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maio 20, 2020
SP-Arte recua e diz que ressarcirá integralmente galerias por edição cancelada por Clara Balbi, Folha de S. Paulo
SP-Arte recua e diz que ressarcirá integralmente galerias por edição cancelada
Matéria de Clara Balbi originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 13 de maio de 2020.
Decisão, que acontece após mais de um mês de negociações, surpreendeu o setor
Depois de mais de um mês de negociações, a feira SP-Arte recuou e decidiu devolver todo o investimento das galerias na edição da feira deste ano, cancelada por causa da pandemia da Covid-19.
No início de abril, a organização tinha afirmado que devolveria apenas um terço desse dinheiro às casas de imediato, o que motivou uma união inédita do setor para reaver seus investimentos. Um outro terço seria retido para cobrir os custos da montagem, em curso quando o evento foi suspenso, e um terço final serviria de crédito para a participação das galerias na feira do ano que vem.
Uma participação na SP-Arte começa nos R$ 20 mil e pode ultrapassar os R$ 100 mil. Segundo galeristas consultados pela reportagem, são valores que pesam e muito diante da crise ocasionada pelo coronavírus —em especial no caso dos espaços menores, mais vulneráveis aos reveses do mercado.
Em nota, a SP-Arte afirma que devolverá o dinheiro pago pelos espaços de maneira escalonada em até um ano, de modo a aliviar os problemas de caixa que enfrenta também em função da crise. Ainda diz que a opção "pela devolução integral representa um esforço de capitalização na empresa, uma vez que, ainda que não tenha acontecido, o evento foi em boa parte pago".
À Folha, a diretora do evento, Fernanda Feitosa, afirma que a decisão de voltar atrás foi motivada pela percepção de que era preciso se adaptar a uma realidade que se transforma "com rapidez inédita e em direções incertas".
"Foi necessário pensar em uma nova proposta que, de fato, pudesse demonstrar nossa total colaboração à sobrevida de galerias (e, por consequência, de seus artistas), apesar dos enormes esforços os quais estamos nos imputando, já que não fazemos parte de um grupo econômico multinacional, a exemplo de outras feiras", ela diz.
"Também entendemos que, neste momento de agravamento da crise, a devolução integral está em consonância com nossa missão desde o início da SP-Arte: o fomento ao sistema das artes no Brasil", um projeto que Feitosa qualifica como "de vida".
As negociações entre as galerias insatisfeitas, cerca de 80 de um total de 159 que participariam do evento este ano, vinham sendo tocadas por duas entidades do setor, a Agab, a Associação de Galerias de Arte do Brasil, e a Abact, Associação Brasileira de Arte Contemporânea.
Presidente da primeira, Ulisses Cohn afirma que a decisão surpreendeu positivamente o grupo, já que eles propunham inclusive contribuir com porcentagens de seus investimentos para minimizar os prejuízos da feira.
Ele diz que estão todos muito satisfeitos com o gesto e que restam só algumas questões de procedimentos a serem resolvidas com as galerias.
Na nota enviada, a SP-Arte ainda confirmou a realização de uma edição virtual neste ano, prevista para entre junho e agosto. Com isso, segue os passos dos principais eventos do tipo no mundo, como a Art Basel Hong Kong e a Frieze, de Nova York, que acontece de forma online até esta sexta (15).
A feira também adiantou que a edição de 2021 da SP-Arte está confirmada e deve acontecer de 14 a 18 de abril, no pavilhão Ciccillo Matarazzo, no parque Ibirapuera.
Venice Art Biennale delayed until 2022, now the same year as Documenta by Gareth Harris, The Art Newspaper
Venice Art Biennale delayed until 2022, now the same year as Documenta
Matéria de Gareth Harris originalmente publicada no site The Art Newspaper em 18 de maio de 2020.
Organisers say "it is impossible to move forward within the set time limits in the realisation of such a complex and worldwide exhibition"
The 59th Venice Biennale will take place in 2022 following the decision by biennial officials to postpone the Architecture Biennale until May 2021 due to the coronavirus outbreak. The world’s most prestigious biennial was initially due to take place next year.
The move means that the art calendar is in flux again with the art biennial, overseen by the Italian curator Cecilia Alemani, now scheduled to take place 23 April to 27 November 2022. Other major events planned for summer 2022 include Documenta 15 in Kassel, Germany (18 June-25 September) and the Lyon Biennale (September).
“The decision to postpone the Biennale Architettura to May 2021 is an acknowledgment that it is impossible to move forward within the set time limits in the realisation of such a complex and worldwide exhibition, due to the persistence of a series of objective difficulties caused by the effects [of] the health emergency underway,” says a biennial statement.
Biennial officials initially announced in March that the architecture biennial would be postponed from 29 August this year until 29 November. It will now run from 22 May to 21 November 2021.
Held across the city's Giardini and Arsenale sites, the 17th edition of the International Architecture Exhibition, entitled How Will We Live Together?, is curated by the Lebanese architect Hashim Sarkis. Sixty-five countries are due to take part.
Regina Duarte deixa comando da secretaria de Cultura do governo Bolsonaro, G1
Regina Duarte deixa comando da secretaria de Cultura do governo Bolsonaro
Matéria originalmente publicada no portal G1 em 20 de maio de 2020.
Atriz assumiu a pasta em 4 de março com a missão de 'pacificar' o setor. Segundo o presidente, ela assumirá a Cinemateca, também vinculada à pasta.
O presidente Jair Bolsonaro anunciou nesta quarta-feira (20) a saída da atriz Regina Duarte do cargo de secretária especial de Cultura. Em publicação em uma rede social, o presidente afirmou que ela assumirá a Cinemateca Brasileira, em São Paulo.
A Cinemateca Brasileira é a instituição responsável pela preservação da produção audiovisual brasileira e é vinculada à Secretaria da Cultura.
"Regina Duarte relatou que sente falta de sua família, mas para que ela possa continuar contribuindo com o Governo e a Cultura Brasileira assumirá, em alguns dias, a Cinemateca em SP. Nos próximos dias, durante a transição, será mostrado o trabalho já realizado nos últimos 60 dias", afirmou Bolsonaro.
Regina Duarte assumiu a pasta em 4 de março, com a missão de "pacificar" o embate entre a classe artística e a indústria da cultura com o governo federal.
Desde o início do mandato de Bolsonaro, a secretaria teve alta rotatividade em razão de polêmicas na pasta e em órgãos vinculados a ela.
No dia 5 maio, por exemplo, o governo renomeou maestro Dante Mantovani como presidente da Fundação Nacional de Artes (Funarte) que tinha sido exonerado por Regina no primeiro dia da atriz à frente da secretaria.
Segundo o blog da comentarista do G1 e da TV Globo Andréia Sadi, Regina não foi informada e "não entendeu" a nomeação. Mantovani foi exonerado no mesmo dia e o ministro do Turismo, Marcelo Alvaro Antonio, justificou as mudanças por "questões internas".
A saída de Regina Duarte do governo já era um desejo da ala ideológica próxima ao presidente, conforme informou a colunista Andréia Sadi nesta terça.
Questionado sobre a permanência de Regina no governo, Jair Bolsonaro disse que só presidente e vice não podem ser trocados.
A ala política do Planalto tentava afastar as especulações sobre a possibilidade de saída de Regina, mas já havia se frustrado com a fala do presidente sobre a secretária na semana passada.
Bolsonaro queria Regina mais próxima
No fim de abril, na portaria do Palácio da Alvorada, o presidente Jair Bolsonaro elogiou Regina Duarte, mas disse que gostaria de vê-la mais próxima.
Na ocasião, ela estava em São Paulo. O presidente disse também que ela estava tendo dificuldade em lidar com questões de "ideologia de gênero".
"Infelizmente, a Regina está em São Paulo. Está trabalhando pela internet ali. E eu quero que ela esteja mais próxima. É uma excelente pessoa, um bom quadro. É também uma secretaria que era ministério. Muita gente de esquerda pregando ideologia de gênero. Essas coisas todas é que a sociedade, a massa da população, não admite. Ela tem dificuldade nesse sentido", disse o presidente.
maio 12, 2020
A mail art renaissance is growing in the US—just as the postal service struggles to survive by Brian T. Leahy, The Art Newspaper
A mail art renaissance is growing in the US—just as the postal service struggles to survive
Matéria de Brian T. Leahy originalmente publicada no jornal The Art Newspaper em 5 de maio de 2020.
Letters and packages have been delivered to Americans since 1775. Now, they can receive some public art too
As Covid-19 shuttered physical art spaces, many museums, fairs and galleries quickly focused their energies to translate art viewing onto digital platforms. Yet some artists have turned to a decidedly low-tech alternative to the internet—the US Postal Service (USPS)—engaging with the history of mail art, sharing physical artworks and creating connections, even in isolation. And, as the USPS has become a target of the Trump administration as it looks to cut federal costs, the act of mailing art in a crisis has taken on a new urgency.
The New York-based nonprofit Printed Matter is using the USPS as a means to engage with the public via an open call for mail art submissions. “It’s an important moment to feel connected,” spokeswoman Johanna Rietveld says. “Both correspondence art and artist-run publishing aim to democratise the art world.” Printed Matter will accept submissions until 18 May and plans to produce a publication from selected contributions.
It’s an important moment to feel connected
Dream Farm Commons, an artist-run exhibition space in Oakland, California, has put out its own call for mail art. When the gallery was forced to postpone its summer exhibitions, “that felt tragic to me”, says Ann Schnake, one of the artist-founders. In response, the organisers asked communities to send art. Submissions, whether by post or dropped in the gallery’s mail slot, will be displayed in the gallery’s storefront windows, and included in a digital catalogue.
Professors have also turned to mail as a teaching tool. After the University of Idaho transitioned to digital classes, Mike Sonnichsen, an assistant professor of art and design, asked his printmaking students to create mail art and send it to “someone who might need something thoughtful and tangible” in their mailbox. “For me, there was something analogous between making prints and making mail art, which isn’t really finished until it is mailed and received by someone,” Sonnichsen explains.
Artists have used the post as a distribution channel for decades. Chuck Welch, known to his correspondents as CrackerJack Kid, has sent art through the mail since the late 1970s, as has artist Mark Bloch. Today, both are also active historians of mail art. Correspondence art networks often trace their roots back to Ray Johnson, an artist who sent countless missives to addressees across the world and declared his activities a “school” around 1962. These postal communities merged with experiments by members of Fluxus, such as George Brecht and conceptual artists such as On Kawara. Global networks formed throughout the 1970s, allowing artists from Japan, Latin America, Europe, the US and elsewhere to exchange ideas and images well before the availability of email and social media.
Ironically, Covid-19 closures have affected numerous exhibitions celebrating these histories. Bloch curated a show of his archives at NYU’s Fales Library, slated to open 26 March and now postponed. The Brattleboro Museum and Art Center in Vermont had to shut its doors just days after the opening of a show, curated by Welch, that celebrates 40 years of mail art by Stuart Copans.
Shortened exhibition timelines also impacted a younger generation of mail artists. Mitsuko Brooks, a New York artist who started out in the 1990s zine scene, was included in an annual postcard exhibition, “Fe*Mail*Art,” at A.I.R. Gallery in Brooklyn. The gallery shut in response to Covid-19 on 13 March, two days before a scheduled closing reception and postcard sale. “Historically, those final days are a critical time for the artists,” says Nicole Kaack, the gallery’s associate director.
Bloch has used his exhibition’s postponement as a catalyst to crowdsource images of historical postal art, contributed on social media under the heading “Early Mail Art” by other artists. Brooks has seen increased requests for her mailed work and interest from new correspondents. “The gift of receiving an artwork that also exists as a letter during these quiet, tough times, seems all the more relevant,” Brooks says.
Indeed, the precedent of mail art has inspired other artists to experiment with it. Barbara Fisher, an artist in Asheville, North Carolina, distributed 66 small paintings on synthetic paper to artists, collectors, and friends. “I started thinking how nice it would be to send something out into this crazy world to hopefully bring some joy and mystery to people,” she says.
Handling mail during a pandemic has its drawbacks, however, something the organisers of these initiatives take seriously. For reasons of health, and of time, many of these projects also have an online presence and will accept digital submissions. “We’ve received a good amount via mail and even more via email,” Rietveld explains about Printed Matter’s project. “We wouldn’t want anybody to put themselves or their surroundings in danger by going to the postal services if they shouldn’t.”
The risks for delivery workers and services became apparent as the virus spread. The USPS has been hit particularly hard, seeing mail volumes and resulting revenues decline precipitously, even as some workers contract the virus. As Republican Senate leadership and the White House rebuff calls to include the USPS in new stimulus packages, the funding outlook for the service, active since 1775, appears uncertain.
On 13 March, the day Trump declared a national emergency, Welch created a set of black stamps that read Covid-19 Culture Fake Test, a commentary on the federal government’s inability to provide adequate tests to help control the spread of the virus. Licking the stamp tells you just as much about your health as the non-existent tests—nothing. They also highlight the intimate connection that mail art requires: the sender attaching a stamp, postal workers handling the mail, the recipient experiencing a new touch.
“What I fear is President Trump’s desire to shut down the USPS with legislation that outsources mail through commercial carriers,” Welch explains. “There is a real threat that this kind of legislation may pass if the economy doesn’t recover.”
Appeared in The Art Newspaper, 323 May 2020
Edital do Itaú Cultural recebe críticas por aprovar projetos de artistas já consagrados por Marina Lourenço, Folha de S. Paulo
Edital do Itaú Cultural recebe críticas por aprovar projetos de artistas já consagrados
Matéria de Marina Lourenço originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 8 de maio de 2020.
Zélia Duncan e Jards Macalé estão entre os selecionados, mas instituição diz que famosos são somente 10%
Recentemente, alguns membros da classe artística brasileira têm tecido críticas ao projeto "Arte como Respiro: Múltiplos Editais de Emergência", lançado pelo Itaú Cultural, que promove inscrições em editais artísticos de diferentes áreas e oferece como prêmio valores em dinheiro.
Em meio à pandemia do novo coronavírus, diversos artistas têm enfrentado dificuldades financeiras. O cancelamento de eventos e o fechamento de espaços culturais trouxeram prejuízo ao setor, que agora tenta encontrar alternativas para contornar o problema. E, por isso, projetos como esse têm surgido como tentativas de auxiliar esses artistas.
A divulgação da lista de aprovados pelo edital de música do projeto em questão, nesta sexta-feira (8), tem nomes de pessoas famosas como Luedji Luna, Jards Macalé, Luiz Tatit, Zélia Duncan e Anelis Assumpção. Eles estão entre os 80 selecionados da categoria de obra autoral para receber R$ 5.000, o que gerou críticas nas redes sociais.
"Não estou desmerecendo de forma alguma o trabalho desses artistas, mas é tecnicamente impossível competir com eles. Com todo o meu respeito, é imoral que participem de editais como esse", escreveu o músico Caio Chiarini, no Facebook.
O Itaú Cultural argumenta que artistas do calibre de Zélia Duncan e Jards Macalé representam cerca de 10% de todos os selecionados.
"Há trabalhos contemplados de diversos perfis de artistas, de todas as regiões do Brasil e de várias cidades, além das capitais", disse Edson Natale, gerente do núcleo de música do Itaú Cultural.
Essa não foi a primeira vez que artistas já consagrados ficaram entre os aprovados pela curadoria do projeto e, assim, causaram polêmica. No edital de artes cênicas, que teve a lista de aprovados divulgada no dia 28 de abril, a atriz Bárbara Paz aparece entre os selecionados para receber até R$ 10 mil.
Comentários na publicação no Facebook da atriz Flavia Milioni, que também concorreu ao edital, questionam a necessidade "de emergência" —como sugere o nome do projeto— de Paz.
Além disso, o edital de literatura, lançado nesta quinta-feira (7), também foi alvo de críticas pelo seu recorte temático. Nele, para concorrer ao prêmio de R$ 2.500, são exigidas produções de gêneros em prosa (miniconto) ou poesia sobre a temática "vida pós-pandemia", de até 800 caracteres.
"A literatura precisa meter o dedo na ferida da sociedade. O ideal mesmo é deixar o artista livre", disse o escritor e gestor cultural Henrique Rodrigues à Folha. "Fica parecendo aqueles concursos de redação de escola, que pedem para escrever sobre tal tema."
Leopoldo Calvalcante, escritor e editor da revista digital Aboio, também não gostou do edital. "Literatura não pode se limitar a uma noção panfletária de que a vida pós-pandemia vai ser melhor. Parece que o Itaú Cultural está querendo que os escritores deem as mãos uns aos outros e falem 'we are the world, we are the children'."
Já o escritor Marcelino Freire tem outra opinião. "É preciso pensar também no outro lado dessa cadeia produtiva. Quando eu vi esse edital, que realmente pode ser mais simplificado, enviei para o poeta Miró da Muribeca, que normalmente ganha dinheiro na rua, e ele ficou super animado."
O Itaú Cultural afirma que esse edital se deu num contexto de emergência causado pela pandemia.
"Nós estamos em suspensão social e com as restrições que o home-office traz, exigindo recortes e escolhas. Esse contexto nos levou a optar por esse campo curatorial, com tema e formato, acreditando que o autor poderá praticar a sua liberdade de criação, trazendo um olhar subjetivo para esse universo", disse Claudiney Ferreira, gerente do núcleo de audiovisual e literatura do Itaú Cultural.
Coronavírus condena práticas insustentáveis do mundo da arte, diz galerista por Márcia Fortes, Folha de S. Paulo
Coronavírus condena práticas insustentáveis do mundo da arte, diz galerista
Artigo de Márcia Fortes originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo em 10 de maio de 2020.
Para Márcia Fortes, velho normal, marcado por excesso de feiras, viagens e sobrevalorização de artistas, se esfacelou
[RESUMO] Galerista reflete sobre os efeitos da pandemia no mercado de arte, que se vê obrigado a reavaliar modelo predatório de negócio, marcado, entre outros aspectos, pela multiplicação de feiras internacionais e pela sobrevalorização de artistas.
“Ainda é cedo, amor, mal começaste a conhecer a vida”
Cartola
Tem gente acreditando que mudou para sempre, que foi o golpe fatal no capitalismo predatório. Tem gente que espera reajustes, mas lembra que a mineração vai bem. Tem gente de saco cheio dessa maçante interrupção. Tem muita gente com medo. E gente mergulhando fundo nos recursos epistêmicos disponíveis da vida com e pós Covid-19.
“Tudo se foi exceto um sentido da questão da existência, da existência como questão”, relia, outro dia, o clássico ensaio introdutório à crítica de arte “Modos de Ver” (1972) —e as palavras de John Berger, sobre um autorretrato de Rembrandt, ressoaram atuais. Berger nos lembra que olhar é um ato de escolha. A diferença é que em Berger a forma como vemos as coisas é afetada pelo que sabemos ou pelo que acreditamos, enquanto hoje só temos conjecturas e refutações a partir do que acreditamos.
Berger observa que nunca olhamos para uma coisa somente, sempre olhamos para a relação entre as coisas e nós mesmos. A relação entre a pandemia de Covid-19 e o setor em que atuo, o chamado mundo da arte, é análoga à de diversos setores da economia, nos quais a produção, a distribuição, a venda e o consumo praticamente paralisaram e agora se reconstroem sobre terreno incerto.
Uma relação que se pauta numa situação pós-guerra e na perplexidade da contingência em meio às tradições esfaceladas pelo vírus global e pelo verme local.
Demissões e suspensões de contratos de trabalho abundam. Feiras de arte e exposições bienais foram canceladas ou postergadas. Museus e galerias estão fechados sem previsão de reabertura.
Ainda assim, sustentam, via plataformas digitais, uma programação intensa de conteúdo. Interessados em arte se deparam hoje com inúmeras televisitas de mostras e ateliês de artistas e infindáveis lives de debates críticos.
O tal novo normal tornou-se chavão desgastado, das falas do presidente da OMS à capa da Vogue Brasil, e soa conservador. Ecoa como a premeditação de um golpe para o antigo regime. Esqueçamos, porém, esse conceito perverso do normal e encaremos a nova realidade que demanda mudanças estruturais, estimuladas por flexibilidade radical e não por semântica tautológica.
“Daqui pra frente, tudo vai ser diferente, você tem que aprender a ser gente”
Roberto Carlos e Erasmo Carlos
O normal no mundo da arte era acumular incontáveis milhas de voos intercontinentais no rastro das inaugurações de bienais e trienais, de feiras, de museus públicos e privados. Aichi, Berlim, Dacar, Gwangju, Havana, Istambul, Liverpool, Lyon, Nova York, Oslo, São Paulo, Sharjah, Sydney, Taipé, Veneza, Xangai —um esforço alfabético de listar algumas cidades anfitriãs de bienais de arte.
Basileia, Bruxelas, Buenos Aires, Chicago, Cidade do México, Colônia, Dubai, Hong Kong, Londres, Los Angeles, Maastricht, Madri, Milão, Miami, Nova York, Paris, Rio de Janeiro, novamente São Paulo, Turim e Xangai —outro esforço para listar cidades anfitriãs de feiras de arte.
O fenômeno de ascensão das feiras começou em 2000, quando existiam 60 delas no mundo, ao passo que em 2019 eram mais de 300. “Art fair fatigue” (fadiga de feira de arte) tornou-se expressão clichê no circuito. Ninguém aguentava mais tanta viagem, tanta festa, tamanha ostentação. Galerias sofriam para sustentar os custos de manuseio, empacotamento, seguro e transporte de obras através dos mares; bilhetes aéreos e hospedagens; jantares oferecidos a colecionadores e curadores da vez.
O boom das feiras estabeleceu um modelo econômico análogo ao do capitalismo mais selvagem, em que impera a lei do mais forte e a escala blockbuster das megagalerias. Nem ouso comentar sobre as pegadas de carbono.
No encalço dos artifícios desmedidos, há os valores obscenos para obras de artistas vivos, alguns reconhecidos por anos de trabalho consistente, outros ainda tateando em busca de voz própria, porém alavancados ao estrelato precoce por encarnar um dos discursos prementes.
Vimos o interesse crescente por artistas mulheres ou afrodescendentes e LGBTQIAP+. São pesquisas essenciais e reparações urgentes. Resultou em arte e antiarte. Contexto acima do conteúdo. O discurso coletivo tragando a forma original. Saturno devorando seu filho.
E os profissionais do setor fundindo suas células numa multiplicidade de vidas simultâneas, num insalubre projeto de ubiquidade, sem dia de folga, sem tempo para pensar a arte no negócio de arte.
A ideia de se fazer milhões sobre a sensibilidade artística, a miséria emocional, a cobiça obsessiva ou a aptidão filantrópica das pessoas muito ricas sempre me incomodou, ao passo que agregar valor a algo tão maravilhosamente absurdo como a arte sempre me impulsionou.
Deposito aqui a crença na necessidade vital do absurdo para a nossa existência, daquilo que difere e provoca o status quo. Isso é raro e tem seu valor —um alto valor autêntico que não precisava ser especulativo como se tornou.
Semana passada a megagaleria Gagosian (16 espaços pelo mundo) postou a oferta de uma “pintura histórica” de 2001 de Cecily Brown por US$ 5,5 milhões, uma “oportunidade” nesse momento em que a busca por obras da artista “atinge novos patamares”. Se esse é o discurso em plena crise da Covid-19, imagine se o curso das coisas estivesse no modo “normal”.
A negação freudiana é um costumeiro mecanismo de defesa e a primeira fase de um processo evolutivo para a aceitação. A Art Basel (com edições na Basileia, Miami e Hong Kong) sustentava a transferência da feira de junho para setembro, até quando nos surpreendeu positivamente ao adotar um tom de humildade perante o implacável efeito da pandemia, em carta na qual admitia não garantir a realização de suas feiras neste ano e prometia 100% de reembolso, como “apoio às nossas galerias e seus artistas”.
A Frieze Art Fair (Londres, Nova York e Los Angeles) havia sido a primeira a abraçar a comunidade e garantir reembolso integral pelo cancelamento da feira de Nova York, prometendo o mesmo no eventual cancelamento da edição londrina, a rigor em outubro.
A solidariedade é factual e uma boa nova no circuito. A megagaleria David Zwirner lançou o “Platform”, um espaço dentro do seu site que abriga 12 galerias menores de Nova York. No Brasil, 52 galerias uniram-se para estabelecer diálogo com a direção da SP-Arte —a maior feira nacional, que decepcionou ao comunicar a retenção de dois terços dos pagamentos feitos para o evento, cancelado no mês passado. A negociação acontece numa hora que demanda empatia social e econômica, e o emprego de fórmulas, ainda que erráticas, pelas quais os componentes compartilham perdas mútuas.
Há, todavia, dezenas de feiras agendadas para o segundo semestre, dentre elas Art Basel, Frieze London, Fiac, Artissima, ArtRio, Tefaf e Art Basel Miami Beach. Mas é unânime a convicção de que, sem vacina, não há impulso coletivo para deslocamentos de avião com o objetivo de conglomerar-se ao redor de obras de arte. Pelo sim, pelo não, o mercado aposta suas fichas na edição online da Frieze NY, inaugurada na última quarta (6) e aberta até o dia 15.
“O experimento do mundo da arte com feiras online poderia forçar um saudável repensar?”, questionava reportagem do Financial Times na sexta (1º), em matéria alinhada com a insustentabilidade do negócio de arte. Vislumbra-se um cenário no qual mais e maior não será o melhor, com foco em qualidade e não em quantidade, menos exposições com maior duração.
Ufa! Com a retração de visitações estrangeiras, maior relevância local de artistas e galerias, afinal arte não é um objeto e sim uma experiência.
Quanto às bienais, a Manifesta, evento nômade ancorado em Marselha em 2020, postergou a abertura para outubro. A Prospect, trienal de Nova Orleans, transferiu sua edição de 2020 para 2021.
A Bienal de São Paulo adiou sua inauguração de 5 de setembro para 3 de outubro. Há certo consenso de que é pouco tempo, mas, com o tema “Faz Escuro mas Eu Canto”, a Bienal reafirma que “a arte, com sua capacidade de estabelecer conexões e emocionar, é, agora, mais necessária do que nunca”.
Como numa obra de Felix Gonzalez-Torres, a presença humana está ali, mas ausente num estado latente, querendo chegar... ou ainda quente porque acaba de partir.
“E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música”
Friedrich Nietzsche
Para além da situação global, estamos no Brasil, onde sorvemos doses outrora inimagináveis de sadismo e burrice e confusão, além da disparada do dólar, da falta de recursos e de fundamentos —enfim, uma encrenca sem tamanho.
A economia criativa —que abarca cerca de 20 setores, como música e literatura, artes cênicas e visuais, arquitetura, publicidade, moda e gastronomia— sobrevive sob sérias pancadas.
São muitos os golpes sofridos pela cultura no país, desde que o Plano Nacional de Cultura apareceu lindo no papel ao final do governo Lula e foi atropelado ainda infante pela crise político-econômica, pela radicalização religiosa no país, pelas ceifadas da censura, pela difamação arquitetada por interesses políticos, pela extinção em 2019 do ministério que nos representava, substituído por uma secretaria especial inserida no Ministério da Cidadania e realocada no Ministério do Turismo, onde lá esteve um secretário psicopata que aspirava ao nazismo, substituído por Regina Duarte, que, ensandecida, não vai agir por nós, pois sente-se “tão leve” e não quer “desenterrar os mortos”.
Órgãos culturais são comandados por lunáticos e bolsonaristas sem o menor preparo, como a turismóloga nomeada coordenadora técnica do Iphan no Rio. Só nos resta chorar pelo patrimônio histórico e artístico nacional.
A grave problemática das altas taxas de importação, de ICMS na circulação interestadual de bens culturais e das cobranças extorsivas do processo aduaneiro na entrada de obras precisa ser reconsiderada, bem como as leis jurássicas que tributam duplamente o artista e seu representante. Um mínimo incentivo seria a isenção de ICMS na importação de arte —que existe por decretos durante as feiras— passar a valer no ano inteiro. Por hora, “perfer et obdura”! (aguente e resista!)
Enorme é a amplitude do desamparo em que estamos, sem que uma nota oficial lamente a morte de alguns de nossos mais virtuosos criadores —Rubem Fonseca, Moraes Moreira, Aldir Blanc, Flavio Migliaccio.
Como nas palavras finais de Scott Fitzgerald em “O Grande Gatsby”: “Eles eram uma gente indiferente, Tom e Daisy, quebravam e esmagavam coisas e criaturas e, então, se escondiam atrás do seu dinheiro ou sua vasta indiferença ou seja lá o que os mantinha juntos enquanto deixavam que outras pessoas limpassem a sujeira que haviam feito”. Pois que se danem Tom Jair e Daisy Regina, nós vamos limpar essa merda, encontrando formas de manter vivo o prazer de ter prazer.
A revalorização de artistas, esses “vagabundos da Lei Rouanet”, começa agora por meio de filmes, romances, poemas e pinturas que hoje entretêm nossa vida cotidiana e salvam nossa sanidade. A arte sobreviveu a todas as guerras e pragas. Seu papel social mudou muito no decorrer da história, mas a arte sempre teve uma função. A arte, metafísica ou ontológica, irá reconstruir seu papel social.
Hans Ulrich Obrist, diretor das galerias Serpentine em Londres, nos relembra do Artist Placement Group, a utopia da artista conceitual britânica Barbara Steveni, na qual as indústrias empregariam artistas como agentes de mudança.
Há muitas reflexões para que o mundo da arte não retorne como um espectro de si mesmo. Para que nós, agentes do ecossistema da arte, possamos conjugar com vigor duas forças aparentemente antagônicas: o voo da imaginação criativa e a lógica da razão cartesiana, e assim ter coragem para reinventar nosso negócio sem perder seu propósito.
Márcia Fortes é sócia-fundadora da galeria de arte Fortes D’Aloia & Gabriel.
Coronavírus: New Deal para arte é urgente na crise de Covid-19, defende Hans Ulrich Obrist, Folha de S. Paulo
Coronavírus: New Deal para arte é urgente na crise de Covid-19, defende Hans Ulrich Obrist
Artigo de Hans Ulrich Obrist originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo em 10 de maio de 2020.
Para curador, programas de larga escala de apoio a artistas durante a Grande Depressão podem servir de inspiração
[RESUMO] Curador e historiador da arte revisita programas de apoio governamental à produção artística durante a Grande Depressão nos Estados Unidos e defende que o efeito devastador da pandemia de coronavírus no circuito demanda a criação de um novo New Deal, com medidas de larga escala de suporte a artistas.
Recentemente, me deparei com um documento coletivo intitulado “The Grey Briefings”, de autoria do Special Circumstances Intelligence Unit, um grupo global formado por 90 futuristas, escritores, designers, tecnólogos e formuladores de políticas públicas. O documento indaga: “O que aconteceria com a Europa e a América do Norte se a Covid-19 se prolongasse por um ano ou mais?” Usando softwares do MIT, são apresentados três cenários possíveis, e todos significam dar adeus ao mundo tal como o conhecemos.
Os três cenários começam com desemprego em grande escala. O primeiro é o cenário pirâmide, em que os governos adotam políticas que beneficiam os ricos, o que resultará em desigualdade, pobreza e violência exacerbadas. O segundo é o cenário leviatã, em que os governos ampliam seus poderes e os utilizam para alcançar metas sociais e oferecer benefícios coletivos. O terceiro é o cenário aldeia, em que respostas estatais ineficazes e insustentáveis levarão à fragmentação e a soluções e apoios locais e frágeis do tipo “faça você mesmo”.
De acordo com o briefing, o cenário que acaba compensando é o leviatã, em que todos fazem sacrifícios e se mobilizam para desenvolver soluções locais, criando experimentos de baixo para cima com apoio do poder público. Há uma ênfase nos bens públicos e no bem-estar social, na transformação da economia e na criação de uma base mais resiliente e sustentável. Isso levará a uma recuperação pós-crise, resultando em um novo New Deal.
Baseados na Works Projects Administration (WPA, Administração de Projetos de Obras Públicas) criada nos EUA em 1935, os projetos enfocariam a criação de novas redes públicas, serviços digitais, sistemas de saúde de próxima geração amplamente acessíveis e projetos energéticos, habitacionais e de transportes resistentes à mudança climática. Os governos atuariam como guias e parceiros na execução dos projetos.
O briefing termina com algumas perguntas pertinentes. Como seria um Renascimento pós-Covid-19? Uma crise de Covid prolongada poderia estimular uma nova era de imaginação social? Como podemos imaginar um mundo mais saudável, satisfatório e justo à luz dos desafios colocados por esta “grande transição”?
Em termos de cultura, o desafio, de acordo com o briefing, será encontrar um ponto de equilíbrio delicado entre respeitar as preocupações das pessoas com as mudanças e, ao mesmo tempo, incentivá-las a fazer experimentos e se manter abertas a ideias novas. Como escreveu em 1932 o presidente Franklin D. Roosevelt, arquiteto do New Deal: “O país precisa —e, a não ser que eu me engane quanto à vontade popular, exige— experimentação ousada e persistente. É questão de bom senso escolher um método e experimentá-lo; se fracassar, reconhecer o fato francamente e experimentar outro. Sobretudo, porém, tentar alguma coisa”.
O futuro frequentemente é inventado a partir de fragmentos do passado. No final dos anos 1990 tive uma amizade com Helen Levitt (1913–2009), extraordinária fotógrafa de rua, cineasta e amiga de Walker Evans. Ao lado de Dorothea Lange, Gordon Parks e muitos outros fotógrafos americanos, ela participou do programa de fotografia da Farm Security Administration (FSA), que foi organizado por Roy Stryker como parte do New Deal em 1937, durante a Grande Depressão, e produziu 250 mil imagens de pobreza rural.
Levitt me disse que, se algum dia houvesse uma grande crise global que abalasse a sociedade até suas raízes (como a crise que estamos vivendo hoje), deveríamos revisitar o legado do New Deal de Roosevelt e o que ele fez com a cultura e por ela. Lembrando suas palavras, encontrei minhas anotações em que registrei o que ela havia me dito: como montar um patrocínio governamental de arte democrático e descentralizado e como vincular o artista ao ambiente social. Levitt também me fez perceber que esses projetos em grande escala tiveram um predecessor em 1926, quando o governo mexicano pagou artistas para decorar edifícios públicos com murais.
O apoio governamental à arte emergiu nos EUA em 1933, em consequência direta da Grande Depressão, que começou em 1929 e levou ao desemprego em massa. Como destaca o historiador cultural Robert C. Vitz, “a magnitude da crise obrigou os artistas a explorar maneiras de combater seu isolamento tradicional, e eventualmente, graças à organização dos artistas e com a ajuda de vários programas de artes do governo, eles encontraram um novo senso de comunidade e um novo papel na sociedade americana”.
Vitz descreve como Morris Grave vagou pelo o Oeste vendendo quadros à beira de estradas, como Jackson Pollock percorreu o país de carona com motoristas e em trens de carga, como Arshile Gorky chamou os anos da Depressão de o período “mais sombrio e mais sufocante” de sua vida e falou da “futilidade dessa pobreza tão paralisante para o artista”. Ele também nos conta que Marsden Hartley escreveu que “a incerteza não acrescenta nada à paz de espírito necessária para se criar trabalhos decentes”.
Os artistas perderam a maior parte de seu patrocínio filantrópico, e os muitos eventos e mercados cooperativos (como a feira de arte da Sociedade de Artistas Independentes, realizada no Grand Central Palace em Nova York em 1931) não lhes garantiam a renda necessária. Uma iniciativa foi proposta pela Sociedade Americana de Pintores, Escultores e Gravuristas, que em 1935 sugeriu que os museus pagassem taxas de aluguel aos artistas vivos cujas obras eles expunham. Apenas algumas poucas instituições, como o Museu de Arte Whitney e o Museu de San Francisco, acataram a sugestão, que por essa razão não conseguiu levantar a renda necessária. Ficou cada vez mais claro que apenas uma iniciativa governamental em grande escala poderia trazer soluções.
Como escreveu a historiadora da arte Erica Beckh, um encontro importante aconteceu na casa de Edward Bruce em Washington em 8 de dezembro de 1933. Bruce era artista, advogado, empresário, publisher e colecionador. Sua mente generalista e seu espírito pragmático foram fundamentais na criação de um plano para ajudar os artistas. Ele reuniu os diretores de muitos museus de todo o país em um encontro de um dia de duração, que teve a presença de Eleanor Roosevelt e foi presidido por Frederic A. Delano, tio do presidente Roosevelt. Nessa reunião foi traçado o primeiro programa federal para as artes, o Public Works of Art Project (PWAP, Projeto Público de Obras de Arte), com o objetivo de oferecer trabalho a artistas americanos por meio de encomendas —esculturas e murais para decorar edifícios públicos, por exemplo. Beckh resumiu o plano:
Administrado pela Divisão de Aquisições do Departamento do Tesouro, com recursos alocados pela Administração Federal de Assistência Emergencial, o PWAP fazia parte do programa federal de assistência a emergências. Era dirigido por uma equipe central em Washington assistida por 16 comitês voluntários regionais, compostos por funcionários de museus de arte e semelhantes. Os objetivos gerais do programa eram: (1) estabelecer métodos democráticos de patrocínio governamental das artes, (2) descentralizar a atividade artística em todo o país, (3) incentivar o surgimento de jovens talentos desconhecidos, (4) aumentar a valorização das artes pelo público em geral e (5) promover uma relação mais estreita entre o artista e seu ambiente social.
O PWAP foi encerrado em 1934 e substituído por dois programas independentes. O primeiro, novamente sob a direção de Edward Bruce, recebeu o nome de Seção de Pintura e Escultura (que mais tarde se tornou a Seção de Belas-Artes) e era uma agência permanente, não mais parte do fundo de assistência emergencial do Tesouro. A seção contratava artistas profissionais para decorar edifícios federais, e as encomendas de trabalhos eram organizadas por meio de concursos abertoss e anônimos. A ideia era gerar mais interesse pelas artes na sociedade.
O artista e muralista George Biddle escreveu em 1940: “Esse emprego de mais de 600 artistas plásticos em quase 800 cidades americanas não custou um centavo adicional ao contribuinte. Ela foi financiada com recursos aprovados pelo Congresso para a construção de edifícios públicos.” Biddle também observou que “a política de seleção de artistas por concursos abertos, somada à descentralização (inerente ao fato de o próprio programa de construção ser voltado quase inteiramente a cidades pequenas), é, ao meu ver, a maior contribuição e a influência mais sadia da seção”.
O segundo projeto, sob a direção de Holger Cahill, recebeu o nome de Federal Art Project (FAP, Projeto Federal de Arte). Criado para abranger belas-artes, arte pública, arte popular, artesanato, artes industriais e artes folclóricas, fazia parte da Work Progress Administration (WPA, rebatizada em 1939 como Work Projects Administration), uma agência do New Deal que convocou milhões de desempregados para trabalhar em obras públicas, como a construção de edifícios governamentais, rodovias e outras obras de grande escala. Um dos principais problemas da Seção de Belas-Artes era que os artistas frequentemente eram pagos em várias parcelas, e cada etapa precisava ser aprovada, fato que muitas vezes levava à falta de ousadia e comprometia o resultado dos murais. Sob o FAP, porém, cada artista participante recebia um salário, reduzindo a necessidade de supervisão.
Nas palavras de Cahill, “é função do nosso tempo organizar grandes programas culturais democráticos e participativos para restaurar a relação entre artista e público. O choque necessário para colocar o programa em andamento foi a Grande Depressão, que deixou claro que, a menos que a comunidade organizada interviesse, as artes entrariam em uma fase obscura da qual poderiam não se recuperar por gerações”.
Como demonstra George J. Mavigliano, o projeto foi dividido em quatro categorias:
* Belas-artes: murais, escultura, pintura de cavaletes, arte gráfica. O trabalho de murais teve a maior repercussão ou, nas palavras de Biddle, “onde quer que a arte mural tivesse alcançado sua expressão máxima, sempre houvera também uma religião universal —ou seja, uma fé ou propósito social comum que o artista havia compartilhado com todas as classes da sociedade”.
* Arte prática: pôsteres, fotografia, artes e ofícios, dioramas, cenários teatrais. Essa categoria incluiu o "Index of American Design", uma pesquisa enciclopédica sobre artes decorativas e folclóricas nos EUA no século 19. O projeto é composto de mais de 18 mil chapas que mostram o artesanato e os têxteis americanos.
* Serviços educacionais: galerias e centros de arte, ensino de arte, pesquisas e informação.
* Pessoal técnico e de coordenação.
A iniciativa mais importante de Cahill foi a criação de mais de cem centros comunitários. Nesses centros, ele reuniu diferentes gerações e colocou a arte ao alcance de muito mais pessoas. Como escreveu Mavigliano:
Os centros comunitários de arte ajudaram a jogar por terra a ideia esdrúxula de que a arte só podia ser apreciada por um grupo restrito de pessoas. Cada vez mais pessoas começaram a enxergar o valor da arte como um passatempo recreativo que formava um elo entre o artista profissional e o leigo, ampliando o escopo da arte na comunidade. Esses dois programas seriam um meio de introduzir a arte em muitas comunidades americanas onde antes ela não estava presente, nem existia interesse por ela.
Para Biddle, as realizações do Federal Art Project foram ainda mais importantes que as da Seção de Belas-Artes. O projeto empregou mais de 5.000 artistas e criou mais de 1.400 murais. Mais de 50 mil pinturas entraram para acervos públicos americanos, além de 90 mil gravuras, 3.700 esculturas e mais de 950 mil
Há uma teoria segundo a qual a arte sempre cuida dela mesma, de alguma maneira, como se fosse uma planta sem raiz que se alimenta dela própria em locais protegidos. Muitas pessoas se dispõem a acreditar que em um tempo como este, quando o mecenato das artes diminuiu para proporções infinitesimais, não é necessário que a sociedade organizada faça qualquer coisa de especial porque, aconteça o que acontecer, alguns artistas famintos, vivendo à míngua em sótãos, vão se encarregar de garantir que a arte não morra. É muito evidente que essa teoria não se sustenta (Holger Cahill em “New Horizons in American Art”, 1936)
Holger Cahill, que começou sua vida profissional como jornalista e inicialmente estudou economia com Thorstein Veblen, autor do livro legendário “The Theory of the Leisure Class” (1899), também estudou estética com Horace Kallen e filosofia com John Dewey (1859–1952). Ele então acumulou uma grande formação museológica, primeiramente no museu de Newark (onde foi mentoreado pelo diretor John Cotton Dana, patrono de projetos artísticos e comunitários), e depois no American Museum of Modern Art, onde trabalhou até tornar-se diretor do Federal Art Project, em 1935.
Como observa Mavigliano, Cahill se propôs a promover um novo movimento na arte americana. Seu programa de ação começou com a proposta de criar um fórum pelo qual a produção de artistas pudesse ser reintroduzida na sociedade mais ampla. Ele usou a filosofia de Dewey para amarrar as duas iniciativas, formando um todo coerente.
Mavigliano nos recorda o discurso feito por Cahill no 80º aniversário de Dewey, em que enfatizou como Dewey valorizava a possibilidade de ver arte no nosso cotidiano e de ligar a arte à sociedade. Para ele, a arte não deveria ser encarada como mero acréscimo à educação padronizada, mas como algo a ser vivenciado pela participação. Ou, em suas próprias palavras:
Com certeza a arte não é meramente decorativa, uma espécie de acompanhamento sem relação com a vida. Em um senso genuíno, ela deve ter utilidade; ela deve estar entremeada à própria essência e tessitura da experiência humana, intensificando essa experiência, tornando-a mais profunda, fértil, clara e coerente. Isso só pode ser realizado se o artista está atuando livremente em relação à sociedade e se a sociedade quer aquilo que ele tem a oferecer.
Cahill escreveu que a inspiração de Dewey, seu professor, veio “do fato de que as ideias filosóficas soem ser traduzidas em programas de ação ... o pensamento do filósofo acaba chegando à experiência comum de cada dia.”
Ele se inspirou no livro de Dewey, “Art as Experience” (1934), que se lê como um manifesto pela democratização da arte e que foi uma das grandes inspirações de meu projeto de exposição “Do It”. “Art as Experience” descreve como “o crescimento do capitalismo tem sido uma influência poderosa no desenvolvimento do museu como o ‘lar’ apropriado para obras de arte e na promoção da ideia de que elas estão separadas da vida comum”. Dewey queria recriar uma continuidade entre as formas de experiência refinadas e intensificadas que ele atribuía ao trabalho da arte e aos acontecimentos cotidianos que formam nossa experiência.
Como escreve Jillian Russo, Cahill também se inspirou no livro de Dewey “Democracy and Education” (1916), que resumiu sua posição contra o idealismo hegeliano, que supunha que as ideias fossem anteriores ao mundo material. Dewey, longe disso, era a favor do materialismo –a ideia de que o ambiente, o engajamento com o contexto, produz realidade e forma ideias.
Citando o próprio Dewey: “A primeira grande consideração é que a vida ocorre em um ambiente –não apenas dentro do ambiente mas em decorrência dele, através da interação com ele”. Russo destaca: “Para Dewey, a filosofia requer aplicação prática, testes e participantes ativos para implementarem reformas”. E foi isso o que fez Cahill no FAP, um laboratório prático, concreto e grande onde ele aplicou e propagou as ideias de Dewey.
Para Dewey, é apenas através de obras de arte que pode haver uma comunicação completa entre seres humanos e é apenas através da arte que podemos ter uma comunidade de experiências. Essa noção de uma comunidade de experiências nos leva a atravessar o mar em direção à Europa, onde nos anos 1920 e 1930, enquanto Cahill iniciava o experimento radical do FAP, Alexander Dorner era o diretor experimental do Museu de Hanôver. Forçado a abandonar a Alemanha para escapar dos nazistas, ele se radicou nos Estados Unidos, onde ficou amigo de Dewey, que prefaciou seu livro “The Way Beyond Art” (1947).
A importância de Dorner está em suas definições inovadoras do papel e funções do museu, de maneiras que permanecem relevantes até hoje: como laboratório, como usina energética, como Kraftwerk. Em diversas ocasiões ele falou ou escreveu sobre museus como sendo ou estando: em um estado de transformação permanente; oscilando entre objeto e processo (“a ideia do processo penetrou em nosso sistema de certezas”); um lugar com identidades múltiplas; um pioneiro –ativo, que não restringe sua ação; uma verdade relativa (não absoluta); baseado num conceito dinâmico de história da arte; mostras “elásticas”, ou seja, flexíveis no interior de um edifício adaptável; uma ponte erguida entre os artistas e diversas disciplinas científicas (“não podemos compreender as forças que atuam na produção visual de hoje se não examinarmos outros campos da vida”).
Dorner sabia que as exposições clássicas e tradicionais que dão ênfase à ordem e estabilidade não refletem nossas próprias vidas e ambientes sociais, nos quais vemos flutuações e instabilidade, uma multiplicidade de escolhas e previsibilidade limitada.
Depois de Pearl Harbor e do ingresso dos EUA na Segunda Guerra Mundial, o Congresso conservador passou a fazer oposição crescente aos projetos de arte do governo. Tinham sido cinco anos espantosamente produtivos de patrocínio das artes, resultando em milhares de obras de arte públicas. Milhões de pessoas assistiram a aulas de artes e ofícios nos 107 centros comunitários, que eram abertos a todos.
Os concursos anônimos, tanto regionais quanto nacionais, também criaram um senso de comunidade. Foram realizadas exposições vistas por milhões de pessoas, com muitas pessoas, em locais regionais em que não havia museus e que tiveram acesso a obras de arte originais pela primeira vez. As muitas iniciativas do programa abriram possibilidades de trabalho para artistas jovens em um ambiente de outro modo empobrecido, desencadeando uma explosão de talento criativo nas décadas seguintes.
Stuart Davis, Marsden Hartley, Arshile Gorky, Philip Guston, William de Kooning, Lee Krasner (para quem a WPA salvou sua vida), Jacob Lawrence, Norman Lewis, Alice Neel, Ad Reinhart, Mark Rothko, todos se beneficiaram do programa em um momento crucialmente precoce de suas carreiras, não obstante as condições dificílimas.
Hoje, neste momento de crise extrema no mundo, um tempo profundamente preocupante e precário para artistas e para todos, faz-se urgentemente necessário um projeto de estímulo à arte de escala semelhante à WPA. A ideia é altamente relevante ao momento atual, tanto em termos de beneficiar a economia quanto de assistir e cuidar de artistas. É especialmente importante neste momento que os museus pensem sobre como podem transcender suas paredes e aproximar-se de todos.
É nosso papel coletivo, como instituições públicas, apoiar os artistas e a cultura neste momento. Quando instituições de arte disponibilizam suas plataformas a artistas, muitos dos problemas mais graves do mundo podem ser estudados com honestidade e esperança. Se alguma vez houve um tempo em que o mundo necessitou de artistas, é agora.
Depois do vírus, quando o mundo estiver se reconstruindo, as cidades terão que dar apoio. As regiões terão que ajudar. Os países terão que ajudar. Os governos precisam ajudar a arquitetar e apresentar essa infraestrutura –a envolver suas comunidades em uma transformação que criará milhões de novos empregos e oportunidades de negócios.
Pensando em um novo New Deal e em como o programa de artes do governo de FDR poderia servir como uma ferramenta para hoje, é interessante conhecer o livro de Jeremy Rifkin “The Green New Deal” (2019). Nele, Rifkin propõe um plano urgente para fazer frente à mudança climática, transformar a economia e criar uma cultura verde, pós-combustíveis fósseis.
De modo semelhante à mobilização e ao grande programa federal do New Deal durante a Grande Depressão, que encontrou apoio em todos os partidos políticos e possibilitou a construção da infraestrutura para iniciar a Segunda Revolução Industrial, o Green New Deal vai gerar toda a eletricidade de fontes renováveis, vai criar empregos e promover pesquisas sobre a nova economia verde.
É importante afirmar que o momento atual é muito diferente dos anos 1930 e, como observa Rifkin, o que se propõe não é uma reprodução do New Deal de FDR, com o governo federal construindo e operando barragens gigantescas para gerar e distribuir hidroeletricidade barata em toda a América. Em vez disso, trata-se de um Green New Deal para o século 21, centrado em energias renováveis extraídas localmente e administradas por infraestruturas regionais que se conectam internacionalmente, como o Wi-Fi.
No século 21, todo Estado, cidade e país do mundo pode ser relativamente autossuficiente em sua geração de energia verde e sua resiliência. A infraestrutura da Revolução Industrial opera de modo mais efetivo e eficaz em escala lateral, quando ´se conecta com uma multidão de pequenos atores. O Green New Deal requer tais cooperativas de escala lateral, todas trabalhando para uma Terceira Revolução Industrial verde e inteligente, trabalhando com custos marginais quase zero, com pegada de carbono quase zero.
Outro predecessor interessante da discussão sobre como apoiar artistas no momento atual é o Artist Placement Group, de Barbara Stevini e John Latham, uma ideia concebida em 1965 pela qual cada corporação, empresa, fundação e também estrutura governamental (logo, tanto o setor privado quanto o público) seria obrigada a empregar artistas como agentes de transformação. Essa ideia parece mais relevante que nunca no clima atual.
Stevini e Latham dedicaram sua vida à criação de uma visão de mundo que unificasse a ciência e as humanidades. Eles acreditavam que o mundo só poderia ser transformado por aqueles que se dispõem e são capazes de conceber a realidade de maneira holística e intuitiva.
O APG foi uma iniciativa que se propunha a ampliar o alcance da arte e dos artistas na sociedade maior. O pouco-caso de Latham com as separações entre disciplinas era baseado numa “teoria do tempo plano”, uma filosofia do tempo que ele desenvolveu ao longo da vida.
A teoria propunha que nos deslocamos em direção a uma cosmologia baseada no tempo –alinhando estruturas sociais, econômicas, políticas e estéticas como uma sequência de eventos e um registro de padrões de conhecimento—no lugar de nossa visão de mundo sensorial e espacialmente dominada.
Acreditando que a visão linear e acumulativa do tempo e da história era uma farsa, ele propôs uma “estrutura de eventos” que reconfigura a realidade radicalmente, permitindo uma compreensão do universo que abrange todas as disciplinas juntamente.
Tive meu primeiro contato com a genialidade do trabalho de Latham e Stevini quando o artista Douglas Gordon me levou à Flat Time House, a casa deles em Londres, em 1994. A gravação dessa visita, que está em meu arquivo, começa com Gordon e eu num táxi a caminho do encontro com Latham.
Naquela conversa, Gordon explica como foi influenciado pela descrição feita por Latham do artista como uma “Pessoa Incidental”, uma figura cujo papel na sociedade é desenvolver novas maneiras de pensar, que fundamentava a missão do APG de situar artistas em posições influentes na sociedade.
Gordon estava especialmente atraído pela implicação de que designações e limites sociais são fluidos, que “nenhum de nos está especialmente atrelado ao tempo ou lugar em que se encontra hoje”. Trata-se de uma ideia radical porque ela ilustra que a transformação é possível e pode ocorrer em pouco tempo.
Quando visitamos Latham e Stevini, eles disseram, ecoando Levitt, que, se algum dia ocorresse uma crise social e econômica tremenda, a ideia do APG ganharia importância especial. Se cada organização governamental, cada estrutura corporativa de determinadas dimensões empregasse um artista, seriam criados empregos em número semelhante aos do New Deal de Roosevelt.
Sempre olho para artistas em busca de ideias sobre como moldar o futuro e como podemos ampliar sua autonomia de ação. Quero colocar em prática algumas das lições que aprendi com eles. Neste momento de crise, mais que nunca antes, precisamos das ideias, visões e perspectivas dos artistas sobre a sociedade, já que são frequentemente eles que têm as ideias mais importantes e prescientes.
Hans Ulrich Obrist, curador e historiador da arte suiço, é diretor artístico da Serpentine Gallery, em Londres, e autor, entre outros livros, de "Caminhos da Curadoria" e "Hans Ulrich Obrist - Entrevistas Brasileiras vol. 1", ambos pela editora Cobogó.
Tradução de Clara Allain.
maio 5, 2020
CORONAVÍRUS Brasil enfrenta duplo apocalipse com Bolsonaro e coronavírus, reflete Nuno Ramos, Folha de S. Paulo
CORONAVÍRUS Brasil enfrenta duplo apocalipse com Bolsonaro e coronavírus, reflete Nuno Ramos
Artigo de Nuno Ramos originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo em 3 de maio de 2020.
Para artista e escritor, impulso destrutivo do bolsonarismo torna urgente a politização da pandemia
[RESUMO] Revisitando a festa de seus 60 anos no início de março, em momento que já parece muito distante, artista e escritor, neste texto caleidoscópico, reflete sobre o bolsonarismo e a sobreposição do tempo da política e da pandemia no Brasil. Enfrentamos um duplo apocalipse ainda mais assustador por não sabermos se já se instaurou ou está por vir.
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Neste 5 de março, fiz 60 anos. Depois de muito tempo sem comemorar, dei uma festa consideravelmente grande no quintal aqui de casa, de onde escrevo este texto. Foi uma espécie de Baile da Ilha Fiscal particular.
Por um triz, não me tornei patrocinador de uma fonte trágica de contaminação. As fotos e os vídeos que ainda me mandam, com todo mundo abraçado, dividindo um copo, parecem de outra era ou planeta.
Que eu tenha entrado nesta categoria oficial, “idoso”, em sincronia perfeita com o fechamento epidêmico, é uma dessas ironias que trazem consigo todo o resto do pacote. Uma casa isolada em meio a uma pandemia tem mesmo um quê de asilo de velhinhos.
No entanto, há um duplo apocalipse rugindo lá fora. A hora em que inevitavelmente coincidiriam, em que o primeiro (o bolsonarismo) se renderia ao segundo (o vírus), unificando o horror, parece não chegar nunca, num sequestro permanente de significados públicos em que os motivos individuais (o “idoso” a que passo a pertencer) perdem qualquer relevância.
Mais: será mesmo que a grande cisão (esta que o baile anunciaria) já chegou ou estará ainda por vir? Qual degrau exatamente de nossa peculiar descida aos infernos alcançamos até aqui?
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Há um sentimento constante que me acompanha por todo o labirinto da casa —a raiva. Estou exausto de raiva.
A lenta e inexorável naturalização do absurdo em que a vida política brasileira se transformou, ao menos desde o impeachment de Dilma Rousseff, com um duplo twist carpado a partir da eleição de Bolsonaro, chegou, finalmente, à minha mais profunda intimidade. É no corpo, não na mente, que a sinto.
Sob o comando, e a ameaça, de dona Macroeconomia, essa rainha da “Alice no País das Maravilhas” mandando cortar todas as cabeças que vê pela frente, fomos emparedados a ponto de aceitar que um ser que limpa o nariz e em seguida estende a mão à população, durante a mais violenta pandemia desde a gripe espanhola, seja nosso presidente.
Além de dona Macro, foi também uma estranha balança, que punha este... —como chamá-lo?— numa ponta, e Lula ou o PT ou a esquerda ou o populismo ou “Moby Dick” ou o que fosse na outra, como se mensuráveis por um só mecanismo.
O que se naturalizou aqui foi a anomalia completa de uma das extremidades, o bolsonarismo, como parte do jogo. Não era.
Não foram apenas financiamento corrupto da vida pública nem irresponsabilidade fiscal —que teriam derrubado um presidente, mas não o próprio sistema democrático, entronizando seu pior inimigo— que nos trouxeram até aqui.
Fomos também vítimas de uma rainha criminosa-serial (“Cortem a cabeça dele!”), a quem ninguém lembrou de dizer que era, ela mesma, uma entre as demais cartas do baralho (como fizeram Alice e a atual pandemia), e da apropriação indébita de um instrumento arquetípico de justiça —uma balança abstrata, pendurada por toda parte, equalizando o que não podia ser equalizado.
*
Agora, aguente. Passeio entre o sentimento cosmopolita-viral que nos une a todo o planeta e a mediocridade provinciana, encarnada num maluco.
De um lado, o sofrimento italiano, por exemplo, me oferece um lugar. Gilberto Gil cantando “Volare” com a netinha. Pertenço àquilo. De outro, o rosto odioso num pronunciamento que não quer dizer nada, pois será desmentido daqui a duas horas em algum Twitter.
Tenho nojo até da contração facial, ela mesma autoritária. Entre a expansão piedosa, planetária, e a contração raivosa, local e claustrofóbica, tento acertar meu passo.
*
Em primeiro lugar, como chamá-lo? Não quero brindá-lo com o pronome das eleições —ele, não—, que me parece quase nobre.
Sou da época em que um locutor radiofônico usava esse mesmo pronome quando Pelé pegava na bola: ele.
Como chamá-lo, então? Tirano? Imbecil? Genocida? Há uma casualidade em seu percurso que a facada, mais do que qualquer outro episódio, encarna —este poderia-não-ser-assim enfumaça seu contorno e torna difícil a nomeação.
O pesadelo de tê-lo por presidente continua inacreditável: como nomear aquilo em que não se acredita?
*
Que Bolsonaro quer o poder parece óbvio. Afinal, fala em reeleição desde o segundo dia de mandato e pensa num golpe desde o primeiro, chegando a implorar por cenas de rua, à la Chile, para promovê-lo.
Porém, tenho que confessar minha dificuldade em entender para que quer o poder. Não consigo organizar direito isso em minha cabeça. Para que o capitalismo mais descontrolado impere, os ricos fiquem ainda mais ricos e os direitos dos deserdados desapareçam de vez?
Com certeza, mas é preciso confessar que haveria formas mais precisas e econômicas de fazê-lo. O próprio vírus lhe ofereceu uma oportunidade de acesso a grupos que lhe renderiam um verdadeiro passe livre, imperial e reformista. Escolheu, no entanto, apostar exclusivamente em seu próprio grupo identitário, perdendo os demais.
Para promover, então, o retorno de valores arcaicos ou tradicionais (família, religião)? Porém, não há nada tradicional num incendiário de quartéis ou num defensor do estupro, muito menos naqueles que o cercam.
Sua ideia de poder parece, antes de mais nada, a de sacanear e agredir alguém, um inimigo verdadeiro ou imaginário —ou o primeiro que passar. É assim que o bolsonarismo entende o mundo: alguém precisa urgentemente sofrer, perder, apanhar. Ser caluniado. Morto.
Há algo pré ou pós político aqui (ou, se se quiser, num sentido mais antropológico, de essencialmente político) —a simples potência de agressão, isolada e disfuncional, perturbando a todos o tempo todo, pensando apenas na própria reprodução e ameaçando por dentro os projetos que veicula.
Difícil formular isso, trazer esse bicho às palavras. Levado até o fim, deixará de pé um único e último otário, o próprio Mito, os olhos voltados para trás, como o anjo de Benjamin, mas, ao contrário dele, rindo da merda que fez.
*
Tentei o Hermógenes. Não é o Hermógenes.
*
O tempo da pandemia, entre nós, é o tempo mesmo da política. São idênticos. Claro que há, em qualquer país, contágio entre as duas coisas, mas aqui sobrepõem-se à perfeição.
Pois é próprio de um impulso como o do bolsonarismo entrar nas coisas o tempo todo e sempre pelo revés, pelo ralo, pelo incêndio, pelo tornar pior e mais violento. Não há hiato, não há pausa, e a identidade em seu sentido mais pobre, o permanecer assim, o reaparecer igual, é seu núcleo.
Ao invés de despolitizar o vírus, portanto, será preciso, de nosso lado, politizá-lo loucamente. E não é para fazer isso depois, quando a quarentena terminar (essa miragem). É agora. A luta mais chocante está acontecendo neste exato momento —pessoas são mandadas à morte.
Esses grandes sacanas, esse combo de ressentimento popular com sadismo de elite, não para nem vai parar nunca. Sofrem, como os zumbis dos filmes B, de uma fome que não pode ser saciada.
Nós é que temos de pará-los, mesmo fechados em casa. Nossa quarentena não deve ter nada de doméstica. Não pode ser feita de minisséries, leituras de Proust, cuidados com orquídeas. Nossa varanda deve se transformar, não sei como, numa arena pública.
*
Como reagir a tamanha falta de vergonha, que começa por chamar esse mico de Mito? Seria um Trickster, então, uma dessas divindades perversas, um Hermes ou Loki, que pousou em Brasília?
Claro que não. Pois não há uma “inteligência astuciosa” aqui, uma Métis grega —apenas a luz branca da violência iluminando a triste cena que ela mesma cria.
Pois o patrimônio político de Bolsonaro não é propriamente político, é a violência estrita. Sua entronização, no limite, vem do crescimento progressivo, até 63 mil por ano, dos mortos por assassinatos que assombraram, por mais de duas décadas, os governos democráticos, sem que nada fosse feito. São esses mortos que se cansaram de nós, ligaram o foda-se e entronizaram seu próprio carrasco.
Nesse sentido, há muito mais, e muito menos, em Bolsonaro que a execução extremada e desvergonhada do projeto da direita mais perversa (flexibilização radical dos direitos trabalhistas, culpabilização e abandono permanente dos excluídos à própria sorte etc.).
Isso tudo ocorre, e em níveis altíssimos, pois não se perderia uma oportunidade dessas. É preciso reconhecer, porém, que Bolsonaro também confunde esse projeto e que jogou fora a oportunidade de maximizá-lo ainda mais.
*
Até a pandemia, creio que o país se dividia em três fatias: 1) os bolsonaristas, para quem o mundo inteiro se resume a: a) bolsonaristas, b) comunistas, c) corruptos; 2) os naturalistas, para quem o bolsonarismo seria administrável, em especial se dona Macroeconomia nos encarasse com simpatia; 3) os catastrofistas (e eu entre eles), para quem a destruição universal e minuciosa que o bolsonarismo pressupõe seria sempre impossível de pagar.
Bem, ainda que levemente declinante, o primeiro grupo mantém-se estável, independentemente do que o presidente faça. O segundo, depois da pandemia, é que vai migrando velozmente para o terceiro grupo. Alguma coisa meio estranha no jeito dos zumbis andarem parece afinal ter chamado a atenção dos súditos da rainha Macro.
O bolsonarismo simplesmente não funciona. Tem dificuldade para amarrar o sapato, chamar um táxi, assinar o nome. Que dirá de organizar uma prova do Enem. Seu barato, de fato, não é funcionar, mas destruir, caluniar, mentir. Não dá para contar com ele.
Assim, bastava que naturalistas e catastrofistas negociassem suas versões de nossa história recente e mandassem essa excrescência para seu devido lugar —aqueles 20% de fascistas estridentes que nunca alcançam o centro do poder.
Confesso que acreditei, durante as últimas eleições, que isso fosse possível (e não foi). Além do mais, exatamente porque essa excrescência alcançou o poder, o antigo país não está mais disponível. Foi profunda e irrevogavelmente transformado pelos 16 meses de bolsonarismo.
A mitologia de dois gêmeos inimigos (PSDB e PT), servidos por um primo cruzado tosco (PMDB) e lutando para negar a mútua identidade, já não serve. Perdemos seus defeitos, mas, também, e principalmente, suas virtudes.
Pois há um patrimônio unificado da Nova República, de Itamar a Dilma, que estamos passivamente deixando rifar, já que ninguém o reivindica em sua totalidade —o SUS, a universalização do ensino, a estabilização da moeda, o Bolsa Família, o acesso de etnias minoritárias ao ensino superior, a potencialização do Sistema S, a demarcação de terras indígenas.
Todos com problemas em escala atlântica, mas incrivelmente generosos. Todos dependentes de instituições intermediárias, famosas ou anônimas, como um halo de bondade que mantém o país de pé, e que o bolsonarismo vai cuidadosamente aniquilando. Há algo comum a esse patrimônio que, por isso mesmo, ninguém chama a si.
Pois é difícil vencer a pergunta fatal, que divide irremediavelmente os dois grupos: como pudemos chegar a uma barbaridade dessas? Difícil ignorar a potência deste ato expiatório —culpar— e simplesmente seguir adiante, colher os destroços pelo chão e reconstruir o país.
Essa resposta teremos de dar, antes de entrar em qualquer palco: vamos para o pau expiatório (como faz Ciro Gomes) ou, diante de uma emergência viral-política muito maior, dormir com o antigo inimigo (mas não com o atual)?
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“Que país é este?” ou “Brasil, mostra a tua cara” era o que a gente ouvia muitas vezes numa pista de dança, nos anos 80, quando eu tinha 20 anos.
Hoje, no quintal da minha quarentena, o país chega a mim sob a forma exclusiva da distância e do longínquo, na vaga textura de um grito batendo contra o arrimo do muro. É deste lugar em suspenso, sem poder sair de casa, que recuso, por falsa, a cara que ele me mostra, faz mesmo questão de mostrar, sem vergonha nenhuma.
Algo daqueles quadros de De Chirico, com suas locomotivas perdidas numa espacialidade enorme, vem à minha memória. O “como é doce a perspectiva!”, com que Paolo Uccello se referia à espacialidade renascentista, aparece aqui transformado num esquema vazio de onde qualquer movimento foi excluído e em que os passos humanos, se ensaiados, perderiam toda a potência.
É o oposto exato do futurismo de Marinetti, aquele entusiasmo cinético que leva, no entanto, à guerra. O mundo de De Chirico é um “mundo sem nós” —por sua fumaça imóvel é mais difícil o fascismo entrar.
Porém, esse eco que bate no muro, onde procuro alguma coisa que faça sentido, será atropelado em breve pela gritaria da TV, do UOL, da frase aflita, da boataria. Por isso sei que devo me orgulhar do que não sei, e essa frase é mais preciosa para mim do que sua banalidade socrática.
Ainda que em regime de urgência, devemos ter paciência com nossa dificuldade de formulação. Quem interpreta o Brasil hoje, e com boçalidade inédita, são os próprios zumbis. Têm explicação para tudo. O atirador da Virgínia manipula melhor que ninguém o código Brasil, que lhe serve de fundo a todas as brutalidades.
Há um maoísmo às avessas nessa gente, começando tudo do zero. Pois a eles basta inverter. Vivem de um parasitismo por inversão, mas ainda simétrico, sem criação nenhuma. “A escravidão fez bem aos povos escravizados”, por exemplo.
Precisamos, em contraposição, honrar certo silêncio, levar a sério estes amuletos da empatia linguística: talvez, veja bem, você não acha que etc. Os índios da América do Norte referiam-se aos brancos como “uma espécie zoológica que faz uso imoderado da fala” (Lévi-Strauss, “A Oleira Ciumenta”). Os bolsonaristas são herdeiros desses invasores falastrões. Hoje, a estridência é bolsonarista.
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Se algo em nossa cultura “pegou” o bolsonarismo e adjacências terá sido o cinema marginal, 50 anos atrás, na virada das décadas de 60 e 70 —um período de nosso cinema, no entanto, essencialmente estridente.
A falta de horizonte explicitamente político (ao contrário do pai fundador, Glauber Rocha); o consumo como dejeto, quase lixo; a tensão e a duração de cada plano, como se o filme acabasse a cada vez que um plano termina; a coincidência meio documental do tempo do plano com o tempo do real; a violência como forma genérica do filme —tudo isso foi compondo um corpo de resistência inconfundível.
Se as personagens giram e giram numa loquacidade sem fim é porque o chão coletivo, político, simbólico, o que seja, dissolveu-se debaixo delas com o golpe dentro do golpe (o AI-5) e também com o milagre econômico. Gritam o próprio nome para que não derretam à nossa frente. Presas num autocircuito de gestos, vestuário, frases, alcançam uma continuidade que lhes falta historicamente.
“Eu fracassei.... tinha de avacalhar”; “A solução para o Brasil é o extermínio, o extermínio total”, diz o Bandido da Luz Vermelha. Tudo foi traído, e ainda num clima nacional megalômano (com dona Macroeconomia uivando: “Milagre! Milagre!”). Matar a família (“Matou a Família e Foi ao Cinema”); compartilhar a mulher (“A Mulher de Todos”); fundir o consumo ao crime (“O Bandido da Luz Vermelha”); a própria tortura (“Hitler Terceiro Mundo”) —todos os valores foram examinados, devastados, parodiados, furados com faca e muito, muito sangue.
São filmes que tomam, assim, essa virada de década pelo que de fato era: uma (sedutora) fraude. A partir dessa fresta, o cinema marginal liberou sua energia empoçada, superando contradições entre a alta e a baixa cultura, o feminino e o masculino, o profundo e o superficial, o irresponsável e o político, em termos diferentes do que tinha feito o tropicalismo. Em termos inegociáveis.
É esse o tônus que volta a nós, agora. Como representar esse bando de abutres, ou mesmo diante deles? Por essa fresta, respondem esses filmes, e somente por ela, nos termos do nosso próprio contrato, é que o real poderá um dia nos recompensar.
Com Luiz Gonzaga, por exemplo, cantando “Boca de Forno” no alto do morro (“Sem Essa, Aranha”, 1970), num “travelling” interminável. Será que o cinema brasileiro alguma vez filmou tamanha realeza e alegria?
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Alonguei-me ao evocar o cinema marginal, talvez porque nessa evocação haja algo paradoxalmente tranquilizador: para ele, o apocalipse já tinha se instaurado. Havia um chão “negativo” diante de si, dado pelo AI-5, a fossa mais profunda do inferno de 64, e pelo milagre econômico, este aliciador dos condenados.
E nós? Já atingimos o fundo? Pois, para tornar mais pessimista um mote lindo de Arnaldo Antunes, o real resiste, sim, mas também do lado de lá. Até onde vai o bolsonarismo?
No caso do primeiro apocalipse, a pandemia, há alguns termos fixos que organizam a cena—isolamento social, número de mortos etc. Porém, o que dizer deste nosso segundo apocalipse, exclusivo e particular? Tanques ocuparão as ruas? Haverá impeachment? Veremos F-10s a toda velocidade disparando arminhas e armonas contra os prédios de Higienópolis? Coveiros em greve? Milicianos impondo quarentena? Estamos durante, antes ou depois do nosso destino?
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Li na internet a seguinte pergunta: como um fascista mente?
Bem, ele não mente —desmente. Ele nega o que disse e nos acusa de tê-lo dito por ele. Ele cria uma câmara de ecos em que a energia do que disse, do seu “ato” verbal, já se perdeu, e é nessa perda mesma que ele investe.
Um fascista mente sem gramática, não por ignorância (errar a gramática não é nunca um problema), mas porque precisa de uma dispersão linguística que beire o ininteligível e onde, embora o sentido do que diz seja claro (por exemplo, “dar um golpe”), o contrário também estará dito, numa frasezinha lateral e aparentemente sem sentido, para que possa ser resgatada, caso necessário. Mais do que de falsidade, a mentira fascista é um caso de covardia.
Lembro de um trecho de um ensaio famoso de Lévi-Strauss (“Introdução à Obra de Marcel Mauss”), em que ele afirma que a linguagem teria nascido de uma só vez —haveria, por isso, e para sempre, um excedente do significante sobre o significado (mais possibilidades de significação do que significados efetivamente adquiridos), numa “servidão de todo pensamento finito mas garantia de toda arte, poesia, invenção mítica”. A mentira fascista é o contrário disso. É o aprisionamento desse significante numa câmara onde, como pássaros batendo contra o vidro, os significados repetem-se sem parar, até deixá-lo exausto, em choque.
*
Há uma figura mítica, telúrica, que atravessa as mais diversas culturas —o anão sem ânus, espécie de titã da retenção. Defecar é, em alguma medida, separar-se de si, e é isso o que essa figura problematiza.
Embora liberadora do grotesco, a energia do bolsonarismo vem dessa mesma região. Pois esse festim espalhafatoso esconde, como mostra a comparação com o cinema marginal, o seu avesso. É para reter, prender, conter, sob um escombro qualquer de autoridade, que ele veio ao mundo.
Que Bolsonaro não tenha mostrado seu sangue depois da facada, apenas seus dejetos intestinais, é prova desse pertencimento. Foi ao revelar publicamente, num saquinho de colostomia, a matéria de que é feito, que Bolsonaro, fugindo aos debates televisivos (a um tipo qualquer de logos, digamos), firmou-se país afora. A facada trouxe à luz o que não conseguia sair por falta de ânus. Não o sangue vermelho dos mártires, mas o marrom de um dejeto intestinal. Bolsonaro é um anão sem ânus.
SENTEM-SE E NEGOCIEM
À vontade, velhas raposas prateadas.
Vamos emparedá-las num
[palácio esplêndido
Com comida, vinho, boas camas e fogo
[...]
Aqui fora, no frio, esperaremos nós,
O exército dos mortos em vão,
Nós do Marne e de Montecassino,
De Treblinka, de Dresden e Hiroshima.
[...]
Ai de vocês se saírem em desacordo:
Serão esmagados pelo nosso abraço.
Somos invencíveis porque vencidos.
Invulneráveis porque já extintos:
Nós rimos de seus mísseis.
Sentem-se e negociem
Até que suas línguas sequem:
Se persistirem o dano e a vergonha
Nós as afogaremos em nossa podridão.
*
O poema é de Primo Levi (utilizei a tradução de Maurício Santana Dias, em “Mil Sóis”, ed. Todavia, 2019). Diante do que parece uma negociação política (um tratado de limitação de armas atômicas?), Levi convoca os mortos. São eles que oferecem aos negociadores cama, comida, calor. São eles também que mostram paciência, como simpáticos tutores.
O pressuposto do poema é que os vivos, nesse caso os políticos, estão inteiramente em suas mãos. São aqueles “invencíveis porque vencidos / invulneráveis porque já extintos” que dão as cartas. Mas se algo sair errado... tomem cuidado conosco... serão esmagados por nosso abraço.
Chegou a hora de o Brasil convocar seus mortos. Não os mais famosos, as pessoas exemplares, os santos, as figuras históricas, aqueles cujas biografias são lembradas nos jornais, em nomes de rua. Involuntariamente, esses já pertencem, estátuas de bronze em plintos de pedra, ao fio de horrores que nos trouxe até aqui.
Precisamos dos mortos anônimos, recentes, mandados por seu presidente aos hospitais sem leito, para que morram afogados numa maca. Precisamos de cada criança levada por uma bala perdida, a quem ninguém lembrou de explicar o que quer dizer essa palavra, perdida. Precisamos de cada cabecinha sob a mira oficial de um fuzil. Precisamos dos mortos por motivo fútil —por um desconhecido, um vizinho, um rival no trânsito, um ex-amigo, um parente, a quem pareceu tão “natural” fazer isso.
A banalidade que alcançamos agora não é a do mal, mas a da morte mesma. Precisamos da indiazinha contaminada pelo vírus que o pregador trouxe na Bíblia. E se não nos comportarmos à altura, se não fizermos o que devemos fazer (e com certeza não estamos fazendo), que venha o abraço de podridão dessa gente.
Nuno Ramos, artista plástico e escritor, é autor de ‘Ensaio Geral’ e ‘O Mau Vidraceiro’, entre outros livros.
maio 4, 2020
Galerias se unem contra a feira SP-Arte para reaver dinheiro de edição cancelada por Clara Balbi, Folha de S. Paulo
Galerias se unem contra a feira SP-Arte para reaver dinheiro de edição cancelada
Matéria de Clara Balbi originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 30 de abril de 2020.
Evento acusado de recusar negociações anunciou que ficaria com parte dos valores pagos, mas afirma estar dialogando
Cerca de 80 das 159 galerias de arte e design que participariam da SP-Arte neste ano se uniram para exigir a devolução de seus investimentos na feira, suspensa por causa da pandemia do novo coronavírus.
Em comunicado enviado no início do mês, a SP-Arte tinha informado que só devolveria aos expositores um terço da quantia que eles deviam –os outros dois terços seriam usados para pagar pela montagem do evento, em curso quando ele foi cancelado, e para adiantar o aluguel de um estande no ano que vem, respectivamente.
Uma participação na feira começa nos R$ 50 mil e pode ultrapassar os R$ 100 mil. Na avaliação dos galeristas, dois terços de quantias dessa grandeza podem significar a sobrevivência ou não de muitas casas durante a pandemia, em especial daquelas menores.
Além disso, eles dizem que, num cenário de incerteza como o atual, não faz sentido oferecer como compensação um desconto numa feira futura. "As pessoas não sabem se vai ter feira ou se estarão vivos no ano que vem", diz Paulo Kuczynski, do escritório de arte de mesmo nome.
As negociações com a SP-Arte são conduzidas por duas entidades de classe, a Abact, Associação Brasileira de Arte Contemporânea, e a Agab, Associação de Galerias de Arte do Brasil. Presidente da primeira, Luciana Brito conta que as conversas começaram há exatas três semanas, assim que a notificação da SP-Arte chegou.
Então, elas tinham oferecido que apenas as casas mais robustas tivessem uma parte do investimento retido. Enquanto espaços menores, considerados mais vulneráveis à crise do coronavírus, seriam eximidos de qualquer pagamento, os de arte contemporânea e do mercado secundário, que lida com trabalhos vindos de coleções anteriores, pagariam 5% e 10%, nesta ordem.
Diante da recusa da SP-Arte de avançar nas negociações, no entanto, a proposta caiu. Agora, segundo Brito, a conversa foi assumida por advogados.
Diretor da Agab, Ulisses Cohn afirma que o imbróglio gira em torno de uma questão conceitual. Enquanto a feira enxerga as galerias como sócios que, portanto, teriam que tomar parte no prejuízo, elas, por sua vez, alegam que são clientes de uma empresa independente.
Outros galeristas criticam ainda a forma como a SP-Arte tem conduzido a situação. Além da falta de transparência em relação a valores —alguns expositores afirmam desconhecer, por exemplo, o tamanho do prejuízo ocasionado pelo cancelamento—, sua diretora, Fernanda Feitosa, é vista como intransigente, irredutível.
Em nota, Feitosa afirmou que os números que concernem ao cancelamento foram expostos às entidades Abact e Agab. Também disse que a qualificação de sua conduta como inflexível "não procede", e lista as quatro reuniões realizadas entre as partes, além de contatos nesta semana como prova disso. "O tema é complexo e requer múltiplas interações tanto nossas como de nossos assessores."
Enquanto isso, um galerista que preferiu não se identificar afirmou que a diretora da SP-Arte está negociando individualmente com espaços menores e oferecendo devolver parte do dinheiro deles de volta. A estratégia é vista por ele como desleal com o restante da classe, que negocia como um bloco.
Sobre a acusação, Feitosa respondeu que, em respeito ao pedido de certos galeristas e das associações, os diálogos estão se dando com os interlocutores das entidades. Mas, continua, "não irei me omitir de conversar com clientes e amigos quando procurada, como é muito comum", embora ressalte que nenhuma dessas conversas constitui um processo de negociação.
"Desde que criamos a SP-Arte, sempre balizamos nossas condutas e ações dentro da absoluta legalidade, e não seria nesse momento extremo de crise, que afeta a todos, que nos afastaríamos desses valores", afirma a diretora em nota.
"Reforço que tendo em vista nosso comprometimento com nossos clientes e com o setor, estamos dispostos e engajados para discutir formas de composição para mitigar os prejuízos de todas as partes, continuamos nessa incessante busca de uma alternativa que vise conciliar os interesses de todos, principalmente os mais vulneráveis, que sofrem com esse momento tão duro e que atinge a sociedade como um todo."
"É uma coisa arbitrária o que ela está fazendo. Todas as feiras do mundo assumiram as perdas e devolveram o dinheiro", diz Luisa Strina, uma das mais poderosas do mercado de arte nacional. Ela menciona a Art Basel que, em nota enviado no início da semana, garantiu que devolveria o dinheiro dos expositores integralmente caso nenhuma de suas feiras deste ano venha a acontecer.
"O que a feira está deixando de perceber é que, ao não retornar esse dinheiro, ela põe em risco não apenas a sobrevivência desta ou daquela galeria, mas de toda uma cadeia alimentar que vai de vendedores a artistas", afirma Thiago Gomide, da Bergamin & Gomide. "Por mais que a feira esteja numa situação difícil, ela precisa pensar no setor como um todo. Porque pode ser que no ano que vem não haja mais cem galerias, mas só 60."
"Infelizmente, parece não haver a compreensão de que uma feira só existe em função das galerias", diz Karla Osorio, da galeria de mesmo nome, em Brasília. "Nesses 15 anos de existência, a SP-Arte conseguiu uma coisa impensável, que foi a união do setor. A pena é que seja contra ela. Nossa esperança é de que isso seja percebido a tempo de ser resolvido em benefício de todo o setor."
É a esperança também daqueles à frente das negociações, os presidentes da Abact e da Agab, que afirmam querer que ela continue como um dos pilares do cenário artístico do país. Brito diz inclusive que anseia por uma resolução do conflito já na semana que vem.
Caso o embate se estenda, no entanto, profissionais do setor temem que ele prejudique o clima da próxima feira, contaminando tanto a vontade dos galeristas de construir estandes vistosos quanto o apetite dos colecionadores.
Sem falar que, por causa da crise do coronavírus, é possível que a feira já saia esvaziada no ano que vem. Luisa Strina, por exemplo, afirma que diminuirá de oito para dois o número de eventos do tipo de que participará. "Eu vou fazer a Art Basel e outra feira onde sou bem tratada."
Projetos lançados durante a pandemia bagunçam a lógica do mercado de arte, Folha de S. Paulo
Projetos lançados durante a pandemia bagunçam a lógica do mercado de arte
Matéria originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 1 de maio de 2020.
Iniciativas como 300 Desenhos e Quarantine promovem compras às cegas para ajudar artistas e organizações
Um mês e meio de pandemia bastou para o campo das artes criar uma série de iniciativas inovadoras, que buscam não só fortalecer o próprio setor como as comunidades mais vulneráveis à Covid-19.
Só nesta sexta (1º), foram lançadas duas delas.
A primeira é a 300 Desenhos, que convidou 300 artistas a doarem um desenho em formato de uma folha A4 cada um. Ao misturar nomes iniciantes e consagrados —participam Adriana Varejão, Ernesto Neto e Jac Leirner, por exemplo— ele anula as regras tradicionais do mercado de arte, em que o preço dos trabalhos depende fortemente do nível do reconhecimento do artista.
Afinal, por ali, todas as obras têm um valor único, R$ 1.000, muito abaixo do que costumam custar peças de medalhões como os já mencionados. Ao mesmo tempo, é impossível selecionar o desenho a ser comprado. A escolha é aleatória, realizada por um algoritmo.
A campanha vai até o dia 10 de maio, e o dinheiro arrecadado será doado a três organizações, a Apib, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a Habitat Brasil, de construção e melhoria de residências, e a Cufa, a Central Única das Favelas, que atua em comunidades e periferias de todo o país.
O segundo projeto é o Partilha, mais voltado para o mercado de arte. Nele, 17 galerias lançam uma seleção de obras vendidas em condições especiais —a cada aquisição no mês de maio, o comprador ganhará um crédito de igual valor para novas aquisições de outros artistas da mesma galeria.
São elas a Aura, a B_arco, a C.Galeria, a Casanova, a Desapê, a Eduardo Fernandes, a Janaina Torres, a Karla Osorio, a Mamute, a Mapa, a Lume, a OMA, a Periscópio, a Sé, a Soma e a Ybakatu.
Por agora, o objetivo é manter os profissionais que atuam no setor —que vão de artistas a montadores, fotógrafos e técnicos— ativos. O projeto também diz que doará recursos para instituições filantrópicas como Casa Chama, Lá da Favelinha, Lanchonete, Por Nossa Conta e Salvando Vidas.
Lançado já há alguns dias, o Quarantine, pensado pelas artistas Lais Myrrha e Marilá Dardot, pela crítica Cristiana Tejo e por Julia Morelli, fundadora da plataforma 55SP, tem uma lógica parecida com a do 300 Desenhos.
A iniciativa convidou mais de 40 artistas em diferentes momentos da carreira para colaborar com trabalhos —há desde bastiões da arte contemporânea nacional, como Lenora de Barros e Paulo Bruscky, a artistas jovens, menos conhecidos.
As obras, que custam R$ 5.000 cada uma, são compradas às cegas, escolhidas a partir do título e do autor. Então, são enviadas digitalmente e baixadas, impressas ou executadas pelos próprios compradores. A cada venda, o dinheiro é distribuído de forma igualitária entre os participantes e partilhado com uma organização civil que atende artistas transgênero e travesti, a mesma Casa Chama apoiada pelo Partilha.
300 DESENHOS
Quando A partir de sexta (1º). Até 15/5
Preço R$ 1.000
300desenhos.art
PARTILHA
Quando Até 31/5
www.instagram.com/p.art.ilha
QUARANTINE
Preço R$ 5.000
www.55sp.art/quarantine
Galerias e artistas se unem em ações virtuais e colaborativas durante a quarentena por Júlia Corrêa, Estado de S. Paulo
Galerias e artistas se unem em ações virtuais e colaborativas durante a quarentena
Matéria de Júlia Corrêa originalmente publicada no jornal Estado de S. Paulo em 1 de maio de 2020.
Iniciativas de galerias e artistas buscam alternativas para enfrentar as dificuldades impostas pela pandemia
Desde que o coronavírus avançou no Brasil, instituições de arte tiveram de se reinventar e intensificar estratégias digitais. Diante desse cenário, as galerias, cuja lógica difere da dos museus, por dependerem principalmente da venda de obras, têm se desdobrado para conseguir manter a fidelidade do público, garantir a sua sustentabilidade financeira e até mesmo ajudar no combate à pandemia.
Muitas delas têm unido forças em diferentes projetos que estão sendo lançados nos últimos dias. É o caso da P.art.ilha, rede de artistas, galerias e agentes culturais de todo o País, que se juntaram para sensibilizar colecionadores e atrair novos públicos por meio de iniciativas online coordenadas. As 17 galerias participantes são conhecidas por apostarem em projetos artísticos inovadores e experimentais. Entre as de São Paulo, estão nomes como Aura, B_arco, Janaina Torres, Lume e Sé.
A primeira ação será lançada nesta sexta-feira, 1º de maio, e envolve a divulgação de uma seleção de obras de arte, de nomes como Matheus Chiaratti, Andrey Zignnatto, Osvaldo Gaia e Vania Toledo, que serão vendidas com condições especiais. Cada aquisição realizada no mês de maio garante ao comprador um crédito de igual valor para adquirir obras de outros artistas da mesma galeria. Além de estimular a cadeia criativa, a proposta também tem viés beneficente: parte dos recursos será destinada a instituições sociais como a Salvando Vidas e a Por Nossa Conta, de São Paulo, e a Lá da Favelinha, de Belo Horizonte. As informações serão divulgadas na página do Instagram @p.art.ilha.
Na avaliação de Bruna Bailune, fundadora da galeria Aura e uma das idealizadoras da rede, as transformações do momento podem vir para o bem. Apesar da redução de vendas provocada pela pandemia, ela vê o cenário com otimismo, pois trouxe uma conexão inédita entre galeristas e artistas. “Os grupos que estão surgindo são um indício de que talvez o nosso modo de fazer as coisas não vinha sendo o melhor e de que podemos repensá-lo juntos. No dia a dia, ficamos dispersos, fixados em buscar as nossas próprias metas. Nosso sistema já estava com muitas falhas, e agora é hora de todo mundo olhar com atenção para sairmos mais forte dessa”, reflete ela.
Criatividade em isolamento. Uma iniciativa semelhante foi idealizada pelas artistas Lais Myrrha e Marilá Dardot, pela curadora Cristiana Tejo e por Julia Morelli, fundadora da plataforma 55 SP. Trata-se do Projeto Quarantine, lançado em 13 de abril. Marilá e Cristiana moram em Portugal e estavam no Brasil em março, até poucos dias antes do início da quarentena, quando visitaram a exposição de Hudinilson Jr., então em cartaz na Pinacoteca. No retorno, inspiradas pela “arte postal” do artista, elas tiveram a ideia de criar o projeto, adaptando o conceito para o modelo virtual.
A partir dessa proposta, 45 criadores de diferentes regiões do País foram convidados a produzir obras durante o período de confinamento, com os materiais e instrumentos que tinham disponíveis. Entre desenhos, gravuras digitais, vídeos e fotografias, a ideia é que elas possam ser enviadas digitalmente, considerando também as condições de isolamento do comprador, que recebe instruções de como executá-las.
De nomes como Ana Lira, Daniel Lie, Guto Lacaz, Janaina Wagner e Romy Pocztaruk, os trabalhos são vendidos pelo mesmo valor (R$ 5 mil), que, depois, é dividido igualmente entre todos. Uma cota ainda é revertida para o fundo emergencial da Casa Chama, também contemplado pela P.art.ilha. As obras estão à venda na plataforma 55SP (55sp.art/quarantine).
“É um experimento artístico. A diferença é que é um gesto coletivo, igualitário e distributivo para este momento de pandemia”, explica Julia Morelli, que, assim como Bruna, considera que é uma boa hora de repensar os modelos tradicionais do mercado de arte. “Foi muito gratificante reunir todos os artistas rapidamente, eles foram muito receptivos. Agora, já há outros pedindo para participar e estamos pensando até em novos formatos”, conta Julia.
Focada exclusivamente na filantropia, há ainda a campanha Arte Contra a Covid-19, que reúne as consagradas galerias A Gentil Carioca, Almeida & Dale, Fortes d’Aloia & Gabriel, Kogan Amaro, Leme, Luisa Strina, Luciana Brito, Mendes Wood DM e Millan. Para essa iniciativa, artistas e galeristas doaram obras para serem comercializadas com valor reduzido em 25%. O montante arrecadado será doado integralmente a instituições sociais como a Associação Civil Ânima e a Associação Cultural Lanchonete Lanchonete.
Estratégias online. Mostras virtuais, lives com artistas e podcasts estão entre as apostas das galerias de arte, incluindo aquelas que não integram essas redes colaborativas. É o caso da Galeria Almeida Prado. “Decidi fechar temporariamente a galeria assim que se confirmaram os primeiros casos no Brasil. Ficaria muito arriscado continuar trabalhando, principalmente nos fins de semana, quando o fluxo de turistas é sempre maior”, relata o galerista Fábio Almeida Prado.
Duas exposições estavam previstas para ocorrer no local no primeiro semestre. Uma delas seria de Lêda Watson, especialista em gravuras em metal. Como a artista já tem mais idade, a realização da mostra agora é incerta. “Saúde em primeiro lugar”, diz o galerista. A outra mostra seria uma coletiva com artistas ligados à arte urbana. “O tema ainda não tinha sido definido, mas agora ficou fácil saber qual será”, diz Fábio, referindo-se, claro, à pandemia.
Enquanto não é possível estabelecer novas datas para essas exposições, ele convidou artistas que representa, como Clarice Gonçalves e Marcelo Jorge, para apresentarem seus ateliês pela internet, mostrando como a quarentena influencia seus processos criativos. A ideia é que eles ainda reforcem com o público dicas de prevenção contra o coronavírus.
Em uma ação semelhante, a Galeria Kogan Amaro convida os artistas com os quais trabalha para assumirem, por um dia, a sua conta no Instagram. Neste fim de semana, são os próprios galeristas que vão interagir com o público. No sábado, 2 de maio, a colecionadora e pianista Ksenia Kogan Amaro faz uma live de sua casa, onde também apresenta um concerto. No domingo, é a vez de seu marido e sócio, o artista empresário Marcos Amaro, assumir a rede.
Antes mesmo da quarentena, a Millan criou uma série de podcasts, disponíveis no Spotify, em que artistas como Paulo Pasta e Rodrigo Andrade falam sobre seus processos criativos. Com o avanço do vírus, a galeria também passou a promover conversas dos artistas com o público. Na próxima terça-feira, 5 de maio, às 17h, David Almeida participa de uma live para falar sobre a sua produção.
Em março, pouco antes do início da quarentena, a Fortes D’Aloia & Gabriel havia inaugurado uma exposição de Lucia Laguna. Agora, é possível conferir as obras da artista carioca por meio de uma visita virtual disponível no site da galeria, onde há também um vídeo em que ela conversa com o curador Victor Gorgulho.
Já a Luciana Brito Galeria acaba de lançar em seu site uma plataforma dedicada à videoarte. Com o nome LB/Festival de Vídeo Online, a iniciativa contará com um novo trabalho a cada semana. Já é possível assistir, por exemplo, ao vídeo Corda, produzido pelo artista mineiro Pablo Lobato.
Reflexões sobre o futuro do mercado da arte também pautam algumas dessas iniciativas online. Desde o início da pandemia, a Aura tem promovido uma série de cursos online, em que são debatidos temas como o colecionismo e a arte-educação. Além disso, a galeria levou para o meio virtual o encontro Happy Aura, em que diferentes agentes do campo das artes têm discutido, em clima descontraído, o contexto atual. Gratuito, o evento ocorre todas as sextas-feiras, às 18h, pela plataforma Zoom.
Na última semana, a Associação Brasileira de Arte Contemporânea (ABACT) ainda lançou o podcast Arte Contemporânea: da casca ao caroço, com episódios quinzenais, disponíveis nas plataformas Spotify, Apple Podcasts e Google Podcasts. O primeiro deles reúne a artista Mariana Palma e a diretora da galeria Casa Triângulo, Camila Siqueira, em uma conversa sobre como a indústria de arte contemporânea tem se reinventado no ambiente digital e sobre a importância da arte em momentos difíceis – como o atual.
União e crise na arte: como fica o comércio de obras durante a pandemia por Tatiane de Assis, Veja São Paulo
União e crise na arte: como fica o comércio de obras durante a pandemia
Matéria de Tatiane de Assis originalmente publicada na revista Veja São Paulo em 1 de maio de 2020.
Menos feiras, mais transparência na política de preços e reunião inédita de artistas e galeristas: como a pandemia impacta a produção e o comércio de obras
Lucas Dupin, de 34 anos, vive de arte desde 2017. Pai da recém-nascida Catarina, fruto da relação com a companheira, Ludmilla Ramalho, também artista visual, ele cumpre a quarentena em família em Belo Horizonte. Os planos de viver o primeiro ano da bebê em Minas Gerais e depois retornar à capital paulistana estão em suspenso. “Estou bancando as nossas despesas graças ao pagamento adiantado de uma obra comissionada”, explica o mineiro, cujos trabalhos custam, em média, 9 000 reais. Para fechar as contas, ele também dá orientação a profissionais em começo de carreira — atividade que foi interrompida devido à pandemia e rendeu um baque no orçamento. Um possível respiro para Dupin pode vir do movimento p.art.ilha, de dezessete pequenas e médias galerias, incluindo a Lume (SP) e a Periscópio (MG), que o representam.
A primeira ação do grupo tem início nesta sexta (1º) e é um incentivo para os colecionadores agirem. Nesse primeiro mês, quem comprar uma obra receberá um crédito de igual valor para escolher outra peça da mesma galeria, porém de outro artista. No fim, o montante arrecadado será dividido proporcionalmente entre os artistas e a galeria. “Cada um dos membros selecionou um conjunto de obras que vai ser apresentado preferencialmente nos sites. No perfil @p.art.ilha, no Instagram, será possível ter um panorama”, detalha Thomaz Pacheco, da OMA Galeria, outra integrante da agremiação, que fará também doações a entidades sociais. “O impacto é no fluxo de caixa. Temos um respiro muito curto para seguir adiante. Se a quarentena durar quatro, seis meses, nossa reserva será consumida e teremos de fechar as portas”, afirma Pacheco.
Ainda na esteira da pandemia, as pequenas galerias tentam reverter a proposta da SP-Arte. Ao cancelar a edição deste ano, a feira pretende reter um terço do que foi pago pelos participantes. Da soma restante, metade seria devolvida e a outra parte ficaria como crédito para a feira de 2021. Afora os imbróglios circunstanciais, um novo rearranjo no mercado deve passar pela mudança de antigos hábitos, como o de “esconder” os preços. “Não mostrar o valor de uma obra não faz sentido. Experiências internacionais de sucesso, a exemplo da plataforma da (galeria americana) David Zwirner, já têm revisto isso”, afirma a pesquisadora independente Vivian Gandelsman, que mantém o projeto ArtLoad. “O colecionador não pode ser visto como mero cliente, ele é um ator social importante no circuito, que pode ajudar na manutenção de galerias e no fomento da produção.” Na mesma sintonia, a veterana galerista Luisa Strina acredita em mais transformação. “Não sou vidente, mas acho que vamos voltar ao que era o mercado nos anos 70, quando fazíamos no máximo duas feiras. Os artistas também produziam menos, porque não era essa correria”, diz Luisa. A volta ao passado, porém, está longe da nostalgia romântica, na sua visão. “Tudo vai encolher, o mundo inteiro vai ficar mais pobre.”