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janeiro 31, 2018
Uma saída para os museus por Rachel Rubin e Hugo Cilo, Istoé Dinheiro
Uma saída para os museus
Matéria de Rachel Rubin e Hugo Cilo originalmente publicada na revista Istoé Dinheiro em 8 de janeiro de 2018.
Instituições culturais se reinventam para diversificar fontes de recursos, correr menos riscos e democratizar suas programações. Tudo para compensar a queda de financiamento público
Em novembro do ano passado, uma notícia fez o mundo das artes, que já andava em crise existencial, deitar de vez no divã: a condenação, a nove anos de prisão, de Bernardo de Mello Paz, o fundador do Instituto Inhotim – museu de arte contemporânea que é um dos mais visitados do País –, por lavagem de dinheiro referente ao período em que fora proprietário do conglomerado Itaminas, de mineração e siderurgia. Paz tem ainda uma dívida com o governo do Estado de Minas, também consequência de sua atividade na mineração. O montante chegou a R$ 500 milhões, mas, com a adesão a uma lei estadual que dá desconto para devedores, esse valor caiu para aproximadamente R$ 150 milhões.
Para quitar a dívida, o fundador do Inhotim chegou a oferecer obras de arte em exposição no museu. Segundo o instituto, a negociação estabelece que as obras permanecerão no museu, em comodato, sem possibilidade de serem removidas. Antonio Grassi, diretor executivo do Instituto Inhotim, diz que além de investimentos de Paz e da verba obtida com a visitação, o Inhotim é financiado pelo governo de Minas e pela Lei Rouanet. Mas, para ter mais autonomia e depender menos de recursos de seu fundador e das leis de incentivo fiscal, a instituição tem adotado uma série de estratégias. “Nosso trabalho de captação, de como podemos garantir a sustentabilidade de Inhotim, vem sendo feito bem antes dos fatos recentes. Queremos sensibilizar e criar vínculos permanentes com patrocinadores também pessoas físicas”, explica Grassi. “Bem mais brasileiros doam para o MoMA do que para instituições daqui”, compara, referindo-se ao Museu de Arte Moderna de Nova York. Um dos projetos para estimular patronato é o apadrinhamento de obras. Há dois anos, o Instituto começou a testar esse novo modelo de gestão com o patrocínio da construção da galeria da fotógrafa suíça naturalizada brasileira Claudia Andujar, para a qual 25 pessoas contribuíram, cada uma, com R$ 25 mil reais. Hoje, do orçamento anual de R$ 35 milhões, 90% dos recursos vêm de patrocínio direto, Lei Rouanet e bilheteria. Bem diferente do início de Inhotim, quando, há dez anos, Paz arcava com a maior parte desse valor.
As notícias envolvendo o Inhotim foram traumáticas por arranharem a imagem de um dos marcos culturais e turísticos do Brasil e por deixarem evidentes as vulnerabilidades da gestão cultural no País. Em tempos de crise econômica, quando a cultura é uma das primeiras áreas a sofrer com cortes, é bom saber que arte e planejamento andam de mãos dadas. O Fundo Nacional da Cultura (FNC), por exemplo, que é um dos pontos da Lei Rouanet e que representa o investimento direto do Estado no fomento à cultura, “só vem esvaziando”, alerta Eduardo Saron, diretor do Instituto Itaú Cultural. Ele diz que o FNC, que apoia principalmente os projetos com maior dificuldade de captação junto a empresas privadas – caso dos projetos fora do eixo Rio-São Paulo –, não vem recebendo o repasse originalmente previsto de 3% das loterias federais. “A Caixa Econômica acaba enviando para o Planejamento, que não manda para a Cultura”, reclama. “Cerca de R$ 1,5 bilhão deixou de ser repassado da loteria para a cultura.”
Os modelos de gestão cultural no Brasil são variados, mas a maioria ainda depende de recursos estatais. Algumas instituições contam, majoritariamente, com recursos do governo; outras são ligadas a empresas privadas; e há as que têm modelos híbridos de recursos estatais e privados, fazendo um balanço de recursos governamentais, da Lei Rouanet e de fontes como bilheteria, patronato e cessão de espaços. Mas há ainda um caminho alternativo, dos endowments, que são fundos patrimoniais privados de longo prazo. “O mundo cultural precisa aprofundar o debate sobre os endowments. A Lei Rouanet é importante, mas não dá para ser a principal fonte de recursos”, afirma Saron. “Hoje as empresas trabalham com base em um capitalismo de metas, visando o curto prazo. Deveríamos abrir mais espaço para o capitalismo de propósitos, de compromisso com a sociedade.”
Ainda raro no Brasil, o financiamento de instituições culturais por meio de endowments é bastante comum no exterior. Nos Estados Unidos, esses fundos mantêm equipamentos diversos, de universidades a museus, como o Smithsonian Institution, em Washington, e a Boston Symphony Orchestra. Constituir um endowment, porém, não é tão fácil. É preciso arrumar a casa antes. Esses fundos são geridos como os do mercado financeiro, por isso é preciso ter uma política sólida de governança, gestão e boas práticas. Os rendimentos são usados na manutenção da instituição e no desenvolvimento de projetos, garantindo a previsibilidade e a continuidade dos recursos. Depois de um tempo, o dinheiro é devolvido aos doadores e novos recursos são captados.
Por aqui, o caso pioneiro e mais emblemático de constituição de endowment foi o do Museu de Arte de São Paulo (Masp). O museu, que estava à beira da falência em 2013, corria o risco de fechar as portas e ter seu acervo de mais de oito mil obras estatizado. A solução envolveu várias frentes. Uma delas foi a criação do fundo de endowment, cuja meta, segundo Heitor Martins, diretor-presidente do Masp, é chegar a R$ 40 milhões. Outra ação foi renegociar a dívida, de R$ 35 milhões, com os credores. Para aumentar a arrecadação também foi criado um novo estatuto para o museu, ancorado em governança e tomando como base os modelos do MoMA e do Metropolitan, em Nova York. O estatuto deslocou o poder de decisão da assembleia de associados para um conselho deliberativo, formado por 80 empresários e investidores. Cada um desses empresários, como Alfredo Setubal, presidente da Itaúsa; Flávio Rocha, presidente da rede Riachuelo; e Roberto Sallouti, presidente do Grupo BTG Pactual, tomou para si o compromisso de uma doação inicial de R$ 150 mil, além de R$ 35 mil anuais. A área de captação de doações e patrocínios do Masp, para pessoas física e jurídica, arrecadou R$ 50 milhões de 2014 a 2017. Com todas essas ações, o faturamento do Masp quadruplicou e chegou a R$ 40 milhões, virando superavitário, já que as despesas do museu são de R$ 38 milhões. “Isso tudo tem a ver com a comunidade valorizar o que tem, se envolver com o museu dentro de um espírito coletivo”, conclui Martins. “A questão financeira é um meio. Nosso objetivo é contribuir para a cultura e ter exposições de qualidade.” Segundo ele, o Masp deve fechar o ano com 410 a 430 mil visitantes, a segunda maior da história da instituição.
Outro caso raro de endowment no Brasil é o do capitaneado pelo artista Marcos Amaro, herdeiro de Rolim Amaro, o lendário fundador da TAM. Amaro, que deixou o mundo empresarial para se dedicar às artes, já expôs em vários países e criou a Fundação Marcos Amaro, uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interese Público) com um acervo de mais de 600 obras. Um dos projetos da fundação, chamado de Memorial da Escultura Contemporânea Latino-Americana (Mescla), envolve um parque de esculturas e um espaço chamado Fábrica São Pedro, ambos no interior paulista. Apesar de ainda não concluídos, já estão abertos para visitação. O fundo de endowment criado por ele soma R$ 10 milhões, com recursos próprios. “No momento esse montante é suficiente para viabilizar o projeto, mas a ideia é abrir para mais investidores”, diz ele. “No total, o investimento na Fundação será de R$ 50 milhões a R$ 60 milhões em cinco anos.”
Criatividade
Um exemplo bem-sucedido de criatividade na gestão de museus, em tempos de escassez de dinheiro público, é o do Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba. Sob comando da executiva Juliana Vellozo Almeida Vosnika, o terceiro maior museu do País, com acervo de 4 mil obras e faturamento de R$ 15 milhões em 2017, está conseguindo reequilibrar suas finanças. Isso porque a participação de recursos públicos no faturamento caiu de 90%, em 2015, para 70%, no ano passado.
Entre as estratégias adotadas estão a abertura de um café dentro do museu, a terceirização do estacionamento (uma área nobre no centro da capital paranaense) e locação de espaços do MON para eventos. “Tivemos de reinventar nosso modelo de negócio, diversificando as fontes de receita”, afirma Vosnika, que também lançou um programa de parcerias, chamado de Sou Patrono. As doações de grandes empresários paranaenses alcançaram, em 2017, R$ 220 mil. Um ano antes, na estreia do programa, foram doados R$ 200 mil. “Com o apoio de doadores, novas entradas de dinheiro em caixa e maior participação da sociedade em nosso dia a dia, estamos conseguindo superar as dificuldades.”
A gestão híbrida, na qual a arrecadação vem de outras fontes além do repasse estatal, é, de fato, o modelo que tem ganhado cada vez mais espaço entre as instituições. Na Pinacoteca do Estado de São Paulo, que virou organização social de cultura no final de 2005, o governo ainda provê a maioria dos recursos – 60% do total, voltados principalmente para os custos fixos, como água e luz, e as exposições de longo prazo ou permanentes. Os 40% restantes, que precisam vir de captação, são investidos nas exposições temporárias, que costumam atrair mais público e repercussão na mídia, segundo Paulo Vicelli, diretor de relações institucionais da Pinacoteca. Quando Vicelli chegou na Pinacoteca, em 2012, o processo de atração de recursos ainda era tímido. “Não havia uma abordagem comercial, com prestação de contas”, lembra. Mas nos últimos cinco anos, com uma série de ações de governança e novas abordagens junto ao público, aumentou, em mais de 50%, o montante captado. “De pessoa jurídica, via Lei Rouanet e patrocínio direto, recebemos R$ 12 milhões, e de pessoa física, aproximadamente R$ 1 milhão”, conta Vicelli. O dinheiro desses patronos, explica, vai para um fundo de obra de arte contemporânea.
Para “fisgar” doadores, a Pinacoteca promove eventos como o Pinaball, um baile com a presença de celebridades que aconteceu em 2015 para comemorar os 110 anos da instituição. Na ocasião, foram lançados produtos com apelo de luxo, como uma linha de joias inspirada na arquitetura do prédio e uma edição limitada de uma caixa de gravuras com trabalhos inéditos doados por artistas que fizeram história na Pinacoteca, como Beatriz Milhazes, Leda Catunda e Jac Leirner. Em 2016, foi a vez de promover um álbum de fotografia com trabalhos, criados especialmente para a Pinacoteca, de artistas como Sofia Borges e Vik Muniz. Cada exemplar custava R$ 30 mil. Uma parte dos recursos com a venda do álbum – que totalizaram R$ 1,5 milhão – foi usada para comprar uma obra histórica de Belmiro de Almeida (1858-1935), “Menino com Bandolim“. A meta para o próximo ano, segundo Vicelli, é arrecadar R$ 16 milhões.
Já no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, do orçamento de R$ 23 milhões, R$ 13 milhões vieram de repasse do governo e R$ 10 milhões de bilheteria e cessão de espaços – como o do restaurante, da loja e do estacionamento -, além de patrocínio por meio de leis de incentivo. Ao contrário da Pinacoteca e do MAM, a cultura do patronato pessoa física não tem peso na arrecadação. Mas as bilheterias, sim. Em 2010, o público geral da instituição era de 61 mil pessoas. Nos anos seguintes, o museu ganhou holofotes com mega exposições, como as do Tim Burton, Silvio Santos e Castelo Rá-Tim-Bum – essa última com público recorde de 410 mil pessoas. A exposição atualmente em cartaz conta a trajetória do cantor e compositor Renato Russo, morto em 1996. Foram mais de dois anos de pesquisa e produção, com cerca de três mil itens retirados do apartamento do artista, conta Isa Castro, diretora cultural do museu. Ao sair da exposição, o visitante encontra itens relacionados ao músico na loja e jantar no restaurante do espaço. “Queremos que o visitante tenha uma experiência completa”, diz Jacques Kann, diretor de gestão e finanças do MIS. “Antes, poucos conheciam o museu. Agora a história é outra – os cobradores de ônibus, quando passam aqui na frente, dizem ‘ponto MIS’. É isso o que queremos, desmistificar e democratizar o acesso à cultura.”
janeiro 27, 2018
Críticas de 'The Square' ao mercado de arte redimiram todos que conheço por Bernardo Carvalho, Folha de S. Paulo
Críticas de 'The Square' ao mercado de arte redimiram todos que conheço
Coluna de Bernardo Carvalho originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 21 de janeiro de 2018.
Não conheço ninguém que tenha se ofendido com as críticas que "The Square", em cartaz em São Paulo, faz à sociedade contemporânea. E, no entanto, o filme parece não poupar ninguém.
Não faltam caricaturas e bodes expiatórios, sobretudo no mundo das artes, do curador de museu ao artista contemporâneo. Mas nenhum artista que eu conheço se sentiu pessoalmente concernido pelos ataques do filme. Como a maioria do público, todos concordam com a crítica às imposturas da arte contemporânea, como se não fosse com eles.
Saí sem saber de quem era o problema. Será que nem eu nem ninguém que eu conheço faz parte desse mundo deplorável, embora o reconheçamos imediatamente à nossa volta, porém nos outros?
Todo mundo com quem conversei se sentiu de alguma forma redimido pelas críticas desopilantes ao mercado de arte e ao capitalismo contemporâneo. Não chega a ser estranho, já que o filme atira para todos os lados (e assim satisfaz diferentes ressentimentos, sem realmente se comprometer com nada que possa contrariar a maioria). O estranho é que nunca acerte o espectador.
Há alguns meses, um ato em apoio ao Masp foi convocado para fazer frente a eventuais protestos que viessem a tentar impedir —por ignorância, má-fé, falso moralismo ou o que fosse— a inauguração de uma mostra sobre sexualidade.
Quando cheguei ao vão central do museu, onde os manifestantes vestidos de branco levantavam cartazes e entoavam palavras de ordem em defesa da arte, um passageiro desesperado dentro de um ônibus parado no trânsito de fim de tarde da avenida Paulista gritava pela janela, com todas as forças: "Filhos da puta!". A cena nunca mais saiu da minha cabeça.
É muito provável que aquele passageiro nunca tenha pisado e nunca venha a pisar no Masp, nem em nenhum outro museu.
Há um fosso entre o cotidiano desse homem, voltando do trabalho para casa no final do dia, num ônibus parado no trânsito da Paulista, e um grupo de pessoas vestidas de branco em defesa da arte (eu entre elas), enquanto convidados de terno, representantes da classe que decide os rumos do país, fazem fila para visitar a exposição.
Por mais que a cena seja um sintoma da desgraça brasileira, não ocorreria a ninguém de bom senso tomá-la como explicação do problema, a menos que quisesse passar por populista, demagogo, oportunista ou filisteu. Então, por que não suspeitar da facilidade de identificação catártica num filme calculista como "The Square"?
Na cena central, um performer seminu adentra o salão onde patronos, curadores e artistas participam de um jantar de gala num museu.
O homem se comporta como um gorila, indo de mesa em mesa, até que a representação sai do controle, ganha traços demasiado naturalistas e ele passa a atacar os convivas, chegando a arrastar uma mulher pelos cabelos. É quando os burgueses se revoltam e reagem com fúria animal. Moral da história: levada às últimas consequências, a arte incomoda.
O fato de poder ser verdadeira não exime essa moral do lugar-comum e do oportunismo, ainda mais quando defendida por um filme que faz de tudo para não incomodar o espectador, fingindo-se de provocação.
Afinal, por que uma simples tela dentro de um museu frequentado pela burguesia não poderia ser mais forte, mais radical e mais verdadeira do que a performance de um homem fazendo as vezes de gorila? Ficamos mais vulneráveis às manipulações filistinas quando deixamos de distinguir as coisas em si.
Outra situação crucial no filme diz respeito a uma campanha publicitária proposta por dois jovens idiotas, especialistas em comunicação digital, para divulgar uma exposição.
No vídeo que eles postam nas redes sociais, uma menina loura, paramentada como mendiga, se explode nas ruas de Estocolmo, onde a divisão social e racial salta aos olhos. O vídeo viraliza e provoca uma comoção nacional.
Imediatamente o espectador do filme identifica nos dois marqueteiros a imbecilidade que lhes cabe por mérito próprio, mas que não torna o vídeo da menina-bomba mais imoral ou inadmissível.
Como tudo é lugar-comum e nada o afronta diretamente, já não passa pela cabeça do espectador que o vídeo seja insignificante, uma representação como qualquer outra (ninguém explodiu ninguém), e que a situação não sustente a comoção, a menos que, como os personagens, já não sejamos capazes de distinguir entre uma coisa e outra.
A única coisa que ainda conseguimos distinguir é que o filme não está falando mal de nós, nunca. É a regra de ouro populista: nunca confrontar ou contrariar quem queremos convencer.
Instintos selvagens por Paula Alzugaray, seLecT
Instintos selvagens
Critica de Paula Alzugaray originalmente publicada na revista seLecT em 9 de janeiro de 2018.
Palma de Ouro em Cannes, The Square explora a vida dentro e fora do cubo branco
O humor é uma ausência lamentável na arte contemporânea. Quando o artista se utiliza desse recurso com habilidade e a devida complexidade, o trabalho pode atingir nuances libertadoras. Este é o caso de Manifesto (2015), de Julian Rosenfeldt. Mas, quando o humor é usado com sarcasmo para falar do caráter hermético da arte contemporânea, é fácil cair em clichês – o que acontece, por exemplo, em A Grande Beleza (2013), na cena que retrata o teatro do absurdo em que se transforma um ato performático. The Square, filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2017, poderia cair na vala comum das piadas que usam a ignorância como combustível. Mas, ao contrário do que afirmam resenhas publicadas em jornais brasileiros, que atribuem ao roteiro do diretor sueco Ruben Östlund uma crítica ao pedantismo e/ou charlatanismo da arte, o filme dá uma inspiradora e despretensiosa lição sobre a linguagem cifrada da arte contemporânea.
A história gira em torno do curador-chefe – também nomeado diretor artístico – de um grande museu. E a aula que Christian, vivido pelo ator Claes Bang, dá ao espectador versa sobre as correlações entre a arte contemporânea e a vida prosaica; e entre a ficção e a realidade. O protagonista de The Square – dir-se-ia, também, do mundinho da arte – é um porta-voz não só da instituição, mas das intenções do artista. Ele é o responsável por fazer a interface entre as proposições criativas mais abstratas, ousadas e transgressoras do artista e o mais profundo desconhecimento de causa que o grande público tem do que se passa dentro do “cubo branco”. As fricções e tensões entre esses dois mundos são tratadas pelo diretor com inteligência e malícia.
A relação entre o título The Square e o cubo branco, termo que define o ambiente – neutro e protegido – em que a arte acontece desde o modernismo, não é mera coincidência. Intencionalmente, ou não, a “bolha” em que a arte contemporânea se resguarda de comuns e iletrados mortais ganha como metáfora a obra The Square, supostamente de autoria de Lola Arias – que não é uma ficção, mas uma artista e escritora que vive e trabalha na Argentina. Segundo o curador protagonista anuncia no início do filme, a obra instalada na calçada, do lado de fora do museu, convida os transeuntes ao altruísmo e à tolerância em situações de risco. Mas essa proposição é logo colocada de lado – e a bolha do mundo da arte é estourada – quando o curador tem seu aparelho celular roubado nas ruas de Estocolmo. Moral da história: dentro do quadrado da arte, onde artistas e instituições não podem ter medo de pressionar limites, tudo pode acontecer. Até o despertar dos instintos mais selvagens.
The Square, direção e roteiro Ruben Östlund, Suécia, 2017, 142 min
janeiro 16, 2018
Curadores indicam temas e debates que orientam suas escolhas na arte contemporânea por Márcia Maria Cruz, Uai
Curadores indicam temas e debates que orientam suas escolhas na arte contemporânea
Matéria de Márcia Maria Cruz originalmente publicada no portal Uai em 14 de janeiro de 2018.
Profissionais também defendem mais espaço para a diversidade e discursos fora dos cânones estabelecidos
A profissão de curadoria ficou em evidência com as polêmicas envolvendo o fechamento de exposições de arte contemporânea em Porto Alegre (Queermuseu – cartografias da diferença na arte brasileira) e São Paulo (performance La bête, no Museu de Arte Moderna). O papel desses profissionais responsáveis por apontar artistas e trabalhos inovadores também foi abordado pelo filme The square – A arte da discórdia, um dos nove finalistas na categoria filme estrangeiro no Oscar 2018. Dirigido por Ruben Östlund, o filme ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2017, ao mostrar a vida de Christian, respeitado diretor de museu de arte contemporânea em Estocolmo, na Suécia. A narrativa coloca em perspectiva o trabalho de curadoria, bem como os dilemas para definir o que vale a pena ser visto.
O Estado de Minas convidou os curadores Iochen Volz (Pinacoteca do Estado de SP), Júlia Rebouças (independente), Germano Dushá (Coletor, Observatório e Banal Banal), Luisa Duarte (independente) e Rodrigo Moura (Museu de Arte de SP) para apontar de onde vem o novo nas artes. Perceber tendências, apontar direções, estabelecer relações entre o que é produzido hoje e as tradições artísticas do passado são funções inerentes ao exercício da curadoria. Assim, a novidade não se resume em escolher um ou outro autor, mas estabelecer debates em um contexto mais amplo e em sintonia com o presente.
“O que há de vanguarda na arte contemporânea não vem de um meio, forma ou tema. Vem do ânimo, da energia, da intenção. Vem da experimentação com a linguagem, da vontade genuína e autônoma de experimentar, por a prova, correr o risco”, afirma Germano Dushá, que desenvolve projetos independentes de arte e experimentações curatoriais. Para ele, as curadorias devem estar atentas às iniciativas independentes e autônomas. “Devemos olhar para movimentos, espaços ou ações que se colocam no mundo sem precisar se apoiar completamente no viés institucional ou comercial”, defende.
Júlia Rebouças integrou a equipe curatorial de Inhotim e da 32ª Bienal de São Paulo, em 2016, e desenvolve trabalhos independentes e pesquisas acadêmicas. Indicada pelo portal especializado em arte contemporânea Art Sy como um dos 20 mais influentes jovens curadores da América Latina, Júlia está de olho em trabalhos que questionem os cânones artísticos. “A arte precisa se deslocar para dar conta das questões colocadas agora, que se impõem com muita urgência”, diz. Uma das discussões que ela aponta é sobre a diversidade. “Quando falamos de galeria, mercado, publicações, falamos também de lugares estabelecidos atravessados por racismo, machismo e misoginia. Essas são questões para o nosso tempo. É um passivo que a gente vem carregando. O setor que não der conta delas, dançou”, completa.
Instabilidade
A curadora dialoga com artistas que lidam com conceitos de incômodo, instabilidade e desejo de compartilhar. “Interessa-me como a arte vai reagir às questões das minorias, como vai ajudar a organizar, criar palavras, gerar imagens, imagens dissonantes. Essa é a graça. A arte trata da instabilidade. Nunca conclui nada. Ajuda a dar conta do que ainda não sabemos sequer nominar.” Ela destaca trabalhos que rompem fronteiras, por exemplo entre documentário e ficção, artistas que se colocam como agentes de grupos minorizados e preenchem lacunas nas narrativas históricas.
Publicações da área apontam que os holofotes estão voltados para os artistas da América Latina como fonte de novidade e efervescência nas propostas de curadoria não convencionais. A Art Sy, por exemplo, destaca o trabalho de Iochen Volz, diretor-geral da Pinacoteca em São Paulo e curador-geral da última Bienal de São Paulo, que teve Incerteza viva como tema. Para ele, “o novo vem do desconhecido, do incerto, da chance, do acaso, do pensar o impensável, da busca para além de limites, do oposto”.
Antropologia
As narrativas dominantes, avalia Volz, não são suficientes para imaginar outros caminhos. “Os artistas têm procurado, cada vez mais, estratégias e formas que vêm de outros campos de conhecimento, dissolvendo fronteiras entre os diversos campos artísticos, mas também entre a arte e as ciências, entre artes e educação, arte e espiritualidade, arte e antropologia”, afirma. A mudança se estende inclusive ao espaço dedicado à criação: “Os artistas trocam o ateliê pelo laboratório, a cozinha, a escola, a floresta ou um mundo virtual, entre outros”, diz. Volz destaca a importância de observar formulações estéticas que vão além dos códigos estabelecidos, o que pode ocorrer longe do chamado establishment.
Questionar o estabilishment é um dos focos do trabalho da artista Ana Luisa Santos, que usa como principal meio de expressão a performance, gênero artístico que agrega linguagens e subverte as formas canônicas de fruição da obra artística. Um dos trabalhos de Ana Luísa ganhou visibilidade inesperada, no final de 2017, quando a performance Melindrosa, realizada nas ruas do Centro do Rio de Janeiro, foi gravada e compartilhada nas redes sociais. Um dos vídeos alcançou quase 2 milhões de visualizações. Ao optar por realizar performances em espaços públicos, Ana Luísa coloca em discussão aspectos referentes ao acesso às artes e a possibilidade de ampliar e compartilhar a experiência estética. “É um momento de revisão e enfrentamento da herança e tradição histórica machista, racista que precisa ser questionada fortemente do ponto de vista curatorial”, diz Ana Luisa Santos, que foi uma das indicadas ao Prêmio Pipa 2017.
A curadora independente Luisa Duarte aponta que o caminho para o novo passa por deslocamentos no que se refere aos artistas como também aos centros de produção artística. “A arte contemporânea vem reescrevendo todo um cânone da história da arte do qual faziam parte sobretudo homens, brancos, do eixo Europa-Estados Unidos. Ao longo dos últimos 30 anos, há o reconhecimento de outros atores. Estamos escrevendo outra história, agora inclusiva, da qual fazem parte grupos que sempre deixamos à margem, tal como negros, mulheres, indígenas, comunidade LGBTQ, e ainda continentes inteiros, como África e América Latina”, diz Luisa.
três perguntas para...
Rodrigo Moura
Curador-adjunto de arte brasileira do Museu de Arte de São Paulo (Masp)
O que tem atraído seu olhar como curador recentemente?
Neste ano de 2018, estou trabalhando em duas exposições no Masp, que têm consumido inteiramente meu tempo e interesses. A primeira é Imagens do Aleijadinho, que analisa a produção de escultura devocional do artífice mineiro e a relaciona com o contexto da arte produzida pela diáspora africana. É muito interessante pensar que o primeiro grande nome da arte produzida no Brasil tenha relação direta com a herança africana, ainda que essa produção tenha uma relação de dependência com a arte produzida na Europa. Estou trabalhando também numa mostra do escultor afro-americano Melvin Edwards, focada em sua série Fragmentos linchados, que ele produz desde os anos 1960. Aí também é importante notar uma relação menos “exoticizante” com a escultura africana, colocada em relação a questões políticas do movimento de direitos civis e da própria história africana. Essas mostras fazem parte do eixo de programação do museu para 2018, em torno das chamadas Histórias Afro-Atlânticas.
Há movimento de reivindicação de grupos minorizados (negros, mulheres, LGBTs) por lugar de fala em todas as áreas, inclusive as artes. Em que medida isso tensiona o cânone?
O tensionamento do cânone, como você chamou bem, deve ser o próprio combustível da curadoria e da crítica, levando à reescrita da história da arte. A questão da marginalização no meio da arte é uma questão importante, que tem sido objeto de mais interesse e reflexão em tempos recentes. A forma como o meio da arte discriminou e discrimina artistas mulheres, por exemplo, está em absoluto descompasso com o protagonismo das mesmas artistas mulheres na escrita da história da arte no Brasil – de Tarsila e Djanira e Lygia Clark. Tenho acompanhado, pensado e escrito também sobre a situação dos chamados artistas autodidatas ou populares, como José Antônio da Silva, Amadeu Luciano Lorenzato, Agostinho Batista de Freitas e Maria Auxiliadora, todos eles que são ou serão objeto de exposições individuais que ajudam a repensar seu lugar fora das narrativas hegemônicas, mais uma vez em descompasso com a potência dos seus trabalhos.
Você pode citar trabalhos, artistas ou iniciativas para as quais devemos botar reparo?
Sigo sempre olhando para alguns artistas que me interessam, com quem alimento longas interlocuções. Por exemplo, no ano passado fiz uma grande exposição do Mauro Restiffe na Pinacoteca do Estado de São Paulo, fruto de um diálogo de quase cinco anos. Foi o mesmo caso com Claudia Andujar, com quem fiz uma galeria permanente em Inhotim, inaugurada em 2015. Fiz um livro com uma pintora de São Paulo, jovem, com um trabalho muito especial, chamada Marina Rheingantz, que tem um entendimento muito singular da paisagem. Um desejo para mim seria me aproximar de outras visualidades, outras inteligências visuais, como as da Amazônia e dos artistas e cineastas emergentes indígenas. Tenho olhado também para coisas que sempre me acompanharam, mas que agora me chamam ainda mais atenção, como a arte do Vale do Jequitinhonha de artistas da segunda ou terceira geração como Maria de Lourdes, Rosana, Maria Lira.
Arte brasileira em alta
FOCO CONTEMPORÂNEO
Cinco curadores de arte indicam artistas de destaque no cenário brasileiro
Júlia Rebouças
Curadora e crítica de arte
Dalton Paula (DF/GO)
Musa Michelle Mattiuzzi (SP/BA)
Graziela Kunsch (SP)
Jaime Lauriano (SP)
Iochen Volz
Diretor-geral da Pinacoteca SP
Bárbara Wagner (DF/PE)
Cinthia Marcelle (MG)
Clara Ianni (SP)
Dalton Paula (DF/GO)
Jaime Lauriano (SP)
Paulo Nazareth (MG)
Rosana Paulino (SP)
Rodrigo Moura
Curador-assistente do Masp
Mauro Restiffe (SP)
Cláudia Andujar (AM/SP)
Marina Rheingantz (SP)
Maria de Lourdes (MG)
Maria Lira (MG)
Germano Dushá
Coletor, Observatório
Maria Noujaim (RJ)
Rafael RG (SP)
Deyson Gilbert (PE/SP)
Luisa Duarte
Curadora e crítica de arte
Matheus Rocha Pitta (MG/RJ)
Cinthia Marcelle (MG)
Clara Ianni (SP)
Lais Myrrha (MG)
Bárbara Wagner (DF/PE)
Benjamin de Búrca (Munique-Alem./PE)
Marilá Dardot (MG)
janeiro 9, 2018
Júri aponta 'Álbum', de Mauro Restiffe como melhor exposição; público elege 'Renato Russo', Folha de S. Paulo
Júri aponta 'Álbum', de Mauro Restiffe como melhor exposição; público elege 'Renato Russo'
Matéria originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 29 de dezembro 2017.
Na eleição de melhores eventos de 2017, os especialistas convidados pelo "Guia" escolheram a exposição "Álbum", de Mauro Restiffe, como a melhor exposição do ano.
Organizada na Estação Pinacoteca, a mostra reúne 143 fotografias analógicas nunca antes expostas, que retratam paisagens, cenas da cidade e momentos vividos com sua família. As obras dialogam com pinturas dos acervos do Masp e da Pinacoteca. A exposição acumulou seis pontos.
Dividiram o segundo lugar, com cinco pontos, as mostras "Levantes", do Sesc Pinheiros, e "São Paulo não É uma Cidade", do Sesc 24 de Maio.
Também ocorreu empate no terceiro lugar: "Agora Somos Todxs Negrxs", do Galpão VB e "The Clock", do IMS, somaram três pontos.
Na eleição entre os leitores, quem levou o prêmio foi "Renato Russo", exposição do MIS que apresentou ao público documentos, fotos, instrumentos musicais e outros itens encontrados no apartamento no Rio de Janeiro em que o líder do Legião Urbana passou seus últimos anos de vida.
CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO
Cada integrante do júri elegeu três destaques em ordem de preferência. Foram distribuídos pontos da seguinte maneira:
1º lugar = 3 pontos
2º lugar = 2 pontos
3º lugar = 1 ponto
Os vencedores foram determinados pela soma dos pontos dos eleitos de cada jurado. Não houve desempate. Os jurados também puderam indicar, em suas categorias, o pior do ano (alguns preferiram não fazê-lo).
CONFIRA OS VOTOS DOS JURADOS
Celso Fioravante, editor do Mapa das Artes
1º lugar: "São Paulo não É uma Cidade", no Sesc 24 de Maio: São Paulo: a tua mais completa e complexa tradução
2° lugar: "Levantes", no Sesc Pinheiros: Levanta-te, cobre tua face e atire uma pedra
3º lugar: "Bompas and Parr", no MAM: Doce, doce... E, sob a marquise, os preços não são salgados...
Pior do ano: Os ataques à liberdade de expressão, a violência no MAM e a autocensura no Masp
Eduardo Biz, curador e pesquisador do aplicativo Artikin
1º lugar: "Agora Somos Todxs Negrxs?", no Galpão VB: Amadurece discussão sobre questões raciais e de gênero
2º lugar: "Histórias da Sexualidade", no Masp: Dá espaço e mostra a necessidade de discutir liberdade de expressão
3° lugar: "Siron Franco em 38 obras", na Mário de Andrade: É inspiradora sua produção, associada à crítica social
Pior do ano: A reação de quem viu nas exposições um palco para esbravejar conservadorismo e preconceito
Fabio Cypriano, crítico de artes plásticas da Folha
1º lugar: "Levantes", no Sesc Pinheiros: Panorama das manifestações em momento conturbado da humanidade
2º lugar: "São Paulo não É uma Cidade", no Sesc 24 de Maio: Reúne facetas controversas da cultura paulistana
3º lugar: "Álbum", na Estação Pinacoteca: Seleção surpreendente da obra de Restiffe, disposta fora do padrão
Pior do ano: "Histórias da Sexualidade", no Masp: Ao proibir a mostra para menores, o Masp se mostra um museu elitista
Gisele Kato, editora do canal Arte 1
1º lugar: "Álbum", na Estação Pinacoteca: As memórias dos Restiffe vão muito além do registro de férias
2º lugar: "Osso", no Instituto Tomie Ohtake: Quantos Rafael Braga há por aí? Arte por direitos da Constituição
3º lugar: "Alair Gomes e Robert Mappelthorpe", na Fortes DAloia e Gabriel: O corpo que é desejo e escultura
Pior do ano: "Histórias da Sexualidade", no Masp: O veto a menores de 18. Ficou a impressão de medo da onda moralista
Úrsula Passos, editora-assistente de Cultura
1º lugar: "The Clock", no IMS: Foi "o" programa na Paulista e deixou o público confortável
2º lugar: "Álbum", na Estação Pinacoteca: Fotos de família nada triviais conversaram com pinturas
3º lugar: "Bestiário", no CCSP: Essa pequena exposição, num lugar apertadinho, uniu obras que faziam sentido juntas
Pior do ano: "Histórias da Sexualidade", no Masp: Masp cedeu à pressão dos que discutem arte sem falar de arte
William Kentridge: “As pessoas não veem a fotografia, veem a si mesmas” por Anatxu Zabalbeascoa, El País
William Kentridge: “As pessoas não veem a fotografia, veem a si mesmas”
Entrevista de Anatxu Zabalbeascoa originalmente publicada no jornal El País em 1 de janeiro de 2018.
Artista sul-africano premiado pelo Princesa de Astúrias das Artes expõe sua obra em Madri. Na entrevista, ele fala sobre sua arte e o apartheid
Este sul-africano, último prêmio Princesa de Astúrias das Artes, é um desenhista que filma suas telas. “Desenhos animados da idade da pedra”, ele assim os chama. Constrói cenografias e atua. Estudou Ciências Políticas em seu país durante o apartheid. Formou-se dramaturgo em Paris e começou a ganhar a vida como artista com 34 anos e dois filhos. O Rainha Sofia expõe sua obra teatral.
Tenho de ver velhos amigos no Prado”, informa William Kentridge. Foi ver Goya, um dos poucos artistas pelos quais sempre se interessou. Toda sua família (sua mulher, que é reumatologista, os três filhos — para os quais cozinhou durante toda a infância enquanto ela trabalhava no hospital — e até seu pai, um célebre advogado nonagenário, defensor de Nelson Mandela e Desmond Tutu) o acompanhou na cerimônia para receber o prêmio Princesa de Astúrias das Artes. No Museu Rainha Sofia, de Madri, onde a exposição Basta y Sobra (até 19 de março) repassa sua produção cênica, Kentridge (Johanesburgo, 1955) começa falando de outros sul-africanos ilustres: Coetzee (Escreveu os melhores livros sobre a África do Sul) e Nadine Gordimer (“Fui à escola com seu filho. Sempre dizia a minha mãe que tomara que ela fosse como a de Hugo, porque sempre estava em casa. ‘O que faz essa senhora?’, quis saber ela, que era advogada. ‘É datilógrafa’, respondi. Deduzi isso porque estava todos os dias teclando. Depois se tornaram amigas”).
Em 1977, criticou o alemão Joseph Beuys porque, para o senhor, espalhar mel no edifício principal da Documenta de Kassell não era arte política. Em sua concepção, a arte política implicava “arriscar-se a ser preso ou a receber choque elétrico nos testículos”. Isso lhe aconteceu?
Fui preso, mas não torturado. Disse isso quando estudava porque na África do Sul a política tinha a ver com prisões e perseguição. Isso torna incompreensível uma visão abstrata da arte política.
Sempre deve implicar risco para o artista?
Não. Há um tipo de arte política que tem a ver com a representação das certezas, mas eu me interesso mais pela ambiguidade e a incerteza. Normalmente o político exige um significado inequívoco a favor ou contra. Acho que a contradição e o paradoxo são mais certeiros que aquilo que não deixa lugar a dúvidas.
O que faz com que uma obra seja percebida como verdadeira?
Se você dá a mesma fotografia a duas pessoas, cada uma dirá coisas diferentes. Isso significa que só podem estar falando de si mesmas. Não veem a fotografia, veem a si mesmas. Por isso uma das funções do artista é lembrar o espectador que quando olha uma obra não está vendo uma verdade, mas uma projeção.
Qual é o papel de um artista no século XXI?
Ainda estamos tentando entender o que aconteceu há cem anos com os dadaístas. Devemos a eles poder trabalhar com sons, textos, poesia, silêncio e com todo o tipo de imagens.
Duchamp questionou o que podia ser arte expondo o urinol na Sociedade de Artistas Independentes de Nova York. Mas isso não interessa ao senhor.
Porque optou por se transformar em um artista enigmático jogando xadrez durante 20 anos. Para mim isso irradia uma atitude muito europeia de cansaço e falta de interesse pelo mundo, até mesmo de cinismo, que também faz parte do legado europeu. Tenho uma relação de amor-ódio com Duchamp e outros artistas, como Bruce Nauman, porque trabalhavam com a segurança de estar no centro do mundo. A América nos oitenta, Paris nos vinte. Isso mudou. Agora é possível trabalhar na periferia e mostrar seu trabalho em Paris no Rainha Sofia, algo impensável há 20 anos.
Sua periferia, Johanesburgo, não é hoje como esses antigos centros: o lugar de maior interesse?
A periferia é um lugar com interesse filosófico, geográfico e econômico. Da distância pode-se ver erros na Europa que foram cruciais na nossa vida.
Que erros?
Parece como se a Europa tivesse acreditado ter o direito de morrer tranquilamente na cama e a destruição das Torres Gêmeas tivesse despertado o Ocidente. Na África as pessoas sabem que não há certezas nem seguranças. Estão acostumados à sobrevivência.
Aqui temos vivido com um senso infundado de segurança?
Essa fantasia se rompeu com o trauma do 11 de Setembro. Na África do Sul sempre soubemos que a vida é risco.
O senhor fez seu nome como artista com o fim do apartheid. A mensagem mais que o meio é o que deve ser contemporâneo na arte atual?
Essa pergunta implica que a pessoa sabe de cara o que faz, e isso não me interessa. Parto de não saber o que estou fazendo, de não controlar isso por completo. Não planejo. Entendo o que faço quando faço.
Mas começa com uma ideia.
Claro, e depois aparecem os problemas, e o tangencial chega para salvar o projeto. Fundei a incubadora The Centre for the Less Good Idea para potencializar uma maneira de criar mais aberta entre músicos, bailarinos e artistas. É fundamental ter flexibilidade para evitar apriorismos e reconhecer o que você está fazendo acima do que você pensava fazer.
Encontra mais temas indagando em si mesmo ou no mundo?
Um artista indaga sempre em seus medos e desejos.
Pertence a uma família de advogados. E estudou Ciências Políticas antes de fazer teatro em Paris.
Eram advogados capazes de imaginar uma vida diferente para seus filhos. Minha mãe sempre me apoiou. Meu pai era mais cético. Está orgulhoso, mas não consegue entender por que as pessoas se interessam pelo que faço. Às vezes me pergunta por que faço as coisas, se realmente acredito que são necessárias.
O que lhe responde?
Que justamente são essenciais porque não são necessárias.
Nasceu em Johanesburgo e viveu em uma minoria dentro da minoria branca: a dos que se opunham ao apartheid. Sua família defendia os direitos dos negros. Como foi a sua infância?
Privilegiada, branca, suburbana. Tínhamos babás e criados. Fui a uma escola em que só podiam entrar crianças brancas. E me parecia que isso era o normal. Se tivesse visto isso desde fora, teria me dado conta de que era doentio, mas dentro tudo se vive como se fosse normal. É preciso ter uma certa idade para se perguntar por que há ônibus para brancos e outros para negros, por que as melhores praias são para os brancos e as perigosas para os negros. É o absurdo endiabrado, mas se vive nele.
Com quantos anos viu esse absurdo?
Com cinco vi no escritório do meu pai fotos de negros assassinados. E ele me explicou que as opções eram abandonar a África do Sul para não enfrentar o problema, como fizeram muitos brancos, ou enfrentá-lo de dentro. Mas fazer isso te deixava em uma posição pouco limpa. Para se opor ao apartheid vivendo nele, era preciso aprender a conviver com a contradição. Minha família escolheu essa opção convencida de que, apesar de tudo, havia coisas que podia fazer.
Sua mãe defendia gratuitamente os negros em julgamentos. Seu pai defendeu Mandela e o bispo pacifista Desmond Tutu...
E eu tive uma vida de branco. Em nossa casa entravam os negros que minha mãe representava ou os amigos de meus pais, mas eram poucos. Lembro que um homem veio em casa e foi até a cozinha cumprimentar os criados. Eles ficaram atordoados porque era o chefe do Congresso Nacional Africano, o antecessor de Mandela.
Sua mulher [Anne Stanwix] é australiana. Chegou com 16 anos, se conheceram na escola e desde então permanecem juntos. Nada mal para um homem que se descreve como instalado na dúvida perpétua.
Faz parte das minhas contradições. Pouco antes de conhecê-la, com 13 anos, decidi que tinha nascido no país errado e com cinco anos de atraso. Se estivesse com 18 em Paris, Berlim ou Berkeley teria feito parte da revolta estudantil em vez de estar enredado na África do Sul, onde não acontecia nada.
Mas aconteceu. Em meados dos anos setenta, o bairro de Soweto se rebelou.
Sim, e tive meu Maio de 68. Mas me lembro de ler no jornal o que acontecia fora e pensado: “Droga, a vida passou por mim”.
Sua avó materna foi a primeira advogada sul-africana.
Sim. Todos os meus avós eram advogados, eles e elas. Suas famílias chegaram da Lituânia e da Alemanha.
Todos eram judeus. O senhor é religioso?
Não. Não fui educado assim. Meu avô tentou, mas minha mãe não tinha nenhum interesse. Depois minha mulher, que é católica, queria que eu recuperasse minha religiosidade. Mesmo que fosse a judaica...
A liturgia?
Sim, as formas: jejum, celebração... Espiritualidade quero considerar que já tenho. Dou-lhe atenção para que ela fique contente.
Em 1990, o presidente Frederik de Klerk começou a eliminar leis discriminatórias e libertou Nelson Mandela depois de 27 anos encarcerado. Lembra-se do fim do apartheid?
As pessoas como nós, estudantes ou profissionais liberais, estava havia tempo esperando isso. Quando o Parlamento anunciou que seria libertado e que os partidos deixariam de ser proibidos faltavam quatro anos para as primeiras eleições, mas abrimos champanhe. Sabíamos que o país seria outro. Embora nem todo mundo quisesse. A maioria dos brancos teria preferido manter seus privilégios.
Como mudou sua vida?
As organizações que eram proibidas de falar passaram a fazer isso sem medo. Houve quatro anos de negociações e tentativas de evitar as eleições, mas a África do Sul não se tornou um país de fundamentalistas, e sim de gente disposta a pactuar. Pactuar é um sinal de maturidade, você não consegue tudo o que quer, mas é a única maneira de conseguir algo.
Estudou política para se graduar?
Eu tinha interesse pelos livros proibidos. Se você estudava política, podia ir à biblioteca e pegar livros de Marx. Se não, se te pegassem com esses livros era um crime. Semanalmente, uma revista governamental lembrava ou ampliava a lista de títulos censurados. O político e o pornográfico compartilhavam a mesma categoria: a do proibido.
Por tudo isso foi um artista tardio?
Sempre desenhei, depois na França fiz teatro. E duvidei. Tinha 34 anos, dois filhos e ainda duvidava.
Era sua mulher que o mantinha?
Me deu de presente tempo para duvidar.
Em sua primeira obra abordou o apartheid em pôsteres para os sindicatos.
Sim, mas com uma linguagem de arte de protesto. Demorei para entender que estava tratando as pessoas com condescendência. E isso me encheu de dúvidas. Eu me dei conta de que com o que fazia estava dizendo às pessoas o que tinham de pensar, que é uma forma de lhes dizer que estão menos preparadas e são menos inteligentes e sensíveis do que você. Isso me pôs em meu lugar: não queria me dedicar a dizer às pessoas o que tinham que pensar. Decidi que se algo me interessava, talvez pudesse interessar a mais pessoas. E decidi fazer as coisas para mim, para entender, sem uma ambição específica. O curioso é que ao trabalhar assim ficou mais fácil para mim abordar temas políticos. Chegaram com naturalidade.
Em 25 anos, como o seu país evoluiu?
Muita gente esperava uma mudança radical de vida. E o que se passou é que há uma classe média branca e outra negra que, numericamente, já são iguais (quatro milhões cada raça). Mas para a classe trabalhadora a vida não mudou. Sua situação, embora não tão ruim, é de grande pobreza e desespero.
O que aconteceu com os privilegiados?
Muitos mantiveram os privilégios. Os grandes beneficiários dos últimos 25 anos foram os homens de negócios brancos.
O senhor está dizendo que a liberdade não muda as coisas?
Muda. Mas isso não implica em igualdade econômica. Os mineiros continuam sendo negros; os faxineiros também.
Em 1996, o Comitê da Verdade e Reconciliação demonstrou não ter muita verdade nem muita reconciliação.
Essa foi uma ideia muito cristã defendida por Desmond Tutu. As pessoas iriam perdoar. Iriam esquecer os abusos sofridos. A verdade lhes daria coragem para fazê-lo. Essa esperança sempre me pareceu muito otimista. Acreditava que as pessoas não seriam tão generosas quanto Mandela ou Tutu, que não perdoariam e esqueceriam tão facilmente. Mas a primeira parte, a comissão da verdade, foi surpreendente. Em quase todos os países, a amnésia nacional vem depois dos grandes problemas e das grandes injustiças. Aconteceu na Espanha depois da Guerra Civil. Só recentemente se falou com objetividade sobre Franco. Na França aconteceu o mesmo com os colaboradores. Não foi possível falar do apoio aos nazistas durante 30 anos. Por isso na África do Sul foi tão chocante que desde o início tenha sido criada uma comissão para investigar a violação sistemática dos direitos humanos. Seu mecanismo era conceder imunidade e anistia se confessassem o que tinham feito. Sacrificaram a justiça pela verdade, pela memória. Então, se você aceitasse que as pessoas que haviam feito coisas terríveis não tinham de pagar por isso, você poderia saber o que aconteceu. Essa ética contábil foi um pacto com o diabo: para além do terrível que tinham feito, não precisavam pagar por isso caso confessassem.
Como a Igreja Católica, o perdão depois do arrependimento e da confissão.
Mas uma coisa é saber a verdade e outra é perdoá-la. Muitas pessoas relacionam perdoar com deixar de pensar, com esquecer. Eu acredito que só se pode perdoar quando você conseguiu não sentir dor. O que alegaram é que, se fossem julgados, não diriam a verdade e não haveria verdade nem justiça. Eles ganharam.
Seu pai decidiu sair antes do fim do apartheid.
Sim, e minha mãe e meus irmãos. Eles estavam fartos da corrupção nos tribunais. Da minha família, só minha esposa e meus três filhos ficaram. Nos encontramos em Londres. Meu pai continuou como advogado lá e minha mãe continuou trabalhando na organização que havia fundado na África do Sul, The Legal Resource Center, que oferecia assessoria jurídica gratuita.
Um dos seus irmãos é escritor. Como há tantos artistas em uma família de advogados?
Meus antepassados vieram da Lituânia, eram muito pobres. Um era professor de hebraico, outro era ferreiro. A geração seguinte pôde ir à universidade, todos conseguiram uma profissão mais bem remunerada, mas sofreram pressão familiar para se tornar profissionais. Quando nós chegamos, essa pressão havia desaparecido. É curioso observar a psicodinâmica do que somos: hoje a incerteza igualou o mundo. Antes, se formar na universidade era garantir um emprego. Hoje, não mais.
Agora não há certezas. Hoje o senhor poderia ter se permitido duvidar tanto?
Eu me pergunto muitas vezes como pude viver tão tranquilo todos esses anos que me dediquei a decidir o que queria ser. Mesmo assim, me aconselharam que, pouco importando o que fizesse, deveria me especializar. Se fosse desenhar, que desenhasse. Se preferisse o cinema, que filmasse... Caso contrário, me tornaria um amateur. Levei um tempo para aprender que a única maneira de me tornar artista passava por não me especializar e misturar o que sabia. Às vezes é necessário construir um absurdo para demonstrar os limites do sentido.
O senhor é rico?
Tenho mais dinheiro do que necessito. Mas não tenho grandes necessidades.
Por que o senhor apaga e refaz continuamente seus trabalhos?
Suponho que por causa da insegurança. Preciso permanecer no provisório. Às vezes filmo os desenhos e eles se tornam desenhos animados da idade da pedra. Outras, com músicos ou atores, meu trabalho se transforma em uma ópera. Mas a parte estratégica se baseia no desenho.
O absurdo é fundamental em suas obras. Como brincar em situações trágicas?
O absurdo não é estúpido nem idiota. Refere-se sempre a uma lógica que foi rompida. A ideia de que um nariz pode abandonar um rosto levanta uma lógica falsa, que nos serve para falar sobre o medo das hierarquias ou sobre a divisão de alguém em várias pessoas. Se você quiser falar sobre o apartheid na África do Sul, esses recursos servem. O absurdo rompe a lógica racional e se apoia na irracional. É preciso levar o absurdo a sério.