|
março 30, 2014
Artista visual Lenora de Barros encara seus duplos em exposição em SP por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Artista visual Lenora de Barros encara seus duplos em exposição em SP
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 29 de março de 2014.
Lenora de Barros - Umas e Outras, Pivô, São PAulo, SP - 01/04/2014 a 17/05/2014
Na língua de Lenora de Barros, nenhuma palavra é inocente, chapada ou única. Todas elas se desdobram, viram do avesso e mostram suas vísceras num balé tátil.
Ela já escreveu, esbanjando aliterações, sobre o "macio da palha de aço amassada" e a "liquidez impalpável da água dentro do plástico".
Essa multiplicidade dos vocábulos aparecia toda semana na mais enigmática das colunas do extinto "Jornal da Tarde". Entre 1993 e 1996, a artista tinha um espaço livre para digressões imagéticas, com breves textos que sublinhavam colagens, fotografias e registros de performances.
"Era um lugar de plena liberdade, não era vinculado às notícias", diz Barros. "Naquela época, não existia Google, então eu desenhava toda a coluna usando a memória e as minhas associações." Quase duas décadas depois, ela cria novas associações entre esses textos numa exposição que começa hoje no Pivô, centro cultural que ocupa um andar vazio do edifício Copan, em São Paulo.
Emolduradas nas paredes, suas colunas recortadas do jornal ganham ar de obra plástica. E faz todo o sentido, já que foram embrião de muitas das performances e vídeos mais célebres da artista.
Estão lá seus autorretratos com perucas nada sutis, da cabeleira "black power" à loira escorrida, que deram origem a seus lambe-lambes da série "Procuro-me". Também o poema que serviu de roteiro ao vídeo "Não Quero Nem Ver", em que desfia um gorro de lã que cobre seu rosto.
"Essa coluna era meu ateliê. Daqui nasceram vários trabalhos", conta Barros. "Ninguém entendia como um jornal cedia espaço para esse tipo de experimentação, mas isso foi fundamental na minha trajetória. Foi um exercício de disciplina mesmo."
Isso porque, antes da era digital, Barros fazia tudo à mão. Mandava um esqueleto da coluna por fax ao jornal e buscava em seus arquivos e em outros livros e revistas as imagens que precisava para ilustrar todas aquelas ideias.
PERDER E GANHAR
Quando não encontrava, o jeito era ela mesma fabricar as imagens, como o dia em que costurou um traje que amarrava todo o corpo, deixando só o rosto para fora, e posou para um fotógrafo como uma boneca enfaixada.
Numa das colunas, essa imagem que lembra um joão-bobo aparece espelhando um retrato da artista francesa Marie-Ange Guilleminot usando uma roupa quase igual. Ela fazia ali as vezes de duplo, conceito que atravessa a obra de Barros e deu origem a dois novos vídeos agora no Pivô.
De sua relação com outras artistas mulheres, como Yoko Ono e Cindy Sherman, Barros inventou seu "Jogo de Damas", uma seleção das colunas que falam de outras autoras e vídeos em que aparece jogando uma partida de damas contra si mesma, trocando de lado a cada jogada.
Em cena, Barros é também seu próprio duplo. "É por essa questão de duplicidade o jogo de damas", diz a artista. "Foi uma sensação estranha. Eu sentia prazer de ganhar, mas sabia que estava perdendo o jogo ao mesmo tempo."
Nesse ponto, ela parece levar às últimas consequências a ideia de analogia do poeta francês Paul Valéry. Segundo ele, isso seria a "faculdade de variar e combinar as imagens, fazendo coexistir partes de uma e de outra para ver a ligação entre suas estruturas".
"Isso virou um mote na minha vida", diz Barros. "Meu trabalho foi sempre uma reflexão sobre o ato de ver e a ideia de criar uma imagem tátil. É quase um jogo infinito."
E por mais preto no branco que seja o jogo de damas, um contraste adensado aqui pelo claro-escuro do filme também em preto e branco, Barros revela as idas e vindas da cabeça de um artista —da sensação traiçoeira de vitória às derrotas mais gloriosas.
MAM reflete sobre o construtivismo em exposição por Camila Molina, O Estado de S. Paulo
MAM reflete sobre o construtivismo em exposição
Matéria de Camila Molina originalmente publicada no jornal O Estado de S. Paulo em 27 de março de 2014.
O percurso da abstração é apresentado de trás para frente, da década de 1980 à de 1908
Somente aos poucos, entre muitas formas circulares coloridas, reconhecemos a representação de uma mulher e de uma criança na pintura Maternidade em Círculos (1908), de Belmiro de Almeida. A obra é uma quase abstração realizada antes do modernismo, ou "a matriz da vontade construtiva no Brasil", diz o curador Paulo Herkenhoff. Entretanto, mesmo sendo uma espécie de embrião do exercício de transformação da linguagem figurativa no início do século 20, o óleo sobre tela está na última sala da exposição Vontade Construtiva na Coleção Fadel, que será inaugurada na segunda-feira no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo.
O percurso da abstração, ou melhor, os meandros do construtivismo no Brasil, são apresentados de trás para frente (ou da década de 1980 a 1908) na mostra que é uma variação, maior, da exibição homônima apresentada no ano passado na inauguração do Museu de Arte do Rio (MAR), do qual Herkenhoff é diretor.
A pintura de Belmiro de Almeida está no fim do espaço expositivo, próxima de O Lago (1928), na qual a artista Tarsila do Amaral delineia uma perspectiva diferente com a montanha no fundo da composição que talvez se refira, diz o curador, à Lagoa Rodrigo de Freitas, do Rio. Da modernista, ainda, vê-se uma pureza formal impressionante na obra Nu Cubista ou O Modelo (1923), feita de tons claros e azuis, e o cubismo na tela A Boneca (1928). E até que o visitante chegue a essa "esplêndida sala", ele terá passado por criações de pura geometria, exemplares do concretismo e do neoconcretismo – como um belo Objeto Ativo de 1969, de Willys de Castro, ou paredes obras de Sergio Camargo, Antonio Maluf e de Lygia Pape – e 18 têmperas de Volpi, entre tantos outros grandes artistas da arte brasileira.
Se Vontade Construtiva fosse apenas uma grande reunião de obras e conjuntos de trabalhos exemplares do concretismo e do neoconcretismo, já seria motivo de celebração, mas a exposição é mais que isso, aborda caminhos da arte – ou cultura – brasileira. Com 216 pinturas, esculturas e peças gráficas, a mostra chega a São Paulo com aquisições novas, como a série de serigrafias de 1974/75 de Mary Vieira. A Coleção Hecilda e Sergio Fadel – com peças de desde o século 17 –, abrange hoje, diz o curador, o maior acervo privado de abstração geométrica no Brasil.
Temperos. O conceito da exibição está calcado no termo "vontade construtiva" do título, referência a uma reflexão da década de 1960 do artista carioca Hélio Oiticica. "Na época da Nova Objetividade Brasileira (1967), em que Oiticica discute algumas marcas da cultura brasileira, uma delas seria a vontade construtiva, que não era só a experiência geométrica dos anos 1950, mas seus desdobramentos na década de 60, como ainda a modernidade e a arquitetura", afirma Paulo Herkenhoff.
No Brasil, o construtivismo é mais que pesquisa formal ou "lógica matemática" – ele é "temperado" por particulares manifestações, vê-se na exposição. Como a "geometria doce" de Mira Schendel, representada logo no início da mostra com obras dos anos 1960 e 1980. Ou as "fantasmagorias" da "geometria de fluxos" da pintora e escultora Tomie Ohtake. Há ainda, na entrada, uma pintura de 1987 de Eduardo Sued, peças escultóricas de José Resende e Waltercio Caldas ao lado de relevos e colunas de mármore de Sergio Camargo. Gerações se misturam e as absorções da empreitada construtiva são diversas.
A partir da primeira sala, o percurso da mostra, "inverso", vai se dando do neoconcretismo até o início do século 20. Artistas como Ione Saldanha, Hélio Oiticica e Lygia Pape têm paredes individuais e as pinturas de Alfredo Volpi formam uma espécie de linha que conecta os tempos porque "ele é uma unanimidade", diz Herkenhoff.
Até se chegar ao modernismo, as histórias dos grupos concretos Frente (Rio) e Ruptura (São Paulo) também são mencionadas, assim como o Ateliê Abstração, que tinha como mestre Samson Flexor (e uma de suas alunas foi, curiosamente, a professora de literatura Leyla Perrone-Moisés). Até os mares planos das pinturas de Pancetti dos anos 1940 começam a ser vistos de outra maneira, falam, também, da "consciência da superfície", de um raciocínio formal.
março 26, 2014
Carlos Zilio: ‘Os desenhos saíam da prisão com as visitas’ em depoimento a Audrey Furlaneto, O Globo
Carlos Zilio: ‘Os desenhos saíam da prisão com as visitas’
Depoimento dado a Audrey Furlaneto originalmente publicado no jornal O Globo em 23 de março de 2014.
O artista plástico, de 69 anos, diz que as obras criadas atrás das grades só foram mostradas pela primeira vez em 1996
Assista ao depoimento em vídeo no Globo
RIO — Em 1964, eu era um estudante de arte e, embora não fosse militante, vivia intensamente o clima político. Minha geração nas artes plásticas surgiu nesse momento — muito mobilizada pelos acontecimentos no país. E isso apareceu nas mostras “Opinião 65”, “Opinião 66” e “Nova Objetividade Brasileira” (1967).
No período entre 1964 e 1968, a Censura atuava nas áreas mais críticas — a imprensa e a literatura, por exemplo. As artes plásticas eram um pouco excêntricas, no sentido de fora do centro.
A partir do Ato Institucional número 5, a Censura chegou. Até aquela época, havia a possibilidade de exposições e de troca de ideias. Estética e política formavam uma unidade. Os trabalhos eram feitos pensando em sua multiplicação, em romper com a obra única e ganhar uma dimensão pública.
Depois de 1968, passei a achar mais urgente uma resposta política de intervenção na realidade e fui me engajando cada vez mais. Deixei de produzir arte para me ligar completamente à militância. Não produzi trabalhos entre 1968 e 1969. Em 1970, fui preso.
Na prisão, retomei minha produção com recursos, evidentemente, muito limitados: papel e caneta hidrográfica. Lá, fiz trabalhos que me acompanharam ao longo dos dois anos em que estive preso. Os desenhos saíam da prisão com as visitas. Minha mulher os levava embora. E esses trabalhos só foram mostrados pela primeira vez em 1996, nos museus de Arte Moderna do Rio, de São Paulo e da Bahia. Tive muita dificuldade para expô-los. Temia que fossem percebidos como uma glamourização de minha atuação política. Mas aquilo era a minha vida , não dava para recalcar. O tempo havia passado e, além disso, o país tinha se redemocratizado.
Ao redor de 1974 acho que as artes plásticas foram se rearticulando politicamente. A chamada abertura ensaiava seus primeiros passos, mas não era um processo de concessões.
Nós, artistas, buscamos formular projetos e conquistar espaços para a circulação de nosso trabalho. A censura era algo que a gente ia forçando para testar suas resistências e formular maneiras de superá-la.
Exercício da liberdade
Houve uma politização do espaço artístico no sentido de perceber melhor que a criação, a circulação e o consumo da arte compreendem necessariamente instâncias políticas e ideológicas que envolvem instituições e mercado. Nota-se, nessa época, a presença dos artistas na luta pela definição dessas políticas como, por exemplo, na publicação de “Malasartes”, uma revista dedicada à arte e à cultura contemporâneas. Em 1975, no MAM, houve a criação da Área Experimental, espaço que possibilitou a emergência de obras que retomavam a expressão de Mario Pedrosa (1900-1981). Era a “arte como exercício experimental da liberdade”.
* Em depoimento a Audrey Furlaneto
Antonio Manuel: ‘Foi como se me mutilassem’ em depoimento a Audrey Furlaneto, O Globo
Antonio Manuel: ‘Foi como se me mutilassem’
Depoimento dado a Audrey Furlaneto originalmente publicado no jornal O Globo em 23 de março de 2014.
O artista plástico, 66 anos, era adolescente e trabalhava numa agência de publicidade quando a ditadura começou
RIO — Era como se o tempo estivesse fechando. Tudo escureceu, o clima ficou denso. Eu tinha 16 anos, estava buscando uma direção para meu trabalho. Ouvi pelo rádio quando anunciaram que havia ocorrido um golpe militar. Lembro-me do zunzum, os vizinhos conversando em voz baixa, as rádios noticiando o golpe. Era uma espécie de feriado fascista.
Nessa época, eu fazia obras sobre papéis diversos e trabalhava numa agência de publicidade. Foi lá que tive uma maior consciência política, convivendo com colegas desenhistas, redatores que auxiliavam o jornal do Partido Comunista, intelectuais de esquerda e pensadores.
Em 1966, ganhei meu primeiro prêmio, no Salão Paranaense de Belas Artes, com o trabalho “Domínio”, realizado sobre jornal. Minha obra já era política, de contestação ao poder religioso. O trabalho mostrava uma multidão de pessoas de boca aberta, ansiosas por milagres prometidos, enquanto padres rezavam a missa. A multidão carregava a bandeira do Brasil, como uma narrativa inconformista. Em 1967, os trabalhos ficaram mais politizados, mas foi em 1968 que senti de forma mais clara o impacto da violência da ditadura.
Naquele ano, fui selecionado para a 2º Bienal da Bahia. Até ali só existiam as bienais de São Paulo, Paris e Veneza. Eu mostraria um painel de quatro metros, com diversas imagens de jornais impressos em silk screen sobre um fundo vermelho, que tratava da violência de rua entre policiais e estudantes. No dia da inauguração, a Bienal da Bahia foi fechada pelo Exército, e o painel desapareceu. Até hoje, nunca me foi devolvido. Nesse painel estava escrito, entre outras coisas, “Repressão outra vez”. Na inauguração da bienal, o clima já era estranho, pessoas falando ao pé do ouvido e a sensação intensa de que algo iria acontecer. De repente, foram fechando as portas e fomos empurrados para o pátio do Convento da Lapa, em Salvador, onde ocorreria a bienal, e soubemos que, sim, algo acontecia: ela fora invadida pelo Exército e, em seguida, fechada.
No pátio, artistas, críticos e o público discutíamos o que fazer. Alguns sugeriam que as obras fossem cobertas com uma tarja preta, outros queriam retirar. Eu estava lá, inconformado, quando alguém me disse que tinham retirado meu trabalho da parede, assim como as obras de Teresa Simões e Antônio Lima Dias. Foi uma sensação de vazio, de impotência. Aliás, não me lembro de outra ocasião em que tenha sentido medo como naquela bienal. Naquele mesmo dia vi no “Jornal da Bahia” a manchete “Arsenal apreendido em aparelho político” e, ao lado, a foto da serigrafia do Che Guevara, que eu havia realizado tempos antes, na parede do apartamento.
A situação para mim ficou perigosa, não só pelo fechamento da bienal, mas também pela notícia do jornal. Wanda Pimentel, artista e amiga, me levou até a rodoviária. Com medo de ser denunciado ou preso no ônibus, ou que desaparecessem comigo no trajeto até o Rio, escrevi em um papel nome, telefone e endereço e um relato da situação na qual viajava, e guardei o depoimento dentro de uma caixa de fósforos. Fiz todo o trajeto de volta acordado e segurando a caixa porque, caso acontecesse algo, eu a largaria discretamente no chão, na esperança de que alguém a encontrasse.
Jornalista escondeu obra
Em 1969, fui convidado para participar da pré-Bienal de Paris, mostra no MAM que serviria para selecionar as obras dos artistas que iriam a Paris. Infelizmente, a exposição não chegou sequer a ser inaugurada. Na montagem, o general Montana foi ao MAM com vários militares armados. Meus trabalhos eram panos pretos que cobriam painéis vermelhos com imagens de violência de rua. O espectador puxava uma corda, levantava o pano e revelava a imagem da violência. Cinco painéis como esses foram selecionados, mas infelizmente não puderam viajar, pois a mostra foi brutalmente invadida e fechada pelo Exército.
A jornalista Niomar Muniz Sodré, que eu não conhecia pessoalmente, telefonou-me pedindo que fosse encontrá-la no “Correio da Manhã”. Contou que, ao saber do caso, pediu aos funcionários do MAM que escondessem as obras. Eu estava sentado no sofá quando ela me disse: “Olhe, seus trabalhos estão atrás de você”. A obra estava sendo procurada, e Niomar a tinha escondido em sua sala de trabalho.
Então, o crítico Mario Pedrosa, que era jurado da pré-seleção, organizou um grande boicote à Bienal de São Paulo, para demonstrar a situação de exceção que vivia o país. Pedrosa depois foi perseguido e exilado no consulado do Chile, por divulgar notícias da repressão no Brasil.
Sempre me recordo desse dia no MAM com muita tristeza. Foi como se me mutilassem. Uma obra de arte é parte da alma e do espírito do artista, uma extensão de seu pensamento, e é como se tivessem arrancado isso de mim de forma brutal. Não há palavras para descrever tamanha violência.
*Em depoimento a Audrey Furlaneto
50 anos do golpe: A arte foi à luta por Cristina Tardáguila e Maurício Meirelles, O Globo
50 anos do golpe: A arte foi à luta
Matéria de Cristina Tardáguila e Maurício Meirelles originalmente publicada no jornal O Globo em 23 de março de 2014.
RIO - Fernanda Montenegro foi ameaçada de morte pelo telefone. Do outro lado da linha, uma voz disse que ela levaria “um tiro certeiro na testa”. Dias mais tarde, uma bala estraçalhou a janela do quarto onde ela descansava. Na mesma época, José Celso Martinez Corrêa e seus companheiros do Teatro Oficina mandaram a bela italiana que trabalhava na bilheteria do grupo a Brasília para dormir com um censor e descolar a liberação da peça “O rei da vela”. Roberto Farias apresentava “Pra frente, Brasil” no Festival de Gramado quando soube que o filme havia sido censurado. Naquele dia, ele fazia 50 anos, mas a revolta se sobrepôs à alegria de ter levado o prêmio de melhor filme do festival. Tom Zé foi preso duas vezes e descobriu que, nas prisões políticas da ditadura militar, cada detento tinha que pagar 70 mil cruzeiros à polícia e dedurar um companheiro. Nas artes visuais, o regime não foi mais brando. Antonio Manuel fugiu de Salvador depois que a Bienal da Bahia foi fechada pelo Exército. Ele jamais recuperou o painel. Tempos depois, novamente foi proibido de exibir uma obra, numa exposição no Rio. “Foi como se me mutilassem”, diz.
Reunimos testemunhos desses e de outros artistas que tiveram suas vidas viradas do avesso pelo regime militar — cujo início completa cinco décadas no dia 31 —, além das visões dos colunistas Caetano Veloso e Adriana Calcanhotto. Os relatos deixam evidente também que, em contrapartida àqueles 21 anos sob ditadura, viveu-se um dos períodos mais férteis da produção cultural do país. Consolidaram-se, naquela época, nomes que seguem como referência nas artes nacionais.
A combinação de diferentes elementos contribuiu para tal fertilidade, dizem especialistas. A existência de um inimigo comum somou-se à expansão da TV e da indústria cultural no país, dando origem a um ambiente em que a criatividade ganhou fôlego para combater o moralismo hostil das fardas. Foi o tempo da linguagem cifrada, das críticas nas entrelinhas e da ironia dos cartuns.
Para pesquisadores da área, as duas décadas de ditadura podem ser divididas em três períodos distintos. O primeiro, entre 1964 e 1967. O segundo, de 1968 à Anistia, em 1979. E o terceiro nos anos 1980, na redemocratização do país. Os três reverberam até hoje na produção brasileira.
— Na primeira fase, vemos um deslocamento da cultura da elite para a classe média — afirma Mônica Almeida Kornis, doutora em Ciências das Comunicações da Fundação Getulio Vargas. — Até 1968, do ponto de vista formal e artístico, havia uma busca por uma linguagem inovadora. Naquele ano, “O bandido da luz vermelha” (de Rogério Sganzerla) trouxe a frase que define bem o momento posterior: “Quando a gente não pode nada, a gente avacalha”. A censura era fortíssima. Mas a TV se nacionalizou, a indústria cultural explodiu, e a música se expandiu com força nos festivais. Nos anos 1980, houve a diversificação dos produtos, e a ideia de inimigo comum se perdeu um pouco.
março 18, 2014
Erramos: Mal me conheço, diz artista famoso por perturbar rotina de museus, Folha de S. Paulo
Erramos: Mal me conheço, diz artista famoso por perturbar rotina de museus
Errata originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 16 de março de 2014.
Diferentemente do que dizia a primeira versão do texto "Mal me conheço, diz artista famoso por perturbar rotina de museus" (Ilustrada - 27/02/2014 - 03h05), publicado na versão impressa e no site da Folha, o britânico Tino Sehgal não disse "Sou um porco comigo mesmo, mal me conheço", mas, sim, "Sou opaco para mim mesmo, mal me conheço". A informação incorreta estava também no título do texto, que foi corrigido no dia 16 de março.
Em baixa, artista britânico Damien Hirst mira mercados emergentes por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Em baixa, artista britânico Damien Hirst mira mercados emergentes
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 16 de março de 2014.
Quando o artista britânico Damien Hirst chegou ao auge da fama e também ao topo do mercado global, criou uma de suas obras mais icônicas e controversas. Era um crânio humano coberto com quase 9.000 diamantes, vendido depois por R$ 200 milhões.
Mas o que talvez Hirst não imaginasse é que essa joia da morte fosse também se tornar um símbolo da derrocada dos valores superlativos atingidos por sua obra, sinalizando o início de um declínio.
Desde sua retrospectiva na Tate Modern, em Londres, há dois anos, os valores estratosféricos de suas peças sofreram uma queda de em média 30% nas casas de leilões.
Hirst, 48, com uma fortuna acumulada de quase R$ 820 milhões, é sem dúvida o artista plástico mais rico do mundo. E isso se deve a uma série de sacadas mais ou menos geniais desde quando despontou nos anos 1990 como um dos nomes do grupo Young British Artists, ou jovens artistas britânicos.
Tudo começou há dez anos, quando Hirst fechou seu famoso restaurante londrino The Pharmacy e faturou R$ 43 milhões leiloando seus objetos, de taças de martíni a uma de suas instalações que imitam prateleiras de farmácia com drogas e pílulas.
Quatro anos mais tarde, em 2008, no início da crise econômica detonada pela falência do banco Lehman Brothers, Hirst subverteu todas as regras do mercado de arte ao levar as obras direto de seu ateliê-fábrica em Londres para um leilão da Sotheby's.
Numa tacada só —ele jogava sinuca enquanto compradores davam seus lances na casa de leilões—, Hirst vendeu mais de 200 de suas obras por R$ 467 milhões.
Não demorou muito até o próximo truque. Há dois anos, Hirst mandou suas "Spot Paintings", pinturas de bolinhas coloridas, para os 11 endereços da galeria Gagosian ao redor do mundo, de Los Angeles a Hong Kong.
Essas peças, em grande parte feitas por assistentes, começaram a ser vendidas por cerca de R$ 25 mil e já foram arrematadas R$ 7 milhões.
Seus tubarões, vacas e bezerros flutuando em tanques de formol também chegaram a cifras exorbitantes, como os R$ 43 milhões pagos pela família real do Qatar por um de seus bezerros naquele leilão-performance na Sotheby's.
Desde então, com um mercado estagnado nos países desenvolvidos, Hirst vem mirando os emergentes para emplacar suas peças —de Doha, onde fez uma grande retrospectiva no ano passado, a São Paulo, onde suas obras são sucesso de vendas desde que a galeria White Cube abriu suas portas na cidade.
DAMIEN PAZ E AMOR
Esse deslocamento geográfico também vem a reboque de um reposicionamento marqueteiro. Hirst parou de se drogar e agora tenta estabelecer uma imagem de grande filantropo, tendo doado quase R$ 8 milhões a uma instituição que ajuda crianças carentes no Reino Unido.
"Há um certo desespero em achar que o dinheiro mancha e envenena tudo", disse Hirst em uma entrevista recente ao jornal britânico "The Guardian". "Mas dinheiro é uma coisa tão complexa quanto o amor. E, como artista, acho importante lidar com isso."
"Tem colecionadores novos que compraram suas peças e já venderam", analisa Jones Bergamin, da Bolsa de Arte, a maior casa de leilões no Brasil. "Mas o mercado nos Estados Unidos e na Europa não responde mais ao volume de obras em oferta. Ele está em queda e terá de se acostumar com outro nível."
Segundo Bergamin, os países desenvolvidos passam por "um esgotamento de público, de paredes para expor e local para estocar" as obras de Hirst, enquanto Ásia, Oriente Médio e Brasil estão ávidos para comprar. Sua ideia, e a de seus galeristas, é sair de cena na Europa para adentrar lugares menos saturados.
"Desde que comecei a ganhar dinheiro, pararam de me chamar de 'enfant terrible'", diz Hirst. "Eu me sinto mais 'mainstream' agora do que um forasteiro na arte."
Mas essa condição não impede suas estripulias. Em Doha, para sua mostra encerrada há dois meses, Hirst foi recebido como uma espécie de Michael Jackson da arte. No Brasil, Hirst também deve ter uma mostra individual na virada deste ano para o próximo na filial paulistana da galeria White Cube.
Christian Viveros-Fauné: La identificación del arte como valor financiero marcará el legado del arte de hoy por generaciones, ArteInformado
Christian Viveros-Fauné: La identificación del arte como valor financiero marcará el legado del arte de hoy por generaciones
Entrevista originalmente publicada em ArteInformado em 17 de março de 2014.
El crítico de arte y comisario chileno residente en Nueva York, Christian Viveros-Fauné, señalaba hace unos días que "El mundo del arte nunca había sido tan corrupto como ahora". Lo hacía en el curso de un seminario celebrado en la mexicana Fundación Jumex, dentro de los actos de clausura de la exposición "The Corrupt Show and The Speculative Machine" del colectivo danés SUPERFLEX, donde distintos expertos abordaron los dos principales temas de la exposición: la corrupción y la especulación (en el mundo del arte).
Puestos en contacto con el curador chileno, éste ha accedido con diligencia a responder a las preguntas de ARTEINFORMADO. Sus respuestas se producen al tiempo que se conoce el nuevo informe TEFAF sobre el mercado secundario del arte que, en 2013, habría crecido un 8%, mayormente por un incremento de los precios y no tanto del volumen vendido. Unos datos que ratifican la denuncia de Viveros-Fauné de que el arte está siendo utilizado "como un bien financiero, como las acciones de Google", lo que -añade- "puede marcar el legado del arte de nuestros tiempos por varias generaciones". Estas son sus respuestas:
ArteInformado (AI): ¿Podrían identificarse qué ámbitos ha penetrado esa corrupción, ya sean los del galerismo, comisariado, gestión de museos, coleccionismo, ... y a quién beneficia?
Christian Viveros-Fauné (CVF): La corrupción en el mundo de arte el día de hoy es como el mercado de inmobilarias antes del 2008: estamos todos implicados. No sólo han aumentado los robos, las falsificaciones, los lavados de dinero y la evasión fiscal con respecto a lo que se conocía antes, sino que se han inventando una serie de formas aun no penalizadas de mover dinero a través del arte que han transformado a este último en un instrumento financiero preferencial. Esto beneficia especificamente a un puñado de multimillonarios globales (el 0,001%, para usar el lenguaje del movimiento Occupy), que utiliza el arte como una guarida especulativa o una especie de Bitcoin (moneda electrónica), alimentandose a su vez de una tolerancia mutua; de lo que el fiscal brasileño Fausto Martin De Sanctis ha llamado 'una atmosfera sistematica de inatención' y de códigos éticos que sólo se aplican de forma selectiva. Estos multimillonarios son, indistintamente, artistas, especuladores, galeristas, etc. Como en el poker de alto vuelo, a este club se accede principalmente con dinero.
AI: ¿Cómo se podría salir del barro de la corrupción y qué senderos habría que transitar para conseguirlo? Y pongo un ejemplo, ¿es compatible ejercer el comisariado con el asesoramiento de colecciones privadas?
CVF: Una forma clara de salir de la corrupción es adoptando codigos explicitos de 'good business'. En el 2012 el Basel Institute on Governance, por ejemplo, publicó unas reglas generales como una iniciativa de auto-regulacion. Estas reglas deberían tener una mayor difusión y ser parte de un esfuerzo real por parte de casas de subasta, asociaciones de galeristas, museos, coleccionistas, curadores y artistas para alcanzar una mayor transparencia en el negocio del arte. La alternativa es esperar a que varios gobiernos internacionales empiecen a regular el mercado de arte, que, por lo demás, a mi me parece una situación bastante próxima. Lo del comisariado y el asesoramiento de colecciones privadas me parece importante pero menor con respecto a la ecología de arte actual que estoy describiendo. El problema no es la 'comodificacion' (asimilación a mercancía) del arte, que llegó hace mucho tiempo. Nuestra situación es una en que el arte caro se ha financializado y esto afecta los horizontes no solo del mercado, sino del mismísimo imaginario del arte contemporaneo, que se ve brutalizado y empobrecido por tanto brillante.
AI: Por otro lado, en la medida que el arte ha sido, tradicionalmente, instrumentalizado por el poder (religoso, político, económico, ...), ¿consideras, como parece por tus afirmaciones, que estamos en un momento nuevo y peor a los ya vividos?. ¿Por qué?
CVF: De nuevo, una cosa es que el arte actual mas codiciado se haya transformado en un bien de mercado (como una bolsa de Luis Vuitton o lo que ciertos economistas llaman un bien posicional) y otra que éste llegue a ser empleado como un bien financiero (acciones de Google, barras de oro o, en su día, los tulipanes). Con lo último existe una mayor aceleración de la corrupción, entre otros fenómenos, lo cual decanta en un efecto que a mí, como crítico y amante del arte contemporaneo, me parece particularmente nefasto: que el arte contemporaneo se identifique en el ambito publico cada vez mas con los valores de la codicia, la especulación y el darwinismo económico. Esto, aparte de que el actual mercado es insostenible, puede marcar el legado del arte de nuestros tiempos por varias generaciones.
No more silence of the scholars por Julia Halperin, The Art Newspaper
No more silence of the scholars
Matéria de Julia Halperin originalmente publicada no The Art Newspaper, edição 254, em fevereiro de 2014.
Law drafted to protect experts who fear being sued if they speak out
A bill introduced in the New York State Legislature last week seeks to protect art experts from what it describes as “frivolous” lawsuits. The proposed legislation aims to make it more difficult for owners, auctioneers and dealers to bring lawsuits against art historians simply because they do not like their opinions. Under the proposed law, claimants must be specific about what they believe the expert has done wrong, and must show that there is a significantly higher than 50% chance that the allegations contained in the lawsuit are true.
Scholarship crisis
Works of uncertain, or even puzzling, provenance often emerge in the art world, but there have been growing concerns that scholars are reluctant to give expert opinions for fear of being sued. For example, a conference that was due to be held in January 2012 at London’s Courtauld Institute of Art to discuss a large group of drawings that are, according to their owner, by Francis Bacon, was cancelled, partly over concerns about the legal repercussions.
The New York City Bar Association drafted the bill to encourage art historians to speak more freely. Judith Bresler, a lawyer with the firm Withers Worldwide, who co-authored the legislation with Dean Nicyper of Flemming Zulack Williamson Zauderer, says that authenticators are increasingly “speaking with silence”.
The bill would allow authenticators to recover their legal fees if they are vindicated: under current US law, they must pay these even if they win. “Being sued has always been a risk of giving opinions on authenticity,” says Katy Rogers, the president of the Catalogue Raisonné Scholars Association. “The rising cost and increased frequency of these lawsuits have driven scholars away.”
In the past month alone, a group of nine collectors have sued the Keith Haring Foundation for $40m after it labeled their works as fakes; a Swiss dealer sued the estate of Alexander Calder for claiming that a $1m sculpture he wanted to sell was merely a fragment of a larger work; and the sisters of Jean-Michel Basquiat sued to halt a sale of their brother’s work at Christie’s because they questioned the authenticity of some of the objects.
The New York State Assemblymember Linda Rosenthal, the bill's sponsor, says the legislation offers authenticators "much needed protections". "The role of the authenticator in the art world cannot be understated. Far from an exact science, the work done by the authenticator is art in and of itself and in today's market, they operate completely at their own risk," she says. "Unfortunately, in the modern art world, fraud and deception of the highest quality abound, and the authenticator is on the hook for even a good faith, yet incorrect opinion."
Defence costs
In the 1960s, New York legislators considered but declined to adopt a similar law to protect scholars. But rising prices for art and the increased number of lawsuits may change their minds. “The current law is basically good: most authenticators ultimately win,” Bresler says. “The issue is that they’ve spent thousands of dollars and thousands of hours defending themselves.”
The New York City Bar Association began to work on the bill in 2012, after half a dozen artist’s foundations, including those of Andy Warhol and Roy Lichtenstein, shut down their authentication boards, largely to avoid litigation. The chilling effect reached its peak as the scandal surrounding fake Abstract Expressionist works sold by the Knoedler gallery unfolded last year.
The authors hope that the bill, if it becomes law, will encourage scholars to speak up if they spot a forgery or misattributed work. Today’s litigious atmosphere “gives people trying to peddle works that are not authentic an open field, and constrains communication so that scholars not only won’t give an opinion, but also feel constrained about speaking to each other”, says Jack Flam, the president of the Dedalus Foundation, which represents the estate of Robert Motherwell.
The legislation could also dramatically increase the number of works available to scholars for examination. “Right now, when art historians write articles about fakes, they are generally very careful to speak only about works in public collections,” says Sharon Flescher, the executive director of the International Foundation for Art Research (Ifar).
Some worry, however, that the legislation might give authenticators too much authority. “The result will be to cement the power of groups that control the art market and insulate their authentication decisions from scrutiny or judicial oversight,” says Seth Redniss, the lawyer who sued the Andy Warhol Foundation in 2007 and 2010 after its authentication board rejected two works purportedly by the Pop artist.
The bar association aims to have the bill signed into law by June.
A version of this story appeared on the front page of the February 2014 print edition of The Art Newspaper
março 12, 2014
Castelos de areia por Paula Alzugaray, IstoÉ
Castelos de areia
Matéria de Paula Alzugaray originalmente publicada na revista IstoÉ em 28 de fevereiro de 2014.
Com trabalhos de artistas brasileiros e estrangeiros, exposição coletiva evoca contrastes entre ordem e caos
Roesler Hotel #25: Dispositivos para um mundo (im)possível, Galeria Nara Roesler, SP, até 15/3
Acesse a matéria na IstoÉ para ver as fotos de Paula Alzugaray
O que Brasília, Marienbad e Berlim têm em comum? Categoricamente, não muito, mas essas três localidades se cruzam na exposição “Dispositivos para um Mundo (Im)Possível”. Pense em 1989, na queda do muro, no ápice da crise das utopias e no artista brasileiro Leonilson interessado no alcance político da arte. Estamos chegando perto. Se esses três lugares fossem associados a palavras, chegaríamos a utopia, ilusão, desconstrução. São precisamente esses três conceitos que dão sustentação à curadoria de Luisa Duarte, na Galeria Nara Roesler, em São Paulo.
Brasília, a cidade utópica projetada como obra de arte, é reinterpretada nesta exposição nas obras de Laercio Redondo e de Clarissa Tossin. A instalação “Restauro – Lembrança de Brasília” (2009), de Redondo, reproduz um dos painéis de azulejos criados por Athos Bulcão na capital federal. “O que poucos lembram é que a arte participativa brasileira começa em Brasília nos azulejos de Athos Bulcão”, diz o artista, que descobriu em pesquisa que os desenhos dos murais de Bulcão eram decididos pelos operários responsáveis por sua instalação, e não por ele.
Marienbad, a localidade fictícia do filme de Alain Resnais que remete à ilha de ilusões e simulacros do romance “A Invenção de Morel”, de Bioy Casares, é evocada em fotografia do artista argentino Jorge Macchi. A imagem mostra a imitação de um fragmento dos jardins de Versailles em um terreno na periferia de Paris. O resultado é uma espécie de miragem, posicionada entre obras e ruínas. A mesma dimensão ficcional de Marienbad pode ser encontrada no vídeo “Everything is Going To Be All Right”, do holandês Guido van der Werve, que registra um homem caminhando diante de um navio encalhado no gelo.
Finalmente, Berlim, como símbolo da desmontagem, da desconstrução e da reorientação dos paradigmas de ordem mundial, está presente em toda a mostra. Está nas fotografias que Carlos Garaicoa tirou das ruínas urbanas de Havana, está na série de desenhos apagados de Carlos Bunga, está na instalação “Pódio para Ninguém” (2010), de Lais Myrrha – um pódio feito de pó de cimento prensado –, e está na aquarela “Leo Can’t Change the World” (1989), pintada por Leonilson no ano da queda do muro.
Outro nexo comum à maioria dos trabalhos da mostra são os tons em branco e preto. O branco do mármore da arquitetura de Brasília, no vídeo de Clarissa Tossin, contrastado com o preto do carvão dos azulejos de Laercio Redondo, resulta no cinza do cimento, das pedras e do arame, que dão forma aos trabalhos de André Komatsu, Nicolás Robbio, Antonio Dias e Lucia Koch. Dessa orquestração de tons melancólicos resultam os humores niilistas da curadoria de Luisa Duarte.
Mercado de arte cresce e supera a crise de 2008 por Audrey Furlaneto, O Globo
Mercado de arte cresce e supera a crise de 2008
Matéria de Audrey Furlaneto originalmente publicada no jornal O Globo em 12 de março de 2014.
Setor cresceu 8% em relação a 2012
Vendas milionárias nos EUA foi o principal fator, segundo pesquisa da feira Tefaf
RIO - Mais tradicional feira de arte antiga do mundo, a Tefaf, em Maastricht, na Holanda, divulgará nesta sexta-feira os dados de sua pesquisa anual sobre o setor. Os números, antecipados pelo GLOBO, revelam que as vendas de obras de arte e antiguidades no mundo somaram € 47,4 bilhões — o equivalente a cerca de R$ 154 bilhões, ou 8% a mais do que no ano anterior.
O estudo, encomendado pela European Fine Art Foundation (Fundação Europeia de Belas Artes), será apresentado durante a Tefaf, que será aberta ao público nesta sexta. Segundo a pesquisa, o setor cresceu tanto que se aproximou de seu recorde histórico, alcançado em 2007, quando chegou aos € 48 bilhões (em vendas de obras no mundo todo).
Coordenadora do estudo, a pesquisadora Clare McAndrew, formada em Economia da Cultura e especializada no mercado de artes, enfatiza o fato de o setor estar voltando aos patamares atingidos antes de 2008, ano que marcou a recessão econômica mundial. Ela apresentará as conclusões do estudo na própria sexta.
Brasil tem apenas 1% dos negócios
A pesquisadora afirma que os negócios foram alavancados não pelos mercados emergentes, com seus novos milionários colecionadores de arte. Os Estados Unidos são, outra vez, os responsáveis por impulsionar os negócios: as vendas de arte no país cresceram 25% em relação a 2012, e o país responde por cerca de 38% de todas as vendas da área.
A China, que chegou a passar os americanos em 2011, recuou bruscamente, segundo o estudo, e sua participação no mercado global em 2013 ficou em 24%, embora o país ainda seja, entre os mercados ditos recentes, o mais aquecido.
Apesar do alardeado boom, o setor no Brasil tem parcela ínfima no montante global: o país representa apenas 1% dos negócios, percentual que se manteve idêntico de 2012 para 2013. Segundo a pesquisa, os 200 maiores colecionadores do mundo estão nos EUA — país que concentrou, em 2013, 49% dos compradores de arte. O Brasil, por outro lado, tem só 1% do total de colecionadores.
O estudo se concentra nos EUA e na China. O primeiro somou € 18 bilhões (R$ 58,5 bilhões) em vendas de arte no ano passado, enquanto o segundo fechou o ano com € 11,5 bilhões (R$ 37,4 bilhões). Mas, como ressalta a pesquisa, os chineses têm um problema grave nos leilões de arte: as vendas nem sempre se confirmam — apenas 56% dos lotes vendidos são pagos no prazo de seis meses.
Governo escolhe pessoas de perfil moderado para avaliar obras de arte por Fabio Cypriano, Folha de S. Paulo
Governo escolhe pessoas de perfil moderado para avaliar obras de arte
Matéria do crítico Fabio Cypriano originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 6 de março de 2014.
Os 13 representantes da sociedade civil que irão compor o Conselho do Patrimônio Museológico, aprovados pela ministra da Cultura, Marta Suplicy, representam um grupo de perfil moderado, que deve diminuir as tensões provocadas pelo decreto 8.124.
O decreto prevê a possibilidade de declarar de interesse público obras de arte de coleções privadas. Segundo o documento, obras privadas, uma vez declaradas de interesse público, passariam a ser monitoradas pelo governo.
A Folha obteve com exclusividade a lista dos 13 representantes da sociedade civil, indicados pelo presidente do Ibram (Instituto Brasileiro de Museus), Ângelo Oswaldo, à ministra. A portaria com a lista deve ser publicada nesta sexta-feira (7).
Entre os integrantes estão o secretário de Estado da Cultura de São Paulo, Marcelo Mattos Araújo, o banqueiro e colecionador José Olympio Pereira, a colecionadora e diretora de museu Angela Gutierrez e os curadores Fabio Magalhães e Paulo Herkenhoff.
"São eles que vão colocar em prática e aprovar as normas para a declaração de interesse público", disse o presidente do Ibram.
Desde que a portaria foi publicada, em outubro passado, Oswaldo se viu no centro de uma polêmica –colecionadores e galeristas viram o novo instrumento como uma forma de apropriação indevida.
A questão ganhou tanta animosidade que colecionadores estão deixando de emprestar obras para exposições como forma de retaliar e pressionar o governo. O curador do Museu de Arte Moderna de Nova York, Luis Pérez-Oramas, por exemplo, está tendo dificuldade em obter obras de Lygia Clark para uma retrospectiva da artista, por conta da situação.
Oswaldo diz que "não pretende alterar o decreto" e dá a entender que, com o conselho que agora tomará posse, os medos serão dissipados. A turbulência, porém, ainda não está afastada: a Ordem dos Advogados do Brasil estuda a possibilidade de questionar a legalidade do decreto.
"Os nomes são ótimos, agregadores e de grande respeito, mas o decreto continua sendo um problema", diz a galerista Eliana Finkelstein, da Associação Brasileira de Arte Contemporânea.
Além dos 13 indicados pela ministra, o conselho é composto ainda por oito membros, representantes de entidades ligadas à cultura –algumas governamentais, como o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Pessoas da sociedade civil que irão compor o Conselho de Patrimônio Museológico:
Angela Gutierrez
Colecionadora e presidente do Instituto Cultural Flávio Gutierrez
Antônio Carlos Motta de Lima
Professor doutor de Antropologia na Universidade Federal de Pernambuco
Fábio Luiz Pereira de Magalhães
Curador, ex-diretor da Pinacoteca de São Paulo
Gaudêncio Fidélis
Curador, diretor do MARGS (Museu de Arte do Rio Grande do Sul)
João Cândido Portinari
Filho de Cândido Portinari, professor e diretor do Projeto Portinari
João Maurício Ottoni Wanderley de Araujo Pinho
Colecionador e ex-diretor do MAM do Rio
José Olympio Pereira
Banqueiro e colecionador
Leonel Kaz
Curador
Marcelo Mattos Araújo
Secretário de Estado da Cultura de São Paulo
Maria Célia Moura Santos
Museóloga
Modesto Carvalhosa
Jurista
Paulo Herkenhoff
Curador e diretor do Museu de Arte do Rio
Ronaldo Barbosa
Diretor do Museu do Vale do Rio Doce
Feira americana se reinventa com foco nos emergentes por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Feira americana se reinventa com foco nos emergentes
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 10 de março de 2014.
Num cenário cada vez mais saturado, a Armory Show, mais tradicional feira nova-iorquina, vem tentando se reinventar. Desde que assumiu o comando do evento há três anos, Noah Horowitz conta que seu objetivo é "repensar e energizar" tudo.
E a estratégia que encontrou foi apelar para os mercados emergentes, tendo já destacado galerias latino-americanas em edições passadas e, neste ano, criando uma ala só para a China.
"Todo o cenário tem passado por abalos sísmicos, as mudanças são enormes", diz Horowitz. "O número de feiras e bienais aumentou tanto que há muito mais ruído."
No caso do Brasil, a edição da feira que terminou ontem foi uma tentativa de limpar o caos e estabelecer alguns nomes que devem estar na lista de todo colecionador.
Luciana Brito, galerista paulistana que está no comitê de seleção da Armory, levou obras do concretista Waldemar Cordeiro. A Bergamin, também de São Paulo, destacou alguns trabalhos raros de Lygia Clark e Mira Schendel, enquanto a Raquel Arnaud apostou em Sérgio Camargo.
Essa foi uma das maiores representações brasileiras na feira, mas também chamou a atenção o fato de galerias estrangeiras também terem escolhido brasileiros como carros-chefe de suas seleções.
Depois de fechar exclusividade na representação de Lygia Clark, a casa britânica Alison Jacques levou à Armory uma instalação inédita da mais nova integrante de seu time --Fernanda Gomes.
"Não sei dizer por que a obra dela tem se tornado mais relevante agora", diz Charlotte Marra, diretora da Alison Jacques. "Mas achamos que esse seria o melhor momento para mostrar isso em Nova York. Estão percebendo a habilidade dela em trabalhar com texturas e sutilezas."
Obra de Lygia Clark está à venda por US$ 1,5 milhão em feira de arte em NY por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Obra de Lygia Clark está à venda por US$ 1,5 milhão em feira de arte em NY
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 6 de março de 2014.
Obra mais cara de um artista brasileiro na Armory Show, a mais tradicional feira de arte de Nova York em cartaz até domingo, "Livro Sensorial", peça criada por Lygia Clark em 1966, está à venda por US$ 1,5 milhão.
"É uma obra raríssima dela", diz Thiago Gomide, da galeria Bergamin, de São Paulo, que pôs o trabalho à venda. "Já tivemos muitos interessados por essa peça, colecionadores importantes."
Além da obra de Clark, que ainda não foi vendida, há um trabalho do concretista Waldemar Cordeiro, uma peça de sua série "Popcretos", em que misturou fragmentos de objetos em composições abstratas, à venda por US$ 1 milhão no estande da galeria paulistana Luciana Brito.
Outra peça brasileira que está entre as mais caras da Armory é uma escultura em madeira de Sergio Camargo com etiqueta de US$ 500 mil na galeria Raquel Arnaud. Por enquanto, nem a obra de Cordeiro nem o relevo de Camargo encontraram compradores.
Obras de brasileiros são vendidas nas primeiras horas de feira em NY por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Obras de brasileiros são vendidas nas primeiras horas de feira em NY
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 5 de março de 2014.
Nas primeiras duas horas do Armory Show, a mais tradicional feira de arte de Nova York, obras de brasileiros como Mira Schendel, Abraham Palatnik, Artur Lescher, Sérgio Sister e Vik Muniz já foram vendidas.
À venda no estande das galerias Nara Roesler e Bergamin, duas das seis casas brasileiras na feira, as peças valendo entre US$ 30 mil e US$ 300 mil foram arrematadas ainda durante a abertura da Armory para convidados, na tarde desta quarta (5).
No estande da paulistana Baró, obras de US$ 14 mil do artista mexicano Morris, que participou da última Bienal de São Paulo, também haviam sido vendidas.
Esse é um momento de transição para o Armory Show. A feira que começou em 1999 passou por um período de decadência, trocou de diretor e agora tenta se restabelecer com a recuperação da economia norte-americana e diante da concorrência acirrada com a franquia nova-iorquina da feira britânica Frieze, que acontece em maio.
"Enquanto a Frieze é mais 'avant-garde', a Armory é mais tradicional", diz Fabíola Ceni, diretora de vendas da Nara Roesler, à Folha. "Com a recuperação da economia aqui, há espaço para duas feiras em Nova York."
Luciana Brito, galerista brasileira que está no comitê de seleção da Armory e tem um dos maiores espaços na feira este ano, não parava um minuto, emendando conversas com curadores e colecionadores.
Seu estande tem obras clássicas de Waldemar Cordeiro, pioneiro do concretismo paulista. Muitas delas estavam na retrospectiva dedicada à obra do artista no Itaú Cultural no ano passado.
março 7, 2014
O sol negro da melancolia por Mario Sergio Conti, O Globo
O sol negro da melancolia
Artigo de Mario Sergio Conti originalmente publicado no jornal O Globo em 6 de março de 2014.
‘A calma dos dias’, livro de Rodrigo Naves, mistura ensaios sobre a cena contemporânea — reality shows, Gisele Bündchen, Michael Jackson — com pequenas ficções, perfis e obituários de artistas e amigos, análises de obras e indagações filosóficas
Rodrigo Naves, ficcionista e crítico de artes plásticas, se perdeu ao andar de carro pela cidade de Santos. Buscou placas que o orientassem na barulhenta algaravia de seres, coisas e fumaça. Topou com uma que dizia: Lar das Moças Cegas. “Um retiro de paz e silêncio pousou sobre a tarde agitada”, escreveu ele a respeito da visão. As palavras obsoletas, o mundo de noite e calma ao qual a placa remetia, o tiraram de súbito do presente da cidade vibrante e confusa. Lares não há mais. Moças tampouco. E os cegos tornaram-se há tempos deficientes visuais.
O Lar das Moças Cegas não lhe inspirou pena. Imaginou que moravam ali jovens operosas. Elas recolheriam apostas na lotérica à direita da fachada. Organizariam as terapias ocupacionais anunciadas numa faixa de pano. Empenhadas no bem-estar de seus semelhantes, as ceguinhas viviam do seu trabalho. Nas horas de folga talvez conversassem, costurassem, ouvissem música. “Com a delicadeza de quem precisou aguçar os sentidos, cuidavam para não invadir territórios alheios”, prossegue Naves em “A calma dos dias”, que a Companhia dos Livros acaba de publicar.
O Lar existe, e a descrição no livro lhe é fiel. Quanto ao que se passa com as moças, é tudo imaginação de Naves, “devaneios, momentos em que a continuidade dos dias e dos hábitos se interrompe”. Perdidaço no presente nacional, Naves capta poesia densa, ainda que numa vírgula do cotidiano; deixa-se encantar pelas evocações; imagina dignidade num mundo obscuro. Não é pouco.
E é só o começo. As moças cegas o ajudam a pensar dimensões incômodas da vida contemporânea. O Lar delas é contraposto à transparência da Casa dos Artistas, do Big Brother Brasil e de tantas residências “que fazem a delícia do público televisivo mundial”. Nessas casas, nota o escritor, como tudo é devassado, os seus moradores são reduzidos a corpos, a bíceps e glúteos. E o que os corpos fazem o tempo todo é se tatearem, diminuir a distância que os separa. O excesso de tato com que as santistas anônimas compensam a cegueira corresponde ao tato excessivo dos devassados nos BBB.
Naves desdenha a explicação corriqueira para as intimidades hiperexpostas: busca de erotismo e índices de audiência. Nas casas de boneca da TV o mundo se torna doméstico e apreensível, ele diz, e quanto mais complexa a vida contemporânea, mais agradáveis se tornam as explicações caseiras. O fenômeno não se restringe à indústria cultural. Ele começou na cultura dita superior. A arquitetura pós-moderna recuperou a fachada, transformando edifícios em casinhas. As instalações imperam nas artes plásticas, e a maior parte delas não passa de ninhos. O romance, arte que buscava a vida social, foi atropelado por biografias que trombeteiam a intimidade de indivíduos tidos por excepcionais. A alta costura é vista como grande arte, o que domestica a criação artística para torná-la ponta de lança da indústria da moda.
“A calma dos dias” mistura ensaios sobre a cena contemporânea — reality shows, Gisele Bündchen, Michael Jackson — com pequenas ficções, perfis e obituários de artistas e amigos, análises de obras e indagações filosóficas. Nuns textos sobressai o ensaísta de “A forma difícil”, livro que consolidou a sua reputação de grande crítico. Noutros, brilha o ficcionista de “O filantropo”, um escafandrista das fissuras do cotidiano.
Em “A calma dos dias”, o crítico e o ficcionista estão banhados pelo sol negro da melancolia. As artes plásticas sucumbem ao mercado e ao dinheiro, quando não à teorização que oblitera obras e homens. A arte se torna tão rarefeita que o crítico perde o objeto, deixa de ter o que analisar. Já a vida passa cada vez mais rápido. Os achaques se sucedem. O álcool, as drogas, o estudo, o sexo, a amizade, a política, talvez até mesmo o amor, deixam de ter aquele gosto.
O mundo objetivo e a existência subjetiva, como se sabe, se confundem. Difícil é saber quando falta vento social para mover o moinho da arte. Ou então se não há mais obras e indivíduos que captem a mudança de vento. A metáfora do vento e do moinho é de Van Gogh, e serviu de título para o livro anterior de Naves. Em “A calma dos dias”, ela reaparece: “temo ser hoje quase inaudível o rumor que moveu tantos engenhos”. Continua a faltar algo, mas é preciso fazer alo, nem que seja arrumar a mesa.
“Há horas de lutar e horas de se entregar”, dizia Mira Schendel aos amigos pouco antes de morrer. “Ouvi várias vezes essa frase no último mês, e confesso que sem a menor cumplicidade e, talvez, sem a menor compreensão do sentido da decisão de Mira”, relata Naves no livro. O seu livro, obra de um inconformista conformado, é sobre isso: luta e entrega na calma dos dias de moinhos imóveis.
março 5, 2014
Obras antigas são usadas para debater protestos por Fabio Cypriano, Folha de S. Paulo
Obras antigas são usadas para debater protestos
Crítica de Fabio Cypriano originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 4 de março de 2014.
Em '140 caracteres', pouco envolvimento da produção atual com as ruas faz museu recorrer a peças dos anos 1970
Uma questão da mostra é a pouca quantidade de trabalhos contemporâneos que promovem uma reflexão de fato a respeito do brasil
140 caracteres, Museu de Arte Moderna de São Paulo, São Paulo, SP - 29/01/2014 a 16/03/2014
É muito oportuno --apesar de bastante raro por aqui-- que museus proponham uma reflexão sobre o atual contexto do país.
A mostra "140 caracteres", em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), parte das manifestações públicas que ocorreram no país em junho do ano passado para revisitar seu acervo com questões que poderiam surgir desse fenômeno.
A exposição ganha ainda destaque pelo caráter coletivo de sua concepção: foi organizada por 20 integrantes de um laboratório de curadoria do museu, sob a coordenação de Felipe Chaimovich, o diretor da instituição.
O título indica uma das leituras que o grupo deu aos protestos: 140 é uma referência ao limite de caracteres para uma mensagem no Twitter, atribuindo assim às redes sociais um crédito pela iniciativa das mobilizações.
Do título, a mostra conserva ainda o número de obras, trocadilho fácil, mas aceitável.
Contudo, uma das primeiras questões é a baixa quantidade de obras contemporâneas que promovem uma reflexão de fato sobre o país.
RESGATE
A resposta a esse problema pode buscar dois caminhos: ou o museu tem poucas obras que tratam do país nos anos recentes, ou a produção atual parece distante das ruas, sendo que esta última possibilidade parece a mais correta.
Assim, restou à curadoria um exercício de resgate, ao trazer muitas obras dos anos 1970 --que aí sim enfrentavam a ditadura de forma explícita, como em trabalhos em Marcello Nitsche e Rubens Gerchman.
Ou então apresentar trabalhos recentes que ganham atualização após os conflitos, como os vidros quebrados de Iran do Espírito Santo ("Ato Único" 3 e 5) ou o cavalete de vidro com estilhaços de bala de Marcelo Cidade ("Tempo Suspenso de um Estado Provisório").
É um tanto estranho que as máscaras feitas por artistas para os bailes do museu sejam também expostas em referencia aos black blocs, assim como alguns textos de parede um tanto piegas, como "minha pátria é minha língua, verde grito de esperança". Mesmo assim, refletir o contexto a partir de um acervo é exercício necessário.
Sou um porco, diz artista famoso por perturbar rotina de museus por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Sou um porco, diz artista famoso por perturbar rotina de museus
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 27 de fevereiro de 2014.
Tino Sehgal, Pinacoteca do Estado, São Paulo, SP - 23/03/2014 a 04/05/2014
Tino Sehgal é algo entre coreógrafo e escultor. No comando de 40 pessoas zanzando pelo átrio do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, o artista britânico tenta moldar os movimentos espontâneos que vê surgir ao mesmo tempo em que busca impor um roteiro rígido à ação.
É um ensaio para sua primeira mostra no Brasil, reencenando uma obra que já fez na Tate Modern, em Londres.
Em duas semanas, quem entrar no museu carioca vai se ver no meio de um enxame de gente, entre hipsters e senhorinhas, que anda de um lado para o outro fazendo pausas para contar momentos íntimos aos visitantes.
"Vivemos numa sociedade de massas, com uma população maior do que nunca, e ao mesmo tempo marcada pelo individualismo mais extremo", diz Sehgal. "Então pensei em conjugar as duas coisas. Queria um grupo que pudesse mostrar também as individualidades de cada um." E a dele também. Sehgal virou uma estrela da arte contemporânea criando esses híbridos de acontecimento espontâneo com uma técnica teatral firme e arrebatadora.
Na última Bienal de Veneza, venceu o Leão de Ouro com uma ação em que atores cantavam e dançavam na entrada da mostra principal nos Giardini, criando um alvoroço no meio do resto das obras.
"Há elementos decididos de antemão, mas muita coisa surge na hora. Em todo caso, tudo faz parte de um algoritmo que orienta o trabalho."
Dessa mesma forma, algo entre teatro e "happening", ele instalou uma espécie de discoteca à capela na Documenta, em Kassel, na Alemanha. Era uma sala escura em que o público esbarrava, sem nada ver, em cantores e bailarinos que se esbaldavam numa festa improvisada.
"Era importante bloquear a visão ali", diz Sehgal. "Esse é o sentido mais forte da nossa era, mas queria deixar aflorar os outros sentidos, para criar uma conexão mais potente entre as pessoas."
DIVAS FABRICADAS
Sehgal fala muito da busca por elos invisíveis entre desconhecidos, mas evita qualquer contato maior com o resto do mundo.
Na entrevista à Folha, não respondeu boa parte das perguntas. Ficava em silêncio, olhando para o lado ou o teto, para dizer que "não é o papel do artista falar sobre sua obra", arrematando que o que faz não é arte. "Nem acredito em arte, acredito em rituais. Arte é uma noção gerada por museus", diz Sehgal.
"Sou um porco comigo mesmo, mal me conheço. Artistas são pessoas comuns que se deixam seduzir pelo som da própria voz."
E às vezes se deixam ludibriar pelo momento em que a indústria das artes visuais fabrica divas nos mesmos moldes de Hollywood.
Sehgal é até um cara simpático, mas metódico e difícil. Nada pode ser fotografado sem permissão. Seus assistentes monitoram cada passo de jornalistas ao seu redor e as entrevistas são cronometradas. Só viaja de navio, para não adensar a sua pegada de carbono, e às vezes exige isso de sua equipe.
Uma economista que participa de sua performance no Rio até enxerga seus métodos rigorosos como fórmula para o sucesso. "Ele é superjovem e superpremiado", diz Iaci Lomonaco. "É genial essa estratégia dele, até mesmo do ponto de vista econômico."
Depois do Rio, ele virá de ônibus a São Paulo, onde mostra mais três trabalhos na Pinacoteca do Estado. São ações do início da carreira.
Numa delas, bailarinos imitam cenas de beijos famosos das pinturas do museu. Em outra ação, atendentes da bilheteria vão ler manchetes dos jornais aos visitantes.
Sehgal desestabiliza a ordem com momentos imprevisíveis, dos beijos na galeria a guardas de museu que irrompem em danças e cantorias.
É o que chama de "estrutura dialógica" em sua obra, que depende sempre da reação dos espectadores e busca "a sutileza interior" que a arte parece ter perdido.
O jornalista viajou a convite do Centro Cultural Banco do Brasil.
Em livro de ensaios e contos, crítico Rodrigo Naves disseca mundo artístico por Silas Martí, Folha de S. Paulo
Em livro de ensaios e contos, crítico Rodrigo Naves disseca mundo artístico
Matéria de Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 1 de março de 2014.
Não é a fúria que mete medo. No caso de Rodrigo Naves, 60, é a calma que assusta. Depois de sofrer um aneurisma durante uma cirurgia no coração há dois anos, o crítico de arte finalizou um livro que mistura ensaios, poemas e alguns contos de ficção.
Em "A Calma dos Dias", seu segundo livro de prosa que chega agora às livrarias, Naves ataca em textos breves o que chama de "serenidade e algo de aterrorizante que existe nessa calmaria", como se depois de ver a morte de perto o mundo reaparecesse mais "cristalino", com "uma ausência de topografia".
Naves disseca o cotidiano com um desencanto arguto, das meninas que vê passar nas ruas aos excessos e bobagens da arte contemporânea, que diz ter perdido sua relevância e virado vítima de "uma avalanche teórica".
Tanto que ele afirma ver mais arte no modo de vestir das garotas do que em museus. E desvia o olhar para analisar sujeitos incomuns nos livros de arte —Michael Jackson e Gisele Bündchen.
Na visão de Naves, Jackson foi um "mártir do culto à imagem", enquanto a modelo é uma espécie de Botticelli que saltou para fora dos quadros, "majestosa e inesgotável".
Em entrevista à Folha, Naves comentou os assuntos de seu novo livro. Leia a seguir trechos da conversa.
Folha - Seus textos no livro parecem marcados por um pessimismo muito forte. Tem algo a ver com o medo da morte?
Rodrigo Naves - Da morte eu não tenho medo. Na verdade, tenho medo de sofrer. Eu acho que é uma dimensão mais triste do que pessimista, que vem de uma mudança que eu percebo no cotidiano.
Vejo que tudo ganhou uma planura, uma ausência de topografia, como se você pudesse antever tudo e qualquer coisa. Ou seja, nenhum movimento que pareça prometer mudanças ou transformações nessa ordem, ou ameaçar essa serenidade.
Mas os protestos pelas ruas não são agito suficiente?
É como se as pessoas estivessem reivindicando uma reivindicação. Acho que houve uma certa dissonância entre o barulho que se fez, a grandeza do movimento, e o que movia isso. Há um descontentamento amplo, que é uma coisa que eu sinto, mas que você não sabe dar nome.
Num dos textos, você analisa o modo de vestir das mulheres. A moda é um novo interesse?
Quem não tem certo interesse pelo mundo, pela realidade, não encontra uma forma de ser permeável aos toques, às pessoas, às coisas e tem uma uma relação mais empobrecida com o mundo.
É uma tentativa de entender como essa moda se generalizou, de usar o top de um jeito, a cintura baixa. Quis fazer uma descrição disso tudo esperando ao mesmo tempo que um sentido surgisse dessa própria descrição. É uma relação semelhante à que eu tenho com obras de arte.
Tanto que você diz ver mais arte nessa moda do que em galerias e museus. A arte perdeu seu encanto para você?
Não sou pessimista em relação à arte contemporânea. Mas talvez por excesso de dinheiro e preços exponenciais, o sucesso comercial tenha virado um critério para determinar o que é boa arte. Isso chega a ser aflitivo.
Esse ideia de que arte é vida, tão forte hoje, também faz com que muitas vezes você deixe de olhar a vida para ver obras que falam dela, quando há pessoas na rua fazendo coisas desconcertantes, reveladoras. Estar de olhos abertos é importante.
Suspeito que as pessoas do meio têm uma relação muito teórica com a arte, e é muito difícil a teoria dar conta da obra. Essas avalanches teóricas estão em função de a arte ter perdido a relevância.
Mas quando desvia o olhar e escreve sobre Michael Jackson e Gisele Bündchen, por exemplo, você usa os mesmos raciocínios da crítica de arte. Isso é uma provocação?
É uma provocação e também uma tentativa de entender o que torna a Gisele algo deslumbrante. É criar um padrão para olhar as coisas.
Quando falo que o Michael Jackson é a "Pietà" do pós-modernismo é porque ele levou a noção de imagem às últimas consequências, ele interveio no próprio rosto em mais de 20 cirurgias. Ele é um mártir desse culto à imagem.
Mesmo assim, você vê uma audácia nele que passa ao largo dos artistas brasileiros. O que quer dizer quando afirma que eles "sofrem de Brasil"?
Há certa dificuldade de nossos cidadãos mais virtuosos serem violentos, mais impositivos. O [Alberto da Veiga] Guignard, por exemplo, mais sofria o mundo do que se impunha a ele. Ele sofre de Brasil nessa ideia de que talvez não tenhamos construído uma sociedade estruturada o suficiente para que se possa fazer um movimento forte em direção a uma realização.