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setembro 28, 2016
Bienais e iconofobia por Sheila Leirner, Estado de S. Paulo
Bienais e iconofobia
Post de Sheila Leirner originalmente publicado no blog Arte, aqui e agora no jornal Estado de S. Paulo em 27 de setembro de 2016.
Por falar em “faltar arte e sobrar ideologias” na 32ª Bienal de São Paulo (como está no artigo de Rodrigo Naves para o Caderno 2) , e em “visão bem pobre daquilo que se poderia aguardar como ‘a última palavra em arte hoje’ ” (como está no artigo de Aracy Amaral), publicamos aqui, na íntegra, mais uma entrevista recente de Rosalinda Fumarola ao jornal imaginário Valor Elevado. Fumarola é uma crítica de arte, curadora e gastrônoma ítalo-brasileira, também inventada por mim, que vive e trabalha entre Milão e São Paulo.
Valor Elevado – Como se manifesta, nas bienais e exposições de arte contemporânea, a iconofobia (o medo das imagens) à qual a senhora se referiu em seu artigo para o Corriere della Sera?
Rosalinda Fumarola – No resultado. Dá para ver claramente a diferença entre uma exposição feita por alguém diretamente apaixonado pelo objeto do seu trabalho (a arte) e alguém dominado apenas pelo amor à estratégia que lhe permitiu exibir o objeto deste trabalho. Fica tudo impresso, marcado… até mesmo na maneira de criar percursos e analogias entre as obras. No segundo caso, geralmente a escolha resta comprometida, as exposições tem pouca arte ou são frias, às vezes tornam-se bobocas porque se levam demasiadamente a sério. Mas são sobretudo destituídas de alma.
V.E. – Os trabalhos “difíceis” contribuem para que o público se afaste de manifestações do gênero?
R.F. – É sobre isso que eu queria falar: o público. Não são os trabalhos “difíceis” que afastam o público das manifestações do gênero. É a maneira como estes trabalhos são usados para criar uma estratégia de decepção.
Em meio a tantas denúncias ecológicas, políticas, etc., que saídas apontam as obras que enchem as Bienais?
V.E. – O que é esta estratégia?
R.F. – Veja, nos anos 1970/1980 só se falava na “Era da Desconfiança”, que vinha da literatura contestatária, do nouveau roman – com a crítica Barthesiana, Nathalie Sarraute, Robe-Grillet, Claude Simon, etc. – e que desembocava de certa maneira nas artes plásticas por meio da arte conceitual advinda não apenas de Duchamp, mas justamente da relação entre arte e literatura. Foi aí, em meio à desconfiança gerada entre leitor e autor ou entre público e artista, que nasceu a arte desmaterializada que, no fundo, nada mais era do que puro namoro entre arte e literatura. Hoje, como não existe mais nada para contestar dentro da arte – só no planeta – infelizmente entramos na “Era da Frustração” na qual, não apenas os artistas mas, sobretudo os que detém o poder institucional fazem exata e propositalmente o oposto daquilo que o público espera. Saindo de seus secretos e inatingíveis “conciliábulos de especialistas”, eles parecem dizer: “Você quer isto? Ah! Então não vai ter!” Trata-se de algo que, além de perverso, é a expressão máxima da coqueteria, coisa da ordem de uma sedução barata. O problema é que, sob o manto de uma aparente postura crítica séria, construtiva e politicamente correta, resta para o espectador apenas uma visão niilista. O que, paradoxalmente, não pode ser mais destrutivo e incorreto. Se não, em meio a tantas denúncias ecológicas, políticas, etc., que saídas apontam as obras que enchem as Bienais?
V.E. – Antes de falar sobre os trabalhos, pergunto então à senhora: o que torna iconofóbico um curador? Um curador, por exemplo, que na apresentação de uma bienal escreve sobre tudo, menos sobre arte?
R.F. – A iconofobia ou o medo das imagens é uma coisa antiga que remonta à crise do iconoclasmo bizantino nos séculos 8 e 9, tem uma história complexa no mundo judaico, árabe e cristão, passa pelas sociedades descritas por Walter Benjamin e McLuhan e se desenvolve em nossa época inclusive entre os fundamentalistas. Ninguém está isento dos seus perigos, menos ainda os curadores de grandes exposições que são obrigados a lidar com a enorme diversidade no meio de uma quantidade brutal de imagens. Se o curador for também um intelectual, aí o resultado pode ser catastrófico, pois os mais tocados pela tal fobia são estes, não me pergunte porque. Conheço vários para quem é muito reconfortante o refúgio apenas naquilo que conhecem…
V.E. – Isso pressupõe uma vocação…
R.F. – Eu ouvi uma entrevista do falecido sociólogo Pierre Bourdieu a respeito dos políticos. Dizia ele que existem os que (no caso, ele usou Segolène Royal como exemplo) embora se mostrem de esquerda, são – por sua personalidade, psicologia, experiência de vida e sensibilidade – de direita. E vice-versa. No caso dela, deixa supor Bourdieu, foi por oportunismo que inclinou-se à esquerda, onde para uma mulher é mais fácil vencer. Eu penso o mesmo sobre certos críticos e curadores. Há pessoas que, nem sempre por oportunismo, mas talvez apenas por desconhecimento de suas próprias capacidades, tornam-se críticos ou curadores quando – por suas características específicas – deveriam estar na universidade, no trabalho intelectual, na pesquisa ou em outros lugares. Lugares em que o amor, o prazer, a vivência, a criatividade, a experiência e a disposição subjetiva para a arte não são condições necessárias para um trabalho bem sucedido. Ninguém é obrigado a ser inventivo, sensível e apaixonado como é necessário tanto ao bom curador quanto ao artista. Ninguém é obrigado a amar ou estar profundamente envolvido com a arte. Por isso há outras profissões…
Existe coisa mais revolucionária do que natureza morta no meio desta “nova academia” da arte ideológica?
V.E. – Ainda subsiste espaço para o talento em antigas técnicas, como desenho, gravura e pintura? Ou eles são subjugados pela ditadura da, digamos, “expressão contemporânea”?
R.F. – Neste ponto sou categórica: há espaço sim! E se ditadura existe, deve estar com os dias contados. Técnicas jamais mediram contemporaneidade! Desenho, gravura, pintura, escultura são eternos. O que mede a pertinência ou a “contemporaneidade” de uma técnica é a sua linguagem. Um trabalho pode ser acadêmico, obsoleto ou retrógrado usando instalação com sucata e outro completamente revolucionário com pintura à óleo sobre tela. Eu, por exemplo, recomendaria hoje a um pintor talentoso fazer naturezas mortas. Existe coisa mais revolucionária do que natureza morta no meio desta “nova academia” da arte ideológica?
V.E. – A história será magnânima com esta “nova academia”? Que espaço as suas manifestações ocuparão nos livros de história da arte?
R.F. – Isso eu não sei responder. Se pensarmos na história hoje, ela foi magnânima e também não foi. Destacou e apagou muita coisa, e nem sempre com justiça. A história não é fiável. A crítica também não, porém entre uma e outra, penso que esta estará mais apta a esse julgamento…
V.E. – A arte contemporânea – essa arte contemporânea politicamente correta – dispensa o mercado. Isso é bom ou mau?
R.F.– Será que ela dispensa o mercado? Veja: quando galeristas espertíssimos como Iris Clert ou Leo Castelli nos anos 1950 e 1960 – só para dar dois exemplos pois existem muitos, hoje inclusive no Brasil – quando eles expuseram obras (e mesmo “performances”) totalmente invendáveis de Yves Klein ou dos artistas pop americanos, isto reverteu de forma extremamente positiva para os artistas e os galeristas em termos de mercado. Porque? Apenas porque estes mesmos artistas, num segundo tempo, iriam criar obras vendáveis. Altamente vendáveis e por preços astronômicos. O que acontece na bienal não é muito diferente: você expõe ali uma sucata gigante invendável, fica famoso e já pode começar a fazer sucatinhas mais amenas, em série, como trabalho alimentar. Que eu saiba, o mercado e a instituição – organizações cujos atributos são a “pura certeza” jamais são dispensados. Mesmo quando os artistas e a sua “arte da incerteza” parecem se colocar contra eles…
32ª Bienal de São Paulo: qual arte contemporânea? por Aracy Amaral, Estado de S. Paulo
32ª Bienal de São Paulo: qual arte contemporânea?
Artigo de Aracy Amaral originalmente publicado no jornal Estado de S. Paulo em 27 de setembro de 2016.
Apesar do título atraente, ‘Incerteza Viva’, edição às vezes recorda a quem já viveu a monotonia dos anos 1970
Difícil hoje ser curador de uma Bienal. Imagine-se um espaço amplo, monumental. Pensa-se: como povoar este território desafiador com obras nutrientes do que seja a arte contemporânea? E afinal, o que é arte contemporânea?
Como registrou um grande crítico: não há arte, há artistas. Mas, hoje, quais artistas? Partindo de um tema discutido e proposto pela curadoria, como se dá a escolha? Um tanto de África, um tanto da América Latina, um tanto do Brasil, afinal o hospedeiro, um tanto dos países do universo chamado “primeiro mundo” – os brancos, os desenvolvidos, entre eles os asiáticos de ponta do universo político-econômico global. E, se nesta Bienal se trouxe um número mais reduzido de participantes frente a outras edições, é menos difícil dialogar com os selecionados: há muito espaço, pode-se trazer obras maiores, ou vários trabalhos, a metragem quadrada por artista é generosa...
Embora se possa aqui incidir em enganos. Há artistas que não alcançam em grandes dimensões a excelência de suas provocações quando com obras de menor porte, como no caso de Erika Verzutti.
Há algumas Bienais assistimos à presença numerosa de “inventários”, anotações, arquivos apresentados monotonamente em folhas de cadernos ou pequenos retângulos emoldurados cuidadosamente, objetos colocados em sucessão no espaço reservado ao artista. A impressão que nos passam é de que não possuindo obras com vigor impositivo, seus autores apresentam anotações diárias – como na modesta contribuição de uma Ruth Ewan; ou na oca de Bené Fonteles, esta povoada com “seu” inventário. Sempre “guardados”, ou material de mapotecas, como raridades, tipo estudos de Leonardo, ou desenhos prévios para obras maiores, como as recém-descobertas de um Frans Post. Porém formam antes gabinetes com curiosidades dificilmente elevadas ao protagonismo de “obras”.
Daí porque torna-se difícil aceitar como comparece Antonio Malta, quem deveria se apresentar somente com suas grandes pinturas. E, no entanto, a curadoria expõe no verso de seu espaço intimidades de ateliê, que a meu ver empequenecem a pintura maior.
Outro dado que creio que ainda não se reconheceu é que um “vídeo” a ser apresentado em uma Bienal deve, obrigatoriamente, ser de “timing” dinâmico, 2-3 minutos no máximo. Pois trata-se de espaço que se percorre em ritmo de panorama.
Quem visita a Bienal? Estudantes de ensino médio, trazidos às dúzias, guiados, por quem? Qual o preparo desses heroicos monitores para definir aos incautos e curiosos visitantes o que é “arte de hoje” sem ideia do que se fez “ontem”? Ver a Bienal 2016 é por certo menos excitante que correr atrás de Pokémons – como fazem alguns grupos de várias idades correndo em manadas pelo Ibirapuera – afinal, vivemos em época desconcertante, para não dizer outra coisa.
Gente do meio artístico e cultural habituou-se a comparecer bienalmente para ver o que ocorre em arte contemporânea. Mas talvez seja bem desacorçoante o que se vê na Bienal. Logo à entrada, Xabier Salaberria dá o “clima” do evento para quem aprecia certos trabalhos de Thomas Hirschhorn e seguidores, que contagiam por poder trazer fragmentos e objetos descartados para dentro de instituições. Mesmo quando mesclados seus trastes com um bronze da respeitosa e culta Liuba Wolf (teria ela concordado em participar desse conjunto?)
Grandes painéis esvoaçantes pendentes dos tetos criam um clima de “leveza” tipo anos 1960 em meio às salas de “anotações de ateliês” – para não repetir “inventários”. E a beleza do piso da espacialidade vazia do apaixonado por madeiras como o é José Bento, sem que se justificasse sua segunda ocupação no térreo, sugere uma ausência de presenças possíveis.
Houve homenagens a já falecidos – como Öyvind Fahlström, Gilvan Samico, Leon Hirszman e Víctor Grippo – e a artistas de percurso reconhecido como Frans Krajcberg, Wilma Martins e Lourdes Castro, embora distintos em seus discursos no tempo e na arte.
Na verdade, apesar do título atraente, Incerteza Viva, a incerteza aflora nesta Bienal, sim, mas não tão viva... Às vezes recorda a quem já viveu a monotonia dos eventos dos anos 1970, embora agora embebida em rumos anódinos pelas aberturas em que se esgarçou o fazer artístico. Com visão bem pobre daquilo que se poderia aguardar como “a última palavra em arte hoje”.
Como comentou um historiador visitando a Bienal, arte é o que se vê em museus, coleções, galerias e feiras de arte, e não apenas o exposto nas manifestações expostas na Bienal 2016. A diferença é flagrante. Na ausência do “saber fazer” ou de quem sabe se expressar com acuidade se faz presente a dificuldade do diálogo, a conversação com a balbúrdia do clima das ruas, pichações, a desordem, a desconstrução do meio urbano. E a dificuldade de um pensamento claro, o debate passando para o nível das opções transexuais, dos limites indefinidos entre o virtual e o real, no excesso de informações em que vivemos. E pouco vejo que faça alusão aos fatos que mobilizam multidões no País desde 2013, da crise econômica, da tragédia de Mariana, da situação de porção considerável do País, dos indígenas – salvo pelo trabalho de Vincent Carelli! – do negro, da educação. Raros podem ter a clareza e a criatividade de um Alfredo Jaar para colocar sua obra a serviço do contemporâneo, é certo. Mas, se o artista é a antena do mundo, como dizia Pound com outras palavras, deveríamos poder ver mais, através da arte.
O artista inserido no contexto do cotidiano (Menna Barreto, encarregado da lanchonete) ou como designer (Park McArthur, projetista das lixeiras cúbicas em aço inox) nos transporta com simplicidade ao clima industrialista anos 1950. Porém não há qualquer estímulo a uma ida à Bienal, tipo “Vamos ver o que apresenta tal artista”, ou “Veio a retrospectiva de...”. Não há expectativas que impulsionem uma visita.
Como podem arquitetos, formados para a organização do espaço a partir de uma ideia e de um programa, projetar uma Bienal como esta? Tarefa tão ingrata quanto desafiadora para a seriedade do curador Jochen Volz. No caso da museografia, a equipe de Alvaro Razuk optou pelas aberturas amplas para o parque propiciadas pelo risco de Niemeyer. Para o olhar fatigado frente às contribuições “vintage”, o exterior é a opção de luz.
O entorno do parque assinala a possibilidade de resgate de algo perdido. Bem além dos grandes pneus recheados de plantas que não desejamos para nossos jardins. Se esta edição objetivou uma forma de diálogo com o meio ambiente, podemos perceber a dificuldade de uma poética ou do contato com a realidade atual através da arte. Terá faltado a agressividade de algum(ns) artista(s) ausente(s)? A verdade é que tampouco vimos na Bienal sinal de que melhores momentos venham a surgir.
32ª BIENAL DE SÃO PAULO
Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Pq. do Ibirapuera, portão 3; 5576-7600. 3ª, 4ª, 6ª e dom., 9h/19h; 5ª e sáb., 9h/22h. Grátis. Até 11/12
32ª Bienal de São Paulo: incertezas vivas? por Rodrigo Naves, Estado de S. Paulo
32ª Bienal de São Paulo: incertezas vivas?
Artigo de Rodrigo Naves originalmente publicado no jornal Estado de S. Paulo em 20 de setembro de 2016.
Faltou arte, onde as certezas são questionadas, e sobraram ideologias na edição da mostra, em cartaz até 11 de dezembro
Desde o fracasso da União Soviética em construir uma sociedade mais justa igualitária, nenhum outro sujeito social ocupou o lugar da classe operária como motor de transformações sociais profundas e libertárias. Mesmo assim – e por motivos impossíveis de serem discutidos num pequeno artigo de jornal – a ideia de uma sociedade mais igualitária e generosa permanece no horizonte.
Com relativa frequência surgem alternativas ao protagonismo do operariado nesse movimento de transformação. Na segunda metade da década de 1970, o Khmer Vermelho cambojano postulava um papel de vanguarda à juventude na criação de um novo homem, na esteira da Revolução Cultural maoista. Só conseguiu produzir uma das mais sanguinárias ditaduras da era moderna.
As diversas minorias também aparecem frequentemente como possíveis impulsionadores de uma nova sociedade. Elas têm inegavelmente contribuído para mudanças pontuais em leis e costumes, embora sua pouca vocação para o poder – talvez para nossa sorte – não as coloque como alternativa de governo.
Ultimamente, os artistas – sobretudo artistas visuais – vêm tentando preencher essa “lacuna”, conduzidos por novos Timoneiros, os curadores. Em entrevista à revista Bamboo de setembro deste ano, o curador-geral da 32.ª Bienal Internacional de São Paulo, Jochen Volz, responde da seguinte maneira a uma pergunta da publicação, acerca do mote da exposição, Incerteza Viva, que envolve várias questões contemporâneas, da ecologia ao multiculturalismo:
“É bonito pensar assim (a natureza não como objeto e sim como sujeito). Aqui você tem a ecologia que se desdobrou em micélio (ambiente rico em matéria orgânica), em leis, em bens comuns. Narrativa levou a questões de gênero, feminismo, descolonização, fazendo com que existam outros discursos, e não apenas os dominantes, a serem escutados. Educação é a ideia de valorizar outras formas de conhecimento, de permitir divergências, e está muito presente na discussão, no conhecimento do corpo e das várias culturas do mundo inteiro. E cosmologia trata de inícios e fins, no sentido da incerteza tão elementar que é o ‘de onde viemos e para onde estamos indo?’”.
Não é de estranhar que não haja uma palavra sequer sobre arte nessa resposta. As artes visuais, embora não nomeadas, devem se constituir na nova panaceia universal, a chama que iluminará o destino dos povos. Numa mostra com 81 artistas de vários continentes, não há como ir além de uma breve análise de uns poucos trabalhos expostos.
O veterano Frans Krajcberg há anos vem denunciando a destruição de nossas matas e manguezais. Acredito que esse seu empenho, sem dúvida louvável, é permeado por ambiguidades insolúveis. As intervenções pictóricas e escultóricas em troncos, galhadas e raízes aéreas dizimadas pelos homens ficam perigosamente próximas de um embelezamento da destruição da natureza.
Sem dúvida nossa atuação sobre a realidade tem muito de paradoxal, aproximando grandeza e devastação. Basta pensar nas hidrelétricas de Itaipu ou de Furnas. Nos trabalhos de Krajcberg, falta sobretudo a revelação da potência do mundo natural, apequenado por uma beleza pouco desafiadora. Por esse motivo, os três filmes de Leon Hirszman sobre canções de trabalho têm uma força superior. O trabalho árduo da extração do cacau, do corte manual da cana ou de mutirões para construção de moradias vem acompanhado de comoventes canções que dão ritmo e cadência ao esforço humano.
O cineasta reconhece simultaneamente nessas cenas de trabalho rudeza e encanto, com o que se afasta de uma visão paternalista do povo brasileiro, uma noção quase obscena, porque promíscua, da complexidade de nossa população. Lamentavelmente, essa noção permeia boa parte da Bienal. Nos poucos momentos em que se incorpora com perspicácia a criação das camadas mais pobres das populações mundiais a conquistas da arte moderna e contemporânea, os resultados convencem.
Os estandartes do chileno Felipe Mujica reúnem com força as bandeiras de tantas festas laicas e religiosas a formas de forte ressonância construtivista mais o diálogo com a arquitetura de Niemeyer, tirando ótimo partido de inúmeras questões levantadas pela arte contemporânea.
Alia Farid, uma jovem artista do Kuwait, realizou um vídeo sobre projeto de Oscar Niemeyer realizado em 1963 para uma Feira Internacional em Trípoli – a segunda maior cidade do Líbano e não a capital da Líbia. O projeto tem grande semelhança com o projeto do Parque Ibirapuera, onde está o prédio da Bienal. A falta de recursos e a prolongada guerra civil libanesa tornaram o parque uma espécie de cidade fantasma, e a delicadeza da filmagem lembra o vento assobiando sobre ruínas. Aqui, é a natureza que reivindica seus direitos sobre a intromissão humana.
Há gratas surpresas – ao menos para mim – na mostra. As duas telas do jovem pintor Misheck Masamvu, do Zimbábue, são um oásis para os olhos, em meio à cacofonia de jardinzinhos e casas de barro, muitas delas falsas, com estrutura artificial por baixo. O francês Pierre Huyghe apresenta uma foto e um vídeo instigantes. E os tecidos e desenhos computadorizados da sueca Charlotte Johannesson criam uma rica ambiguidade entre a longa tradição da tecelagem e os pixels de um programa de computador.
Por outro lado, alguns bons artistas (Erika Verzutti, José Bento, Francis Alÿs, entre outros) a meu ver não se saíram muito bem. O desenho da mostra, de Alvaro Razuk, é bom, e consegue aliar uma visibilidade digna das obras à presença do belo prédio de Niemeyer. O trabalho dos mediadores educativos é solícito e com informações precisas. Faltou arte, que é onde realmente nossas certezas são postas em xeque. Ideologias são tigres de papel.
32ª BIENAL DE SÃO PAULO
Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Pq. do Ibirapuera, portão 3; 5576-7600. 3ª, 4ª, 6ª e dom., 9h/19h; 5ª e sáb., 9h/22h. Grátis. Até 11/12
setembro 15, 2016
Rosana Paulino, artista plástica: 'O sistema de arte no Brasil é muito colonizado' por Júlia Amin, O Globo
Rosana Paulino, artista plástica: 'O sistema de arte no Brasil é muito colonizado'
Entrevista de Júlia Amin originalmente publicada no jornal O Globo em 14 de setembro de 2016.
Paulista com trabalhos voltados à questão do racismo e da mulher negra esteve no Rio para participar da série 'Diálogos sobre o feminino', no CCBB
"Tenho 49 anos e uma trajetória de 20 anos nas artes. Sou bacharel em Gravura pela ECA-USO, com especialização em Gravura pelo London Print Studio e doutorado em Poéticas Visuais pela USP. Meu interesse é a questão negra, com foco na posição da mulher negra na sociedade brasileira."
Conte algo que não sei.
As mulheres negras são uma das alavancas principais para o pensamento e a produção de arte contemporânea. Muitas meninas jovens negras estão se movimentando, correndo atrás de artes visuais, literatura, teatro. Elas trazem um sopro novo. Mas ainda falta representatividade.
Por quê?
O Brasil, curiosamente, é um país onde temos produção feminina que começa no início do século passado. Cabe a pergunta: por que as mulheres foram aceitas? Será que a função do artista não era vista como uma coisa importante? Outra questão é sobre a mulher negra. Quando a gente olha para o estrato social do país, ela vem por último, na base da base. Isso também vai se refletir nas artes. Tudo que acontece é reflexo de um campo maior, que é a sociedade.
Você é mulher, negra e de periferia. Como sua história contribuiu para o processo de criação artística?
Quando se é artista não se foge de quem é. Perceber que meus valores não estavam presentes na produção contemporânea me chamou atenção. Vi a falta de representatividade, a negatividade ligada à cultura negra, o estereótipo e uma construção de que o local social da mulher negra é aquele que passa da mucama para a empregada doméstica, da ama de leite para a babá. Questões que via todos os dias ao meu redor.
Em seu trabalho, você costura bocas, olhos e gargantas de negras. Por que usar uma técnica considerada feminina?
Pela ironia. A ideia que vem à cabeça quando se pensa o bordado é quase aquela imagem bucólica da mulher em um ambiente protegido, quando, na verdade, não percebemos a violência que existe entre quatro paredes. Quis inverter o sentido do objeto. É um trabalho que se lê em múltiplas camadas. Tento entender a História do país do ponto de vista negro e feminino. A boca que não fala, o som que não é ouvido, a impossibilidade de se ver no mundo como sujeito. Há um jogo de significados construído através da costura, um elemento simples e de domínio feminino, mas que pode ser extremamente violento.
Você foi vítima de violência doméstica?
Não. Mas na periferia isso é constante e mais visível. Já nas classes altas, é mais escondido. Poucas mulheres têm coragem de falar que foram vítimas. O Brasil tem essa questão de esconder a violência nessas classes. O que os vizinhos vão falar? Essa hipocrisia é um dos pontos que fazem com que a violência contra a mulher acabe sendo muito subterrânea. As classes mais baixas têm menos a perder no ponto de vista do escândalo. Nas mais altas, essa moral boboca e antiquada é um tiro no pé. A violência doméstica e a sexual ocorrem em todos os estratos.
Acredita que o mundo da arte é livre de preconceitos?
Em alguns momentos é mais aberto e, em outros, se nega a discutir questões ligadas à própria dinâmica da sociedade. Queremos falar sobre a violência, que está intrinsecamente ligada à construção do país. A questão é se os museus querem discutir isso. Agora estamos começando a ser acolhidos. O sistema de arte no Brasil é muito colonizado, aceita passivamente questões que vêm de fora sem debater se são pertinentes à nossa realidade. Sinto falta de discussões relativas à formação do país, sobre quem somos e o porquê desse grau de violência. Quem não pensa o país não encontra soluções para os próprios problemas.
setembro 14, 2016
Performances de Tunga emocionam a crítica no aniversário do Inhotim por Silas Martí, Folha S. Paulo
Performances de Tunga emocionam a crítica no aniversário do Inhotim
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha S. Paulo em 13 de setembro de 2016.
Minutos antes da performance, um coquetel animava o gramado à beira de um dos lagos do Inhotim. Taças tiniam em brindes ao aniversário de dez anos do megamuseu no meio do mato, e o jet-set da arte se maravilhava com o céu cheio de estrelas espelhado na represa –tudo turbinado por refletores verdes e violetas.
Mas essas cores quase radioativas logo sairiam de cena para dar lugar ao vermelho. Em silêncio total, todos marcharam até uma das galerias envidraçadas do museu à espera dos bailarinos que entrariam pelados ali para se lambuzar de geleia cor de sangue.
Era a grande atração da noite. Juntos a um emaranhado de frascos avermelhados pendurados do teto como marionetes, aqueles homens e mulheres fariam reviver "True Rouge". Essa instalação de Tunga foi uma das primeiras a entrar para a coleção de Bernardo Paz, empresário do minério que transformou sua fazenda nos arredores de Belo Horizonte numa espécie de Disneylândia das artes visuais.
"Tunga é o maior artista brasileiro. Ele é uma explosão, tinha uma inteligência sobrenatural", dizia Paz, sobre o artista morto há três meses e grande estrela da celebração da primeira década do museu, que decidiu reencenar suas ações mais famosas na semana passada. "Vejo as obras dele e choro. Era o meu melhor amigo."
Paz, aliás, não é o único a sentir essa paixão. Dizem que quando fizeram a primeira dessas performances no Inhotim, antes mesmo da abertura do museu para o público, a mulher do artista à época se atirou no lago, em êxtase diante da beleza daquela visão.
Talvez pensando nisso, a coreógrafa Lia Rodrigues, que idealizou a performance com Tunga, tenha decidido fazer uma mudança dramática. Em vez de detonar a ação com os bailarinos já dentro da galeria, ela escondeu todos no lago.
Depois que um ator no meio da plateia fez um discurso sobre jararacas entrelaçadas –alusão à performance "Vanguarda Viperina", que envolve cobras sedadas e foi cancelada por causa de protestos de defensores dos animais– eles saíam da água aos poucos, como répteis em transe, à luz verde dos refletores.
Um a um, eles trepavam no guarda-corpo à beira do lago para entrar na galeria, atravessando a multidão. Ninguém dizia nada –no ar, só cliques das máquinas fotográficas e o ronco dos sapos na mata.
Lá dentro, eles afundavam as mãos em tinas brancas, de onde tiravam e esticavam montes de gelatina vermelha. Essa gosma sanguínea de repente lembrava um véu translúcido, que cobria o corpo nu dos bailarinos como uma segunda pele viscosa.
Mais para o meio da ação, eles entornavam os baldes de geleca e se refestelavam no chão, numa agonia em câmera lenta emoldurada pela vermelhidão. Tunga, aliás, havia pensado nisso inspirado por um poema escrito em forma de equação pelo britânico Simon Lane, mas a performance desconstrói todo o rigor métrico da escrita numa espécie de explosão orquestrada, o caos regido como um balé.
Mesmo os mais calejados críticos, artistas e diretores de museu ali pareciam embasbacados, muitos choravam.
Mas as demais performances deixaram um tanto a desejar. As famosas "Xifópagas Capilares", as gêmeas unidas pelos cabelos imaginadas pelo artista, circularam horas antes pelo museu. As garotas eram adoráveis, mas tudo teve mais a cara de um número de circo do que a mesma potência de "True Rouge", talvez pela lembrança confortável de sempre ver essas meninas de costas em fotografias em preto e branco.
Na hora da sopa de beterraba servida diante de outra escultura de Tunga, mais uma de suas ações na linha rubra, a repulsa de uns ao tubérculo impediu um mergulho total na obra. Até Bernardo Paz desviava das colheradas que a mulher tentava enfiar na sua boca. Mas nada impediu, no entanto, que o museu revivesse o espírito intenso de um artista maior. E a noite terminou com aplausos para Tunga.
Almost one third of solo shows in US museums go to artists represented by five galleries by Julia Halperin, The Art Newspaper
Almost one third of solo shows in US museums go to artists represented by five galleries
Artigo de Julia Halperin originalmente publicado no jornal The Art Newspaper em 2 de abril de 2015.
Survey reveals prevalence of Pace, Gagosian, David Zwirner, Marian Goodman and Hauser & Wirth in exhibition programming
Nearly one-third of the major solo exhibitions held in US museums between 2007 and 2013 featured artists represented by just five galleries, according to research conducted by The Art Newspaper. We analysed nearly 600 exhibitions submitted by 68 museums for our annual attendance-figures survey and found that 30% of prominent solo shows featured artists represented by Gagosian Gallery, Pace, Marian Goodman Gallery, David Zwirner and Hauser & Wirth (for methodology, see below).
The figure raises questions about the growing influence of a small number of galleries in a rapidly consolidating art market—especially when they often offer logistical and financial support for exhibitions. At the same time, some wonder whether museums are doing enough to expose the public to art they would not otherwise see.
Museums “should be looking at a much wider swathe of artists”, says Robert Storr, the dean of the Yale University School of Art. “Curators are abdicating and delegating their responsibilities… to more adventurous gallerists who, aside from the profit motive and in some respects because of it, seem in many cases to be bolder and more curious than their institutional counterparts,” Storr says.
Close relationship
More than 90% (or 11 out of 12) of the major solo exhibitions at New York’s Solomon R. Guggenheim Museum between 2007 and 2013 featured artists represented by the same five galleries. A spokeswoman for the museum says that it selects artists “by the excellence, uniqueness and relevance of their practices, not by which galleries represent them”. She adds that the museum promotes emerging artists through smaller exhibitions and projects like the UBS MAP Global Art Initiative. (If these smaller shows are taken into account, around 55% of the museum’s solo exhibitions featured artists from the five galleries.)
The number of big-name artists in museums’ programmes varied widely depending on each institution’s size, mission, audience and budget. Around 15% of the solo exhibitions at the Contemporary Arts Museum, Houston, and the Hammer Museum, Los Angeles, featured artists from the five big galleries. The figure was around 45% for single-artist shows at New York’s Museum of Modern Art (MoMA).
Some say that an overlap between top galleries’ rosters and museums’ exhibition schedules is inevitable. “These galleries take on artists in their mid- to late careers; in other words, at the very stage where their longevity and critical recognition reaches a peak [that means] they are likely to be the subjects of solo exhibitions,” says the museum consultant András Szántó. The dealer Marian Goodman says her gallery chooses to work with artists “who will be recognised not just for a year or two but for a very long time”.
Helen Molesworth, the chief curator of the Museum of Contemporary Art, Los Angeles (LA MoCA), sees the statistic as “a symptom of how culture works in general, which is towards consolidation”. The museum dedicated more than 40% of its solo shows to artists represented by the five galleries. “What are you going to do? They have amazing groups of artists. You can’t be wilful and say, ‘I’m not going to show this person’,” she says.
Some note that gallery representation does not guarantee exposure to a wider public. The New Museum, which is committed to “bringing New York audiences the art and artists that otherwise would not be shown”, according to Massimiliano Gioni, its artistic director, dedicated around 40% of the major shows submitted for our survey to artists associated with the five galleries. But around 85% of these artists had not previously had a major museum show in New York or the US, according to Gioni. (A spokeswoman for the museum says that less than 25% of its overall programme featured artists represented by these galleries.)
The over-representation of a particular gallery’s roster can also be an unintentional consequence of shared tastes. After the Institute of Contemporary Art in Boston held several shows of work by Latin American artists, Molesworth, the museum’s former chief curator, realised that “we ran the risk of being Kurimanzutto north”, referring to the Mexico City-based gallery. “We had to make adjustments. The [aim] has been to avoid even the appearance of that problem, even when it emerges very naturally out of legitimate interests,” she says.
Tunnel vision
Nevertheless, some say that museums are missing out on the opportunity to steer the conversation by focusing disproportionately on an elite group of around 300 international artists and estates. The pressure to draw crowds and keep the budget for every exhibition in the black has made curators less likely to organise “monographic shows that essentially introduce an artist to everybody”, Robert Storr says.
More than 200,000 fine artists live in the US alone, according to a 2011 report from the National Endowment for the Arts. More than 250 international galleries participated in the selective Art Basel in Miami Beach fair last year. “The concern is that art not related to a commercial mechanism of that scale will not get sufficient representation,” says the New York-based dealer Franklin Parrasch.
The data underscore the close ties between museums and top galleries, which regularly exchange loans and collaborate on acquisitions. Museums in New York, where four of the five galleries are based, were 75% more likely than museums in Los Angeles to dedicate a solo show to one of these artists.
Financial support
In the run-up to a major solo show, galleries often provide curators with access to archival images, pay shipping costs, pre-order hundreds of catalogues and help to finance the opening reception, according to sources. “If a major museum is flirting with a show, we’ll play ball as much as we have to,” says one director of a medium-sized US gallery.
“Museums are very important to us,” says Marian Goodman. “We’re not trying to buy the museums. We are interested in making it easy for them to do their research by giving them access to our archive or any information that we have.” (The four other galleries mentioned declined to comment or were unable to respond.)
More controversially, dealers sometimes finance shows directly. Gagosian, Emmanuel Perrotin and Blum & Poe each contributed a six-figure sum to a Takashi Murakami solo show at LA MoCA in 2007, according to the New York Times. Notably, exhibitions dedicated to big-gallery artists were over 40% more common between 2007 and June 2009, when the recession caused corporate sponsorship to plummet, than in the ensuing years.
“To ask any of these galleries for a couple of hundred thousand dollars for a show is nothing. It’s like asking them to pick up a lunch tab, especially when you consider the sales that might result,” says one New York-based gallerist. “Asking a trustee to do that is a favour, and you don’t necessarily want to call that one in.” Marian Goodman says she has “not been asked very often” to fund exhibitions directly. “I think the larger museums tend not to ask, and we’re mostly dealing with larger museums.”
The Association of Art Museum Directors does not have a specific policy on the kind of support that institutions can accept from galleries. Nor do most museums. (There are exceptions: MoMA and the Walker Art Center in Minneapolis, for example, say that they do not accept direct financial support for shows.) Furthermore, “gallery affiliations do not play a role in which artists have solo shows at MoMA”, a statement from the museum says.
Beyond statistics, the extent of commercial influence on museums is difficult to discern. “You’d have to have more information about who is making decisions, why they are making them and where the money is coming from,” says Sally Yerkovich, the director of the Institute of Museum Ethics at Seton Hall University, New Jersey. She likens the dynamic to one of self-censorship, where decision-makers are often loath to acknowledge that they have taken the path of least resistance. “Only the person censoring themselves can really answer,” she says.
Data analysis by Nilkanth Patel
• For our complete 2014 Visitors Figures survey see the April issue of The Art Newspaper, which is on sale now, or download the app from the App Store and Google Play
Methodology
We examined 590 solo exhibitions of contemporary artists that were submitted by 68 museums for our annual attendance-figures survey between 2007 and 2013. Our data do not include every solo exhibition the museums staged during this period; some institutions did not submit data about their smaller shows and projects. We defined “contemporary artist” as an artist active after 1950 working in any medium except fashion, architecture and design. Representation was determined by the list of artists published on each gallery’s website, excluding those who had not had an exhibition at the gallery in the past ten years. The five galleries—Pace, Gagosian Gallery, David Zwirner, Marian Goodman Gallery and Hauser & Wirth—were sel ected based on size (number of locations, artists and staff members) as well as published estimates of annual turnover. The exhibition data and attendance figures from 2014, including exhibitions that opened in 2013 but closed last year, were not finalised in time to be included. J.H.
Bienal da experimentação opta pela correção e não surpreende por Antonio Gonçalves Filho, Estado de S. Paulo
Bienal da experimentação opta pela correção e não surpreende
Crítica de Antonio Gonçalves Filho originalmente publicada no jornal Estado de S. Paulo em 13 de setembro de 2016.
Há bons artistas na mostra, mas poucas obras marcantes, predominando o conceito sobre a realização
Uma bienal chamada Incerteza Viva, como a 32.ª edição da mostra, não pode ser avaliada segundo os parâmetros convencionalmente usados para julgar outros eventos do gênero, até mesmo porque o projeto curatorial, que transformou a bienal numa plataforma do conceito, deu carta branca aos artistas para criar obras experimentais sobre o dilema do homem contemporâneo diante do colapso ecológico e das exóticas tecnologias associadas ao fim de um ciclo natural. Um dos trabalhos presentes na mostra, aliás, trata particularmente do último tema, o da dupla lituana Nomeda & Dediminas Urbonas, que se inspirou nas histórias fantásticas de Vermillion Sand (1971), livro de contos do inglês J. C Ballard.
Todos esses contos da distopia de Ballard têm um componente anacrônico que se atualiza por meio de bizarras tecnologias: são casas sensíveis à presença humana, pinturas que reagem à luz, plantas que cantam e esculturas feitas de nuvens. Ballard tinha uma fértil imaginação literária, mas é difícil transpor suas ideias para o campo visual. Prova disso é essa instalação da dupla Nomeda e Dediminas Urbonas. Algumas outras propostas dos 81 artistas e coletivos participantes parecem igualmente interessantes, mas a realização é simplesmente precária. Rudimentar mesmo.
Uma delas, a da paquistanesa Maryam Jafri, que trabalha no território da antropologia cultural, reúne produtos industrializados recolhidos do mercado desde 1970, como uma mamadeira para tomar Pepsi-Cola. Obras como essa, que resgatam a arte conceitual do limbo – Jafri segue os passos de Ed Ruscha – contestam a lógica uniformizadora da indústria, a de tratar nossa comida como commodity, mas não acrescentam muito à história da arte.
A nostalgia de um mundo agrário, ancestral, domina a mostra. Quando tratam do futuro, quase sempre os artistas elegem a distopia como tema, caso da obra Paraíso, do gaúcho Luiz Roque. Seu vídeo, ambientado na segunda metade do século 21, trata de um vírus transmitido pela saliva de transexuais que ameaça a humanidade – o artista, claro, condena a retórica preconceituosa em voga desde o advento da aids nos anos 1980. Em outro trabalho, a instalação da alemã Hito Steyerl, Hell Yeah We Fuck Die (2016), feita de vídeos sincronizados, robôs são agressivamente enxotados da linha de controle de qualidade, forçando uma associação analógica com o descarte dos humanos na sociedade contemporânea.
A articulação de um conceito artístico nunca foi garantia de boas obras. Ao contrário. Muitas vezes, o aspecto autorreferencial redunda em trabalhos conceituais militantes e datados, como o do colombiano Carlos Motta ou do norte-americano Lyle Ashton Harris, focados na questão racial e sexual – Harris recorre frequentemente à fotomontagem e ao travestismo, evocando a ambivalência sexual na cosmologia africana.
As obras mais interessantes desta bienal escapam dessa prisão antropológica. O belga Francis Alÿs, operando num espaço entre a política e a poesia, mostra pequenas paisagens e desenhos instalados em espelhos que revelam o reverso das obras, integrando o ambiente institucional ao tema da catástrofe de sua série In a Given Situation. Outro destaque da Bienal é o francês Pierre Huyghe e sua série De-extinction, que apresenta em seu filme imagens gigantescas de insetos presos num fragmento de âmbar.
Entre os brasileiros, embora discreta, a presença da pintora Wilma Martins é marcante, mas a tendência rabelaisiana para o monumental se traduz em várias obras, das torres da mineira Lais Myrrha no vão livre do pavilhão à oca concebida por Bené Fonteles, logo à entrada do portão principal. Lugar de encontro entre figuras icônicas da arte experimental (Yves Klein, Beuys) e o universo indígena, a oca do artista paraense é um elegia ao transculturalismo.
O mineiro José Bento, ao criar seu Chão com tacos reaproveitados e criar zonas de instabilidade no piso, construiu um playground para crianças. Não é muito. Os três painéis de Erika Verzutti são híbridos entre pintura e escultura com referências à arte primitiva, mas filtrados por um olhar contemporâneo. Enfim, trata-se de uma bienal politicamente correta. Tão correta que parte do público que circula pelo pavilhão julga ser mais uma mostra ecológica que uma exposição de arte.
32ª BIENAL DE SÃO PAULO
Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Pq. do Ibirapuera, portão 3; 5576-7600. 3ª, 4ª, 6ª e dom., 9h/19h; 5ª e sáb., 9h/22h. Grátis. Até 11/12
setembro 8, 2016
Bienal de São Paulo aborda barbárie com obras sutis por Fabio Cypriano, Folha de S. Paulo
Bienal de São Paulo aborda barbárie com obras sutis
Crítica de Fabio Cypriano originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 7 de setembro de 2016.
Incerteza Viva, a 32ª edição da Bienal de São Paulo, com curadoria de Jochen Volz, Gabi Ngcobo, Júlia Rebouças, Lars Bang Larsen e Sofia Olascoaga, é uma exposição delicada em um momento de conflito. Essa condição é vista logo na entrada, onde está disposta a obra de Frans Krajcberg: troncos, raízes e pedaços de madeira calcinadas são transformados pelo artista em totens que lembram a destruição, mas são também estruturas de uma nova ordem possível.
Mesmo ao abordar questões dramáticas como racismo, catástrofes ambientais ou genocídio indígena, esta é uma Bienal silenciosa, que se percebe em atitudes discretas. Ao lado da obra de Krajcberg, Bené Fonteles constrói uma oca, um lugar de encontros e de diálogo, que contrasta com a escala fria e agigantada do pavilhão.
Lá, onde pequenos altares homenageiam outros artistas, como Rubem Valentim, e militantes sociais, como Davi Kopenawa, entre outros, uma programação semanal produzirá debates em pequena escala.
Logo à frente, o filme "O Peixe", de Jonathas de Andrade, apresenta pescadores que abraçam suas presas após capturá-las, construindo um ritual de ternura e solidariedade frente à morte.
Quando pessoas celebram publicamente que uma jovem que perde um olho por violência policial mereceria perder o outro, obras como "O Peixe" ganham poder de manifesto: não há vítima que não mereça solidariedade.
A necessidade do respeito se amplia na obra "Espelho de Som", de Eduardo Navarro, composta por um instrumento que sai do pavilhão para chegar até a copa de uma palmeira, apontando para a necessidade de escuta da natureza.
Assim, "Incerteza Viva" constitui-se como uma mostra que evita o espetáculo ao tratar da barbárie. A única obra agigantada é "Dois Pesos, Duas Medidas", de Lais Myrrha, composta por duas torres no vão central do pavilhão: uma de materiais orgânicos, outra de elementos de construção civil.
Novamente, contudo, uma obra da Bienal apresenta um encontro entre dois universos opostos, mas sem confronto.
Não se trata, no entanto, de uma Bienal pacificadora, mas de uma espécie de lente de aumento que busca revelar processos, como a projeção de luz branca sobre a rampa "White Museum", obra de Rosa Barba. Nela, percebe-se que produzir imagens pode ser hoje um ato desnecessário: é preciso apenas iluminar por onde se caminha.
Essa sutileza em se aproximar de questões cotidianas se repete ao longo da mostra. Há a apologia ao lazer quando o trabalho domina todas as relações no poético filme "Gozolândia", de Priscila Fernandes, que retrata os frequentadores do parque Ibirapuera.
Há também a ironia do hilário "Uma História do Humor", de Gabriel Abrantes, filme que trata do amor de uma índia com um robô sem corpo.
Mesmo ao abordar a violência de Estado, Ebony G. Patterson cria tapetes multicoloridos e brilhantes, que apenas quando observados atentamente revelam cenas de opressão social.
Discretas também são as obras de Pierre Huyghe e Francis Alÿs. O primeiro exibe um filme com imagens microscópicas de insetos presos há milhões de anos em um pedaço de âmbar e uma sala contigua com centenas de moscas, contrapondo passado e futuro.
Já Alÿs apresenta pequenas pinturas expostas em paredes envidraçadas, já que há imagens em ambos os lados das telas, e uma animação desses jogos recorrentes no centro da cidade, com três copos e uma bola.
Aí, novamente surge a imagem de pequenos gestos, tão recorrentes ao longo da mostra. Mesmo que na abertura da Bienal artistas tenham se manifestado contra o golpe, suas obras se apresentam menos militantes, mas não por isso menos sensíveis a processos de desmonte social.
Contudo, para uma mostra tão sensível, soa desmedido e de mau gosto o logo de um dos patrocinadores estampados em todo o mobiliário espalhado pelo pavilhão. Patrocínio é essencial, mas uma marca não pode ser a imagem mais recorrente de uma exposição.
EVENTO DURARÁ TRÊS MESES
Com entrada gratuita, a 32ª Bienal de São Paulo, cujo tema é "Incerteza Viva", começa nesta quarta-feira (7) e fica em cartaz por mais de três meses, até 11/12. O pavilhão Ciccillo Matarazzo, dentro do parque Ibirapuera (zona sul de SP), fica aberto aos visitantes das 9h às 19h (terças, quartas, sextas e domingos); e das 9h às 22h (quintas e sábados).
Programação completa no site.
32nd Bienal de São Paulo by Dan Fox, Frieze
32nd Bienal de São Paulo
Artigo de Dan Fox originalmente publicado na Frieze em 6 de setembro de 2016.
First impressions of the biennial which focuses on the uncertainty of today’s world
These days there are many people certain about how the world should run. Donald and his Trumps. The Brexit blowhards. The King Canutes of climate change, deluding themselves they can command global sea levels to drop. Their certainty festers in fear and resentment. Or, as W.B. Yeats put it: ‘The best lack all conviction, while the worst / Are full of passionate intensity.’ The curators of the 32nd Bienal de São Paulo appear to be with Yeats, and have a long shopping list of doubts. Titling their exhibition ‘Incerteza Viva’ (Live Uncertainty), they hold that ‘in order to confront the big questions of our time objectively, such as global warming and its impact on our habitats, the extinction of species and the loss of biological and cultural diversity, rising economic and political instability, injustice in the distribution of the earth’s natural resources, global migration and the frightening spread of xenophobia, it is necessary to detail uncertainty from fear.’ I’m certainly worried sick just thinking about it.
Art is a field in which uncertainty is welcome. Ambiguity, chance, and improvisation are all valued qualities in the creative process. A willingness to stumble through the dark is vital for artists to make leaps of imagination, or develop idiosyncratic approaches to research. Even the simple choice to work in collaboration with other creative minds is a decision to embrace the unknown. Jochen Volz, together with co-curators Gabi Ngcobo, Júlia Rebouças, Lars Bang Larsen and Sofar Olascoaga, have put together an engaging, modest, polyphonic biennial that aims to map these principals onto politics and society. Like any leap into the unknown, it sometimes comes a cropper – there are passages in the show that evanesce into mystic abstraction, or would be more at home as didactic exhibits in a natural history museum – but ‘Incerteza Viva’ also stamps the mind with stark, indelible images of social upheaval and ecological brinksmanship. Featuring 84 artists and artist groups, largely from Latin America, it’s a biennial that avoids the usual marquee names, favouring younger or lesser-known participants. It’s a show in which you’ll see a lot of earth, fungi, insects, handmade objects, anthropological dabbling in rural areas or small towns. It’s a biennial for when the lights go out, the server farms crash, and your aluminium-cased laptop is good for nothing other than patching a leaky hole in the roof.
Even if this biennial worries itself with end-of-the-world undertones, it manages to avoid the political nostalgia trap that has made so many large exhibitions in recent years so interminable. You know the kind of show: vitrine after vitrine of archival photographs recording an ‘action’ in some German kunsthalle circa 1972, its insurgent significance explained to death by the curators with all the seditious excitement of taking Ambien in order to watch paint dry. Viewing shows such as those in the relative comfort of the West was always a queasy, self-congratulatory experience, even before financial meltdown, the refugee crisis and the rapidly accelerating demise of our planet. But today, the sense that political systems the world over are fucked has never – at least for Westerners from the northern hemisphere such as me – been so palpable. Biennials drenched in the terminology of ‘subversion’, ‘interrogation’, ‘revolution’, ‘boundary breaking’ and ‘rebellion’ but with none of the realpolitik, just look like play-acting when things start to actually get real – when you really can be beaten up for subversion or interrogated and thrown in jail because of your work. (Just look at the numbers of journalists and artists who have been arrested in Turkey following the recent failed coup.) The day before this year’s São Paulo Bienal opened, a reported 50,000 people marched through the streets of the city in protest at the impeachment of ex-president Dilma Rousseff and her replacement by the conservative Michel Temer. During the press preview of the show, in an act of collective protest organized by the group Opavivará, participating artists wore black-and-white T-shirts demanding Temer stand down and for elections to be held. Politics and the São Paulo Bienal have long been intertwined, but the politics are squeezing harder than ever before.
An extended review of the biennial will appear in the November/December issue of frieze. In the meantime, here are five of my highlights, given to you with the caveat that to be a critic, you’re always living with the uncertainty that any of your opinions will be worth anything at all:
Jonathas de Andrade, O peixe (The Fish) (2016)
‘Incerteza Viva’ features a number of works influenced by ethnographic documentary film, and depicting indigenous peoples. The ethics of this cinema have been contested for decades, and any artist taking it on today has to know what thorny debates about representation they’re getting themselves into. Jonathas De Andrade’s new film, O peixe (The Fish), is filmed in the state of Algoas, in the northeast of Brazil, and depicts local fishermen at work. He shows them catching the fish, then caressing them in their arms, gently stroking the creature’s scales as they asphyxiate. The images are disturbing, and the film’s atmosphere suggests that this is a traditional ritual, a primitivist fantasy of fishermen honouring the symbiotic relationship between humans and nature. Yet all is not as it seems, and De Andrade builds tension between those scenes that are pure documentary, and those in which a fiction is playing out, in which the erotic gaze of De Andrade’s camera ovewhelms the factual record of death.
Eduardo Navarro, Sound Mirror (2016)
A wooden stool is placed next to one of the tall glass walls in Oscar Niemeyer’s biennial pavilion. A brass tube, at roughly ear height if you’re sitting on the stool, snakes out through the window and flowers into a giant ear trumpet, or Victrola horn, pointing into the leaves of a tall palm tree. Speak to the tree or listen to it –you never know what you might learn.
Ruth Ewan, Back to the Fields (2015–16)
Many projects in this year’s biennial look to nature for models of survival and organization. (What could be more anthropocenic than plundering the natural world for ideas as well as resources?) In Back to the Fields, Ruth Ewan speculates how human agriculture might alter if we changed our systems of marking time. She takes the French Republican Calendar, imposed during the tumultuous revolutionary years in France from 1793 to 1805, and uses it to map out a year-long cycle, divided into four quarters, on wooden platforms. Each month – from Vendemiaire, at the autumn equinox (what we call September), through to Fructidor (mid-to-late August) – is divided into three ten-day weeks, and each day is assigned a plant or object, carefully catalogued and arranged by Ewan on the platforms. (The 5th of Thermidore, for instance, is a fearsome-looking ram’s skull.)
Back to the Fields looks a little like an occult game to be played in a gardening shop, but it’s a reminder of the arbitrary values we place on plants, animals and the passing of each day.
Bárbara Wagner & Benjamin de Burca, Estás vendo coisas (You Are Seeing Things) (2016)
Estás vendo coisas (You Are Seeing Things) is shot in Recife, and depicts the making of videos for the city’s brega music scene. Wagner and De Burca’s film depicts a complex subculture: one that’s characterized by wild fashions, escapist dreams, and chauvinist attitudes. This portrait of a scene switches between fantasy and documentary, along the way suggesting how brega provides an identity for the performers, a respite from the economic realities of their lives in northeast Brazil.
Dineo Seshee Bopape, :indeed it may very well be the ________ itself (2016)
A set of dark, heavy, compressed soil blocks is arranged in loose groupings. Embedded in shallow depressions on top of the blocks – echoes of African Morabaraba and Diketo games – are gold leaves, flower petals, herbs, and ceramic casts made with a fist. It’s a simple yet affecting meditation on the occupation of land and displacement from it, of memory and earth, and the precarious relationship that communities have to the ground beneath our feet.
Also noted:
Lais Myrrha, Dois pesos, duas medidas (Double Standards), 2016 (you can’t miss them – two giant towers rising through the floors of the pavilion); Pierre Huyghe, De-Extinction, 2016, (without giving too much away, I’ll be curious to know how bad the fly problem gets inside the biennial pavilion during the course of the show); Hito Steyerl, Hell Yeah Fuck We Die, 2016 (features a soundtrack by Kassem Mosse, and wild footage of disaster relief robots in experimental development); Luiz Roque, HEAVEN, 2016 (an intriguing sci-fi short); Maryam Jafri, Product Recall: An Index of Innovation, 2014–15 (ever wondered what happened to Pepsi-Cola in bottles for babies? Now’s your chance); Vivian Caccuri, TabomBass, 2016 (a bass-heavy sound-system, developed out of research into the Brazilian diaspora to Ghana, and made in collaboration with musicians in Accra); Wilma Martins, works from the series Cotidiano (Everyday), 1983 (a quiet, elegant and disquietingly surreal set of paintings and drawings set in domestic environments: buffalo charging across the plains of a bedspread, for example, or a wild forest growing from the needle of a sewing machine); Wladimir Dias-Pino, Enciclopédia Visual Brasileira (Brazilian Visual Encyclopedia), 1970–2016 (an eye-popping selection of images by the 89-year old artist, poet, graphic designer and window dresser).
setembro 5, 2016
Protesto contra Temer marca abertura da Bienal de SP para a imprensa por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Protesto contra Temer marca abertura da Bienal de SP para a imprensa
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 5 de setembro de 2016.
Um protesto de artistas contra o presidente Michel Temer marcou a entrevista coletiva dos curadores da Bienal de São Paulo na manhã desta segunda.
Depois que os responsáveis pela 32ª edição da mostra, que será aberta ao público nesta quarta, terminaram a apresentação, um grupo de artistas da mostra liderados por membros do coletivo Opavivará marcharam até a frente da mesa dos curadores gritando "fora, Temer" e "golpistas, fascistas não passarão".
O artista Amilcar Packer lembrou que 26 pessoas haviam sido presas numa manifestação nos últimos dias na cidade. O ato durou cerca de cinco minutos e foi aplaudido por grande parte dos jornalistas que acompanhavam a entrevista coletiva.
Mesmo os curadores da mostra, incluindo o chefe da equipe, o alemão Jochen Volz, lembraram a tensão política em suas falas. "Em seu discurso de posse, Michel Temer disse que havia acabado a incerteza, mas nós queremos falar da incerteza sim", disse Volz, aludindo ao título desta edição da mostra, "Incerteza Viva".
Dentro do pavilhão, os artistas circulavam usando camisetas com os dizeres "quero votar para presidente", "direjas já", "fora Temer", entre outros. Elas foram produzidas pelo Aparelhamento, coletivo que se formou em torno da ocupação da sede paulistana da Funarte, desfeita em julho.
Além dos artistas da mostra, alguns críticos estrangeiros circulavam com as camisetas pretas e brancas criadas para o ato.
Bienal começa na quarta com maior presença feminina e apelo ecológico por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Bienal começa na quarta com maior presença feminina e apelo ecológico
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 4 de setembro de 2016.
"Hell, yeah, we, fuck, die." Juntas, essas palavras em inglês – inferno, sim, nós, fode, morre – formam uma frase quase perfeita, com sujeito e predicado. No segundo andar do pavilhão da Bienal de São Paulo, escritas com letras de acrílico e concreto, elas formam um outdoor às avessas, um verso que resume –gritando – a paisagem sonora atual.
Hito Steyerl, artista alemã que está entre os 81 nomes escalados para a mostra que começa agora, estudou as letras de músicas no topo das paradas na última década e concluiu que esses termos são os que mais se repetem, indicando uma propensão à violência e ao sexo, ou às duas coisas ao mesmo tempo, seguidas de morte.
"Há muitas camadas, mas a violência está em todos os lugares", diz a artista. "Já não pisamos mais em terra firme. Estamos nadando num dilúvio."
Tempestades, reais ou metafóricas, também orientam grande parte das obras da mostra, mas a forma de narrar o caos passa em grande parte por um filtro feminino – a 32ª edição do evento paulistano tem mais de metade de seu elenco formado por mulheres, o maior número de todos os tempos. E elas têm os olhos vidrados num mundo em colapso, alvo de catástrofes insuspeitadas que ganham vulto no horizonte.
"De um segundo para o outro, tudo vira um inferno", diz Jochen Volz, o alemão à frente da exposição, diante de um vídeo da americana Rachel Rose, no térreo do pavilhão. Na tela, um dia de sol na praia se transforma de repente numa chuva de granizo, e banhistas correm em busca de abrigo.
Ela intercala essas imagens a outras do arquiteto Philip Johnson explicando como sua famosa casa toda de vidro foi construída nos Estados Unidos seguindo as dimensões do corpo humano. O prédio transparente do filme ecoa o pavilhão de Oscar Niemeyer no Ibirapuera, numa quase fusão entre a obra e seu ambiente.
Mas o contrário é mais recorrente. Nesta Bienal, arquiteturas feitas de terra, com formas orgânicas, entram em choque com a limpeza austera do modernismo brasileiro.
Essa dicotomia toma dimensões monumentais no vão central do pavilhão, onde Lais Myrrha ergueu duas torres imensas, uma de tijolos e vergalhões de ferro e outra de terra batida e palha, contrastando métodos de construção dos índios e caboclos com a arquitetura urbana.
Outros artistas também tocam nesse ponto, espalhando os marrons e ocres do barro e da lama pelo piso de concreto de Niemeyer. Logo na entrada, Bené Fonteles construiu uma oca que abraça as colunas do pavilhão, Frans Krajcberg criou uma floresta de esculturas de galhos retorcidos e a britânica Ruth Ewan montou um calendário usando plantas e verduras.
Mais adiante, a portuguesa Carla Filipe fez uma horta, a peruana Rita Ponce de León criou um labirinto de barro, os lituanos Nomeda & Gediminas Urbonas cultivam cogumelos em estufas, a finlandesa Pia Lindman construiu uma cabana de barro e a australiana Susan Jacobs projeta imagens em placas de vidro espetadas na terra.
Vistas uma atrás da outra, essas obras pisam e repisam um mantra ecológico, dando a sensação de caminhar entre jardins de plantas estranhas.
"Esse formato de ameba que escolhi é como um micróbio invadindo esse espaço modernista", diz Lindman, descalça, os cabelos presos em maria-chiquinha, diante de sua oca. "É um intruso que toma sua energia das plantas."
BORBOLETAS E TIROS
Menos hippie, o camaronês Em'kal Eyongakpa também partiu do mundo vegetal para criar uma instalação poderosa. Sons de uma floresta africana inundam uma sala escura, de um banho de chuva a saraivadas de balas e o ronco feroz de serras elétricas.
"Você sente que nesse ecossistema os humanos são estrangeiros", diz Eyongakpa. "É a beleza e a violência, algo entre a catástrofe e o equilíbrio, borboletas e tiros."
Jonathas de Andrade também se equilibra no fio da navalha entre a ternura e a agonia. Em seu mais novo filme, que estreia na Bienal, ele mostra um estranho – e fictício – ritual de pescadores que abraçam os peixes logo depois que são fisgados. Seus enquadramentos fechados contrastam a pele queimada de sol desses homens com as escamas lustrosas e os últimos suspiros dos bichos, que morrem no afago.
"Isso toca num estereótipo romântico", diz Andrade. "Mas a imagem é muito forte."
Imagens fortes, aliás, não faltam ali. À distância, as lápides enfileiradas no chão pelo neozelandês Luke Willis Thompson lembram uma escultura minimalista, mas, na verdade, vieram de túmulos reais de um cemitério de escravos de uma ilha do Pacífico.
Na maré alta, as sepulturas se desfizeram, deixando como pegada só os fragmentos de pedra soltos e agora levados ao pavilhão. "Queria construir um cemitério móvel, à deriva", diz o artista. "É ao mesmo tempo algo belo e traumático."
Não muito longe das lápides, Vivian Caccuri construiu o que chama de "altar para o grave". São caixas de som que tocam só as frequências graves de composições, chacoalhando o pavilhão de hora em hora, como sinos de igreja.
"Treme tudo", diz Caccuri, que se inspirou na música pop de Gana para criar a obra –suas caixas de som, aliás, vão tocar composições de DJs do país, que adaptaram canções para seu sistema estrondoso.
Da histeria sonora à visual, Bárbara Wagner investiga os códigos por trás da construção da música brega do Recife num novo filme. Enquanto tempestades varrem o mundo, ela mergulha numa reflexão sobre a lógica de impacto e espanto que serve de pilar dessa nova identidade regional, lembrando que a cultura, a exemplo do que faz Hito Steyerl, é também uma terra em transe.