|
dezembro 4, 2013
Abaixo-assinado: Fortalecer os programas de fomento e reativar os equipamentos culturais de arte contemporânea de Pernambuco
ABAIXO-ASSINADO
Fortalecer os programas de fomento e reativar os equipamentos culturais de arte contemporânea de Pernambuco
Chamamos a atenção para o gritante descompasso entre o reconhecimento que a produção em artes visuais feita em Pernambuco (e especialmente no Recife) vem recebendo em outros estados e no exterior desde finais da década de 1990 e a capacidade institucional de exibir, colecionar e estudar essa produção. Se, em princípios da década de 2000, houve uma sinalização de que esse descompasso seria em algum tempo diminuído, os anos recentes foram de patente retrocesso.
É necessário que haja dos gestores municipais e estadual um compromisso profissional e administrativo para implementar uma política cultural fortalecendo os programas de fomento à produção e formação artística e reativar os espaços de exibição para o escoamento da potente produção artística de Pernambuco e voltarmos a ser um pólo das artes visuais no Brasil.
Leia abaixo a íntegra da carta e assine o manifesto no Avaaz.
Recife, novembro de 2013.
Carta do Fórum Independente de Artes Visuais do Recife
Prezados Governador Eduardo Campos e Prefeito Geraldo Júlio
É com grande expectativa que nós, membros do Fórum independente de artes visuais do Recife, nos dirigimos aos senhores para expressar um breve diagnóstico do segmento, bem como nossas apreensões e demandas. Cumpre destacar que este fórum é suprapartidário e engloba agentes culturais de várias linhas de pensamento e de várias formas de ação no campo das artes visuais.
Chamamos a atenção para o gritante descompasso entre o reconhecimento que a produção em artes visuais feita em Pernambuco (e especialmente no Recife) vem recebendo em outros estados e no exterior desde finais da década de 1990 e a capacidade institucional de exibir, colecionar e estudar essa produção. Se, em princípios da década de 2000, houve uma sinalização de que esse descompasso seria em algum tempo diminuído, os anos recentes foram de patente retrocesso.
Se tal regressão é já inaceitável, passa a ser chocante quando se considera que o agravamento da incapacidade de os poderes municipal e estadual estarem à altura, em suas ações institucionais, da reconhecida qualidade da produção local, ocorra em momento de grande dinamismo econômico por que passa a região há já quase uma década. A despeito do vigoroso crescimento de arrecadação do Estado e do município, aquelas ações tornaram-se, nesse período, ainda mais tímidas e desarticuladas, no limiar de se tornarem simplesmente desimportantes. Em particular, parece-nos evidente a pouca (ou quase nenhuma) atenção concedida às instituições voltadas às artes visuais, bem como ao aprimoramento dos instrumentos de fomento à produção artística.
Não fosse por outro motivo para um efetivo comprometimento do setor público com as artes visuais (e há vários, que serão oportunamente trazidos à discussão em novos comunicados), a economia das artes é das mais importantes e dinâmicas no mundo, e poderia, nesse momento de acelerado crescimento da economia local, participar ativamente na diversificação dos seus resultados, bem como na multiplicação de seus ganhos, associando produção simbólica à geração de emprego e renda. Não faltam exemplos bem sucedidos dessa proximidade promovida por agentes públicos, quer no plano internacional (em um exemplo extremo, basta lembrar que a Tate Modern, em Londres, atrai mais de 5 milhões de visitantes ao ano), quer no território nacional (a Pinacoteca de São Paulo atrai hoje centenas de milhares de visitantes para ver suas exposições, tendo se tornado, em poucos anos, um marco institucional na capital paulistana e no país).
Não se quer aqui comparar o poderio simbólico e patrimonial de Londres ou de São Paulo com os de nosso Estado e capital. Não nos apetece o desmedido ou a adjetivação vazia, mas tão somente atestar a inexistência de políticas e projetos públicos locais que, em sua natureza, ainda que não em dimensão, poderiam se espelhar naqueles e em tantos outros projetos bem-sucedidos de políticas públicas que atam, em círculo virtuoso, produção artística e crescimento econômico.
O fato é que não há justificativa plausível para que Pernambuco e sua capital, com expressiva e reconhecida importância nas artes visuais brasileiras moderna e contemporânea, não possuam instituições fortes e à altura dessa relevância. Instituições que, devidamente profissionalizadas e equipadas, são essenciais para a formação, pesquisa, conservação, divulgação e renovação da produção artística que se faz aqui, promovendo ainda, como parte indissociável de seu trabalho, o intercâmbio com produções vindas de outros cantos. Instituições que, operando como devido, fariam de nossos museus os equipamentos educativos que de fato deveriam ser, e que infelizmente nem de longe são.
Em verdade, a situação de nossos principais museus de arte moderna e contemporânea é próxima do desastre, tanto em termos físicos quanto em termos gerenciais. A começar por não possuírem quadros profissionais estáveis. Sequer têm curadores. E se alguns poucos deles estão minimamente equipados para a conservação de seus acervos, o amadorismo nos procedimentos de guarda é gritante (e não por culpa de seus esforçados mas insuficientemente treinados funcionários), pondo em situação de risco valiosas coleções, bem como a integridade física de seu (pouco) público. Neles também quase não existem ações propositivas de programas de exposições, cursos, publicações, pesquisas, etc., sendo extremamente dependentes de projetos feitos por terceiros. Os museus de arte locais funcionam, no mais das vezes, como “caixas” que apenas recebem o que outros concebem, sem criar uma identidade simbólica a partir de projetos que sejam seus. Sem falar na ausência de equipamentos básicos de segurança em várias dessas instituições, deixando-as expostas a roubos e à possibilidade de incêndios, acentuada por redes elétricas sabidamente deficientes ou francamente condenadas. A lista de deficiências seria grande, se quiséssemos aqui continuar, indo da inexistência de uma política de aquisições à improvisação de programas educativos. Por agora, basta o esboço da gravidade do quadro.
É preciso mencionar ainda, porém, uma das principais razões para a precarização da gestão dos museus de arte locais. Museus são equipamentos que, por natureza, promovem ações que fogem à lógica de política de eventos como a consagrada, com maior ou menor ênfase, no Estado e no município nas duas últimas décadas (salvo poucas exceções), a qual privilegia os chamados grandes “ciclos” de festejos (carnaval, são João, natal) em detrimento de ações permanentes e formadoras com menor visibilidade na mídia. Talvez por tal motivo, seus orçamentos anuais são, na maior parte das vezes, menores do que uma única atração nacional contratada para qualquer um dos três ciclos mencionados acima (não há exagero nessa comparação). Essa é uma distorção inaceitável, que denuncia uma concepção produtivista e puramente midiática do que seria cultura e arte. A longo prazo, este tipo de política cultural não forma audiência crítica e esvazia a potência transformadora que a arte embute.
O que espanta é, diante de situação tão sabida quanto grave, não conseguirmos vislumbrar, nas atitudes e nos discursos até então tornados públicos pelas administrações do Estado e da capital, qualquer mudança efetiva que nos faça crer que uma mudança relevante neste cenário esteja em pauta no presente momento. Assistimos, com pesar e apreensão, ao progressivo declínio ou desmonte de nossas instituições artísticas, ao ponto de elas terem se tornado francamente desimportantes, quase invisíveis na malha cultural do Estado e da cidade.
A inépcia das políticas públicas em artes visuais do Estado e do município é também percebida para além do descaso com suas instituições museológicas. Um exemplo, entre tantos, foi o pífio retorno, em 2013, do SPA - Semana de Artes Visuais, após seu cancelamento em 2012 e uma década de funcionamento. Além de ser um índice de um processo mais amplo de desarticulação das ações institucionais relacionadas às artes visuais no Governo de Pernambuco e na Prefeitura do Recife, essa insistência em um evento esvaziado demonstra a falta de imaginação, ou mero desinteresse, na formulação de políticas públicas relevantes para o setor.
O caminho para reverter ou mesmo remediar a situação aqui mencionada não é, em definitivo, o retorno do SPA ou a eventos similares, mesmo com melhores condições orçamentárias, posto que, a despeito de suas qualidades (principalmente as demonstradas no momento em que foi criado, pondo artistas de diferentes regiões em contato em um momento em que redes de comunicação virtual ainda não estavam fortificadas, como ocorre hoje), o SPA não institui nada na cidade. Ou, ainda pior, escamoteia as reais e gritantes deficiências do setor. Embora tenham importância pontual, festivais, semanadas, viradas culturais e outros eventos similares não são instrumentos capazes de confrontar aquelas deficiências. Criam a ilusão passageira de estar-se na linha de frente da discussão da produção em artes visuais sem de fato estar-se. Nem em termos de produção, nem em termos de exibição, nem em termos de reflexão. O que se precisa é de ações que instituam e adensem, de modo continuado, um ambiente propício à criação, à formação, ao debate crítico e à divulgação da produção em arte visuais, daqui e da feita em outros lugares.
É nesse contexto que decidimos contribuir para que essa lamentável realidade possa ser revertida, fazendo com que nossas instituições estejam à altura da qualidade da produção artística feita em Pernambuco e, em particular, no Recife. Contribuição que é feita, em primeiro lugar, através de pressão, legítima e democrática, para que as autoridades eleitas façam jus ao compromisso que assumiram com as populações deste Estado e desta cidade; e façam jus, principalmente, à história remota e recente de uma produção artística que, ao longo de décadas, tem recebido a aprovação e o respeito crítico dentro e fora da região. Pressão que será, a partir de agora, feita com ainda mais vigor e frequência, pois não podemos abrir mão da responsabilidade que nos cabe, como artistas, curadores, críticos, gestores, produtores e tantas outras filiações profissionais que nos unem em torno da criação artística, frente à inexistência de uma política pública clara e articulada para as artes visuais de Pernambuco e do Recife. Pressão, contudo, que não exclui o debate e o diálogo. Muito pelo contrário, pressão que demanda, em primeiro lugar, que os governantes finalmente exponham francamente os seus planos para as artes visuais do Estado e do município e os debatam com os muitos interessados e implicados. O mutismo, nessa situação já grave, é não menos que inaceitável.
Atenciosamente,
Fórum independente de artes visuais do Recife
O Masp e a casa da sogra por Raquel Rolnik, Folha de S. Paulo
O Masp e a casa da sogra
Artigo de Raquel Rolnik originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo em 2 de dezembro de 2013.
Há duas semanas o "Estadão" defendeu em seu editorial o cercamento do vão livre do Masp como forma de proteger o museu da ameaça de "viciados", "traficantes", "moradores de rua" e "grupos de manifestantes" que tomaram conta do espaço.
O jornal reverberou declarações do curador do museu, Teixeira Coelho, que, diante da recusa do Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional em aceitar seu pedido de instalação de grades no vão livre, classificou tal posição como "um atraso".
Outra solução levantada pelo editorial seria "uma ação enérgica" da polícia, "para colocar cada um no seu devido lugar", já que o vão livre se tornou "a casa da sogra", "onde qualquer um faz o que bem entende".
Reportagem da Folha da última sexta-feira estampa barracas de camping ocupando o espaço, servindo de moradia a pessoas sem teto, e reitera a imagem de "abandono" do lugar.
Não é à toa que o Masp se tornou um dos símbolos de São Paulo, além de um dos lugares mais apropriados pelos paulistanos. Poucos são os espaços da cidade que estabelecem uma relação tão bem-sucedida entre o público e o privado, a cultura, a arte e a vida cotidiana dos cidadãos.
Na contramão dos equipamentos culturais desenhados para serem monumentos de celebração a uma arte-mercadoria, glamourizada e identificada com as elites, o Masp nasceu para ser uma espécie de antimuseu, radicalmente aberto para a cidade.
Em filme de 1972, Lina Bo Bardi, autora do projeto, fala sobre o Masp: "[...] minha preocupação básica foi a de fazer uma arquitetura feia, uma arquitetura que não fosse uma arquitetura formal, embora tenha ainda, infelizmente, problemas formais. Uma arquitetura ruim e com espaços livres que pudessem ser criados pela coletividade. Assim nasceu o grande belvedere do museu, com a escadinha pequena. A escadinha não é uma escadaria áulica, mas uma escadinha-tribuna que pode ser transformada em um palanque. Eu quis fazer um projeto ruim. Isto é, feio formalmente e arquitetonicamente, mas que fosse um espaço aproveitável, que fosse uma coisa aproveitada pelos homens".
O vão livre do Masp é, portanto, o próprio museu. E os moradores da cidade, celebrando este belo presente, afirmam todos os dias seu caráter público: heterogêneo e múltiplo, ocupado e povoado por todo e qualquer tipo de gente, de evento e de situação, afirmando ali a dimensão pública da arte, da cultura e da cidade.
Se nos choca e indigna ver o vão do Masp (e outros espaços públicos) ocupado por pessoas viciadas em crack e moradores sem teto, é de políticas públicas decentes de saúde mental, de moradia e de assistência social que necessitamos, com urgência.
Não são as grades nem a repressão policial que vão enfrentar a situação de vulnerabilidade em que se encontram muitos paulistanos. Se eles estão ali, expondo a precariedade e a situação limite de sua existência, é porque, simplesmente, não há nada nem ninguém que os acolha, propondo alternativas reais para essa situação.
A imagem das barracas armadas no Masp só afirma a urgência de implementação de políticas que avancem nesta direção. Uma boa gestão de cidade mantém a qualidade de seus espaços públicos cuidando tanto de seu estado físico de conservação quanto da vulnerabilidade de parte de seus cidadãos.
Se o vão livre do Masp tem sido cada vez mais palco de manifestações, é justamente por acolher de forma tão eloquente uma das reivindicações centrais dos protestos recentes: a necessidade de constituição de uma esfera verdadeiramente pública no Brasil.
dezembro 1, 2013
Presidente do Ibram se reúne com galeristas e diz acolher pedido de mudanças em decreto por Juliana Gragnani e Silas Martí, Folha de S. Paulo
Presidente do Ibram se reúne com galeristas e diz acolher pedido de mudanças em decreto
Matéria de Juliana Gragnani e Silas Martí originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 29 de novembro de 2013.
Depois de uma reunião com agentes do mercado da arte nesta quinta-feira (28), em São Paulo, o presidente do Instituto Brasileiro de Museus, Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, se comprometeu a levar à ministra da Cultura, Marta Suplicy, um documento com reivindicações do setor sobre o decreto que regulamenta os museus.
Documento assinado pela presidente Dilma Rousseff no mês passado, a medida determina que qualquer obra de arte no país pode ser declarada de interesse público, impondo restrições à sua venda, circulação e restauro. Desde outubro, a lei vem causando preocupação entre galeristas e colecionadores, que temem que o mercado de arte seja abalado pela lei.
Enquanto isso, o departamento paulista da Ordem dos Advogados do Brasil estuda o decreto e deve emitir um parecer em dezembro dizendo ser inconstitucional a medida, por ferir o direito à propriedade privada e à privacidade, além de violar determinações da lei que regula direitos autorais.
Luisa Strina, galerista que cedeu sua casa para o encontro desta quinta, disse ter sido "muito boa" a reunião. "Ele foi muito receptivo e gentil", disse Strina, sobre o presidente do Ibram. "Tem muita chance disso ser superbom para nós. Agora vamos levantar os pontos que gostaríamos que fossem mudados e enviar para ele."
Entre os pontos "nebulosos", nas palavras de Araújo Santos, falta esclarecer que tipo de obra pode, de fato, ser declarada de interesse público e o que isso implica, em especial no que tange à circulação da obra.
Galeristas --Alessandra d'Aloia, sócia da Fortes Vilaça, também esteve na reunião-- aproveitaram o encontro para reforçar o lobby do setor pela redução de impostos que incidem sobre a importação de obras de arte, que no Brasil chegam, em média, a 50% do valor das peças.
"Há pontos nebulosos que trouxeram grande inquietação, mas nós não queremos prejudicar o mercado", diz Araújo Santos à Folha. "É por isso que vamos acatar o documento com os pedidos do mercado. Também vou levar à ministra o pleito deles pela simplificação do sistema tributário para a circulação das obras de arte."
Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural e secretário-geral da Associação Nacional das Entidades Culturais, também esteve no encontro com o presidente do Ibram e deve liderar a elaboração do documento a ser enviado em até 15 dias para o Ministério da Cultura.
Um dos pontos do documento, segundo Saron, será pedir esclarecimentos sobre que obras serão declaradas de interesse público e que benefício ou prejuízo isso traz para o dono da peça.
"Esse é um campo que tem de ser esclarecido, para não dificultar a circulação das obras e burocratizar ainda mais", diz Saron. "Vamos sugerir que tudo seja sem burocracia e mais transparente."
Também haverá pressão por parte do mercado de arte para que a nova comissão a ser formada pelo Ibram para determinar que obras serão ou não declaradas de interesse público tenham membros da sociedade civil, já que a previsão inicial é que só técnicos do órgão do MinC integrem o grupo.
CHAMADA PÚBLICA
Em evento nesta sexta-feira (29) no Museu Lasar Segall, em São Paulo, Araújo Santos e Marta Suplicy comentaram o decreto. O museu, que é ligado ao MinC, recebeu a doação de 110 obras pertencentes à coleção particular de Mario Segall, neto de Lasar Segall.
"Esse decreto não foi feito para interditar, proibir ou sequestrar obras", disse Araújo Santos.
Depois da cerimônia, em conversa com Eduardo Saron, Marta afirmou que observou "medo e inquietação desnecessários" em relação ao decreto. "Estão falando de um Brasil que não existe mais. Houve épocas em que se invadiam terreiros. A Polícia Federal tem um acervo gigantesco de peças de terreiro. Hoje, o Brasil é outro, é um país democrático, que respeita a propriedade privada. Nós não vamos entrar na casa das pessoas pra pegar as obras", afirmou a ministra. "Estamos abertos para escutar e ouvir sugestões."
Araújo Santos disse que o MinC pensa em abrir uma chamada pública pela internet para ouvir sugestões da população. "Se chegarmos à conclusão de que alguma coisa mereça mais detalhamento, podemos fazer isso por meio de uma portaria."
O presidente do Ibram afirmou ainda que a simplificação do sistema tributário para a circulação das orbas de arte depende de uma iniciativa do Ministério da Fazenda, e não do Ministério da Cultura, que, segundo ele, irá iniciar um diálogo sobre o tema com a pasta. "Vamos mostrar para a Fazenda que isso é positivo para o país."
O sonho do vão-livre por Teixeira Coelho, Folha de S. Paulo
O sonho do vão-livre
Opinião de Teixeira Coelho originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 1 de dezembro de 2013.
O Masp, no passado, propôs grades nas laterais da esplanada. Órgãos do patrimônio não concordaram. Que liberdade se protege?
Pouco depois de aberta a mostra "A Terra Vista do Céu" no vão-livre do Masp e nas grades do Trianon, do outro lado da avenida, vi de novo o toque irresistível do efeito civilizatório da arte: fotos belas e intrigantes e uma luz sobre cada uma ao escurecer faziam as pessoas deter-se ali onde só passam apressadas (diante do Trianon) ou nem se atrevem a entrar (no vão-livre). Ninguém vendia nada, ninguém arengava ninguém: só a arte e as pessoas --e a cidade mudava um pouco. As pessoas se esqueciam até de que parar ali é virar presa fácil. A arte é perigosa de mil modos.
Não durou muito o efeito civilizatório: a insegurança no vão-livre levou à suspensão do serviço educativo da mostra. A ilusão se desfez.
O que fazer com o vão-livre do Masp que não é do Masp mas da prefeitura (quer dizer, de todos nós), a quem cabe cuidar dele e decidir o que com ele fazer?
Antes disso: o que é o vão-livre do Masp? Um lugar de sonho. Um sonho da arquitetura, a afirmar que a mente é mais forte que a natureza: quatro pilares sustentam um prédio, sem mais colunas ou paredes. O vão-livre era (já mudei o tempo do verbo) o sonho de uma vista desimpedida. Quando se fez, dali se podia ver longe rumo às montanhas. Hoje a vista é bloqueada por um espinheiro de prédios que a vista rejeita. Vista é patrimônio cultural mas a proteção do patrimônio não a viu. É preciso enxergar longe para proteger uma vista. Hoje, alguns entendem que "vão-livre" é "lugar que qualquer um pode usar para qualquer coisa quando quiser" --e se exibem fotos de concentrações e comícios no vão-livre. O sonho desse vão-livre é a liberdade. Sim. Só que também a liberdade se preserva. O Trianon não tinha grades; hoje tem. E depois de certa hora fica fechado, para proteger as pessoas. A liberdade fica lá dentro ou é fechada aqui fora?
E ressurgem as grades. Um jornalista me perguntou o que o Masp faz para evitar que pessoas se joguem no vazio desde a esplanada ou dela caiam e morram. O museu não tem poder sobre a área. Mas observa o que ali acontece e no passado propôs grades nas laterais da esplanada. E grades rebatíveis, alojadas e invisíveis no piso durante o dia e erguidas à noite, diante do vão-livre. Os órgãos do patrimônio não concordaram. Que liberdade se protege, qual não deve ser protegida?
O jornalista perguntou que mais o Masp proporia para o "problema do vão-livre". A arquiteta Lina Bo Bardi tinha outro sonho, como se vê num desenho seu: um grande parque infantil, sem grades. À época, anos 60, São Paulo era civilizada. Hoje, na cidade, como são as crianças autorizadas a usar um parque infantil? Atrás de grades. Os agressivos paralelepípedos que recobrem o chão do lugar não são amigáveis para esse uso, mas essa é outra história e não a única agressividade.
O que mais pode o Masp propor?, seguiu indagando o jornalista. O sonho da cultura e da arte o tempo todo, respondi, como caberia ao cartão postal da cidade e principal motivo para os turistas virem para cá. Não pode: todo fim de semana uma feira autorizada pela prefeitura ocupa o lugar, deixando para a arte apenas o fundo da esplanada, invisível e inacessível atrás das barracas. O sonho do comércio é mais forte que o sonho da arte.
O Louvre teve problemas: ladrões agiam em seu "vão-livre" e dentro do museu. Museus, como a arte, são o lugar do perigo. Mas, o Louvre é do Estado francês e o Estado francês resolveu ao seu modo: mais segurança. Um parque central em Berlim virou ponto de uso e venda aberta de drogas. Os vizinhos se fartaram e a "prefeita" do bairro abriu "cafés" para a venda de drogas leves, o parque reviveu. Os usuários e traficantes de droga têm seu sonho, os moradores da cidade e turistas têm outro. "Chegou a hora de aplicar soluções fora do comum", disse a "prefeita".
Sonhos viram pesadelos. São Paulo virou um pesadelo sem fim. O vão-livre do Masp que não é do Masp não pode sonhar sozinho. Pode esperar ter o mesmo pesadelo de todos --até que venham soluções fora do comum. (Às vezes, sonho que o Masp é um estorvo na cidade --porque arte e cultura são um estorvo no país. Mas acordo a tempo: um estorvo é mais positivo do que parece.)
TEIXEIRA COELHO, 69, é escritor, doutor em teoria literária pela USP e curador do Masp (Museu de Arte de São Paulo)
Liberdade para o vão, editorial da Folha de S. Paulo
Liberdade para o vão
Editorial originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo em 1 de dezembro de 2013.
É sinal preocupante de indigência social e cultural --que não deveria combinar com São Paulo-- a ideia de gradear o vão-livre do Masp, uma área pública da cidade incorporada pelo projeto inovador da arquiteta Lina Bo Bardi.
Instalava-se naquele lugar, em outra época, o belvedere do Trianon, edifício projetado por Ramos de Azevedo onde, num banquete ali realizado em 1921, o então jovem escritor Oswald de Andrade lançou o primeiro grito do movimento modernista de São Paulo.
Demolido, o Trianon deu lugar ao pavilhão provisório em que se realizou a primeira Bienal de São Paulo, sob os auspícios de Ciccillo Matarazzo. Em 1968, foi inaugurada a nova sede do Masp, criado em 1947 por iniciativa do empresário e jornalista Assis Chateaubriand.
O desenho do projeto partiu da exigência de não haver colunas no local, mantendo-se aberto o belvedere --condição imposta pelo antigo proprietário do terreno, o urbanista Joaquim Eugênio de Lima, quando o doou à cidade.
A solução da arquiteta foi construir o museu com um vão-livre de 74 metros de extensão e assentá-lo sobre uma esplanada --o que deu personalidade ao prédio e o inscreveu na história da arquitetura moderna. "Gostaria que lá fosse o povo, ver exposições ao ar livre e discutir, escutar música, ver fitas. Gostaria que crianças fossem brincar no sol da manhã e da tarde", disse certa vez Lina Bardi.
A cidade, infelizmente, tem sido menos gentil com a obra. O vão-livre tornou-se ponto de drogas; serve de abrigo a moradores de rua. Criou-se tal clima de insegurança que o estande de uma exposição foi desmontado antes do previsto.
Deu-se ensejo a nova onda de debates sobre o local, também usado como espaço de manifestações. Seria, para alguns, a hora de adotar medida drástica: cercar o vão-livre.
Entendem-se as aflições e os inconvenientes da situação. É ainda assim inadmissível que São Paulo, no intuito de enfrentar um problema cuja origem nada tem a ver com o vão-livre, descaracterize patrimônio com justiça tombado nas esferas federal, estadual e municipal.
Os paulistanos têm dado repetidas mostras de que querem mais, e não menos, espaços abertos de convivência. Uma mobilização envolvendo atividades do museu, comunidade e policiamento efetivo é caminho muito mais adequado aos tempos atuais --e livre do trauma que seria colocar o cartão postal da cidade atrás das grades.