem familiar: sua mãe, nascida em 1939, apenas meio século depois do fim formal da escravidão no país. Importa à narrativa filmada, contudo, também destacar modos de resistência àquela brutal violência. Sobretudo as mais sutis, paradoxais e duradouras, como a invenção de um “Jesus Nagô”, exemplar de uma religiosidade híbrida. Nessa busca por encontros truncados e misturas, e quase ao fim do trabalho, imagens e falas vão-se aproximando e confundindo cada vez mais. Pessoas negras em Lagos e em Cachoeira apontam espelhos para si mesmas e para o outro lado do “Atlântico negro”, em busca de se reconhecerem umas nas outras como parentes por força afastados. Em busca de outros fundamentos para darem sentido e seguimento à vida de seus antepassados. Sem mais demora.

A despeito de suas diferenças e modulações, é certo que esses três vídeos de Aline Motta, bem como outros trabalhos associados ao seu programa artístico, dividem um impulso comum. Dedicam-se a identificar ausências e descontinuidades nas histórias hegemônicas do Brasil, aquelas por muito tempo repetidas em instâncias oficiais e cultas até se tornarem cânone. Até ao ponto de não serem mais questionadas pelo senso comum a respeito de sua origem, fazendo-se tradição. Para promover fissuras nessas narrativas e propor outras articulações possíveis entre sujeitos, lugares e acontecimentos ao longo do tempo, a artista se ancora no poder da evocação ou da lembrança de quem é subordinado e esquecido naquelas formulações. Nos termos propostos por Lélia Gonzalez, combate a consciência que se possa possuir dos fatos passados através da potência transformadora da memória. Consciência aqui tomada como expressão do encobrimento ou do esquecimento de eventos críticos e disruptivos de uma determinada ordenação social; ou, em outros termos, como instância psíquica em que o discurso dominante se impõe e adere às subjetividades. Memória, contrariamente, como a instância em que afloram os cacos ou rastros de histórias não escritas, das vidas passadas dos vencidos; o meio de emersão daquilo que esteve velado ou permanece desconhecido. “Consciência exclui o que a memória inclui”, diz a filósofa. E o modo privilegiado que a memória se vale para romper esta alienação do vivido, para incluir o que foi e é recalcado, é a ficção.

O entendimento da história como ficção – como campo de aberta disputa entre narrações conflitantes sobre um passado que se atualiza a todo instante – é peça metodológica central das investigações de Saidiya Hartman, com as quais se alinham, conceitualmente, os trabalhos de Aline Motta. Para a historiadora, há fatos violentos que, por sua própria dinâmica, apagam informações cruciais para entender e descrever suas profundas implicações. Acontecimentos que destroem ou excluem, dos arquivos formais e materiais que geram (textos, imagens, objetos), justamente as versões daqueles por eles vitimados. Ativar esses arquivos como fontes privilegiadas e exclusivas para contar as vidas dos vencidos equivaleria, segue o argumento, a renovar as violências a que foram originalmente submetidos. Para historiar efetivamente esses eventos é preciso, portanto, narrar o que nunca coube nos arquivos dos vencedores; mais ainda: reconhecer a opacidade de certos fatos passados e inventar maneiras de não desviar o foco de tal característica. Dessa categoria de acontecimentos brutais, faz parte, evidentemente, a escravização de mulheres e homens negros durante o empreendimento colonial nas Américas. E se é escasso, ou quase inexistente, o registro dos desejos e sensações daquelas pessoas escravizadas e também das pertencentes às primeiras gerações de libertos, é por isso mesmo imprescindível incorporá-los nas narrativas históricas. É diante de paradoxos metodológicos como este que se ampara a proposta de Saidiya Hartman de “imaginar aquilo que poderia ter acontecido” e do qual não há quase evidência empírica. Não para preencher lacunas impreenchíveis de um arquivo por definição incompleto e seletivo, mas para assumir as “capacidades do subjuntivo” (tempo gramatical que expressa possibilidades) no corpo da investigação histórica. É nesse sentido que ela propõe a necessidade de entender a história como “fabulação crítica”.

É por meio dessa ficcionalização do passado “com e contra o arquivo” – na qual os limites deste último são expostos – que práticas historiográficas e artísticas por vezes se interceptam e viram estratégia conjunta de recusa à suposta autoridade de narrativas oficialmente assentadas. Partindo de um singelo relato oral feito por sua avó – lembrança que não encontrava abrigo e tradução social em arquivo –, Aline Motta produz, na trilogia de vídeos comentada aqui, ficções da história que colocam em estado de crise encadeamentos de fatos e seus significados dominantes. Reescreve, no tempo gramatical do subjuntivo – atravessado por incertezas e pela capacidade imaginativa –, a história de sua família e, por extensão, de um passado do Brasil que ainda repercute no agora. Procedimento artístico que concede atenção a acontecimentos da vida privada – supostamente desimportantes para a compreensão das grandes narrativas históricas – para retomar, como sugeria o filósofo Walter Benjamin, fios de acontecimentos emaranhados ou mesmo soterrados naquelas explicações hegemônicas do passado. É por meio dos relatos quase íntimos articulados em sons e imagens nestes trabalhos que a artista afirma a humanidade de mulheres e homens negros escravizados, forçando a reinscrição de suas vidas (e as de seus descendentes) nas narrativas históricas dominantes, que são assim fraturadas. Procedimento que implicitamente reclama a atualidade das lutas por direitos e por dignidade um dia travadas e tantas vezes perdidas por aquelas pessoas. Escolha epistemológica que “salva os mortos” para animar os vivos nas lutas sempre urgentes contra o racismo e a política da morte por ele fundamentada.

Esse avizinhamento entre o pessoal e o coletivo e entre momentos cronologicamente apartados – um dos elementos centrais dos três vídeos de Aline Motta – é graficamente sugerido em trabalho mais recente que integra o projeto Jogo da memória (2019). Em diagrama desenhado à mão, a artista associa, sem estabelecer relações unívocas, acontecimentos, coisas, lugares, situações e tempos relativos à sua vida, à de sua mãe Wilma, à de sua trisavó Ambrosina e a de outros personagens. Um conjunto de referências concretas e simbólicas que estariam o tempo todo se entrecruzando, se esbarrando, se desviando umas das demais, se traduzindo umas nas outras e, desse modo, informando uma história que é lembrada e contada em fluxo sem fim certo. Referências que sugerem uma narrativa que, embora em parte ficcional (ou exatamente por sê-la), aspira a ser a lembrança do que teria se passado de fato. Um diagrama sem causalidades definidas entre seus elementos e sem repartições temporais e territoriais claras. Um mapa da memória que toma como paradigma cognitivo a encruzilhada, no sentido que a poeta e ensaísta Leda Maria Martins confere ao termo, tão caro à cultura diaspórica que emergiu dos povos africanos escravizados nas Américas. Encruzilhada como espaço simbólico de atravessamento entre diferentes etnias, línguas, saberes, crenças e fatos; como “lugar radial de centramento e descentramento, intersecções e desvios, textos e tradução, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação”. Como espaço para encontros por vezes amistosos e, outras vezes, conflitantes e mesmo brutais. Talvez uma metáfora para o próprio programa artístico de Aline Motta, território do sensível em que a história é reconfigurada e contada de maneira distinta da que informa e rege discursos hegemônicos de poder, tornando-a porosa a acontecimentos, vozes e atos antes dela expurgados. Arte como contra-história. Arte como encruzilhada.

Moacir dos Anjos é crítico de arte. Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, foi curador da 29ª Bienal de São Paulo em 2010. Publicou ArteBra Crítica: Moacir dos Anjos (2010), Local/global: Arte em trânsito (2005) e Contraditório. Arte, globalização, pertencimento (2017) entre outros volumes e ensaios em livros.

Posted by Patricia Canetti at 10:05 AM