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setembro 22, 2005
Grito de alerta Gentil, por Cleusa Maria
Grito de alerta Gentil
Matéria de Cleusa Maria originalmente publicada no Jornal do Brasil, no dia 17 de setembro de 2005
A conversa com os artistas plásticos Ernesto Neto e Marcio Botner, em uma mesa de calçada da Zakas Lanches, na Rua Luis de Camões, 16, no Centro da cidade, termina abruptamente. Reboco, cimento aos pedaços e tijolos despencam do muro da lanchonete no Corredor Cultural, uns três metros acima do lugar onde ocorre a entrevista. Justo no momento em que os dois sócios da Gentil Carioca falam sobre o tema da mostra, que será aberta hoje, às 15h, para comemorar os dois anos da galeria: a educação. Isto é, a falta que a educação faz ao Brasil.
A mostra reúne uma coletânea de desenhos de 64 artistas contemporâneos brasileiros - entre nomes consagrados e jovens. Sob o título de Educação, olha!, a exposição não pretende contextualizar complexos conceitos de arte. É um grito em coro por uma resposta.
- Estamos falando de educação mesmo, básica, fundamental. A Gentil resolveu fazer uma celebração mais reflexiva no seu segundo aniversário. Sempre tivemos preocupação com o assunto. É nosso grito de alerta a governos e pessoas físicas para que prestem atenção à educação no Brasil - explica Botner, 34 anos, que há dois, junto com Ernesto Neto, 41, e a também artista Laura Lima, 34, fundou A Gentil Carioca, em um antigo sobrado restaurado na Rua Gonçalves Ledo, 17.
Às voltas com uma garrafa de mineral gasosa e um copo de café, Neto se indignava quando foi interrompido pelo barulho de fragmentos chovendo do céu.
- Não quero mais saber que país é este. A gente quer saber que projeto é este?
Em seguida, se ouve o revestimento do muro pipocar e se espatifar na calçada. Só dá tempo de pular das cadeiras e se despedir, em clima de perplexidade. Antes disso, porém, Ernesto Neto, um dos mais cotados artistas plásticos brasileiros, completa a conversa, a uma distância mais segura do local do incidente, quase acidente:
- Nos últimos anos, o único que falou em educação no Brasil foi o Brizola. E isso não é coisa de brizolista (que sou), pois educação é meio de adquirir conhecimento, desde que se desenhou um bisão na caverna até hoje.
A dinamite Ernesto Neto complementa:
- Dentro dessa nossa reflexão, ficamos pasmos de ver como nos últimos anos a educação não parece ser um problema brasileiro. Mas ela é a questão fundamental do ser humano, principalmente no Brasil. Se queremos mudar alguma coisa neste país, seja na economia, na justiça social, na violência e até na corrupção, só se compreende isso pela educação. Mas esta palavra desapareceu do vocabulário político - diz Neto, enquanto Botner aquiesce, balançando a cabeça.
Os nomes escolhidos para compor a mostra saíram de uma lista tríplice elaborada pelos sócios. Tem gente de diferentes gerações. O mais velho dos artistas nasceu por volta de 1964 e está em torno dos 40. Nessa faixa, entre os selecionados, estão Adriana Varejão, José Damasceno, Ricardo Basbaum, Rosana Palazyan, Cabelo. Na ala dos mais moços estão os novíssimos, de 20 e poucos anos: Thiago Rocha Pitta, Carlos Contente, Pedro Varela e a iniciante Julia Csekö, que hoje inaugura também o projeto Parede da Gentil. Julia ocupa a fachada lateral do sobrado, que dá para a Rua Luis de Camões, com um trabalho criado a partir de um poema de João Cabral de Melo Neto: ''Assim como uma bala enterrada no corpo, fazendo mais espesso um dos lados do morto...''
E por que uma mostra de desenhos para gritar por educação? Marcio Botner pede a palavra:
- O desenho, muitas vezes, é a primeira escrita do artista, seu primeiro alfabeto.
Para Botner e Neto, a arte tem muito a fazer pela educação.
- Se a gente for ver, a história do homem é contada pela arte. É uma manifestação que acontece de qualquer maneira, é necessidade cultural. Os problemas do Brasil são de ordem cultural e não econômica. Economia é parte da cultura - Neto dá suas razões.
Botner pega carona.
- Uma obra de arte tem dentro dela uma bomba de cultura capaz de irradiar seja na casa de uma pessoa, em museus, instituições ou na rua. Vai do micro ao macro-mundo - diz ele, que também é professor na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. - Por isso nosso projeto Parede da Gentil mostra arte para quem passa pela rua sem que que seja preciso entrar na galeria.
Quem apóia o projeto da fachada é o colecionador Paulo Vieira. Não por acaso. Mas sim porque os sócios da Gentil entendem que o colecionismo é uma forma de legitimar a arte. E uma coleção se constitui em um acervo capaz de transmitir cultura e educação.
- São os acervos de arte públicos e particulares que contam a história da humanidade - alinhava Neto.
Cerca de 60% dos desenhos de Educação, olha! foram criados especialmente para a mostra. Outros, também inéditos, foram selecionados pelos autores. Os três sócios, artistas e curadores tentaram restringir a idéia dos trabalhos ao papel como base. Mesmo assim, apareceu de tudo: desenho sobre pedra, papelão, meias de algodão, folha de jornal.
- Desenho é uma coisa que acontece sobre uma folha de papel. Só que nem sempre o papel é o papel - simplifica Ernesto Neto.
E levanta a bola para Botner rebater:
- Desenho é a essência máxima do pensamento. O suporte não é o fundamental.
Para não perder o tom, poucos instantes antes da queda do pedaço de muro, Neto soltou os bichos:
- Por mais que alguns artistas discordem, a Gentil acha que esta estética da bandidagem já era. É ultrapassada. Temos de arrumar a casa, das ruas ao Congresso. O legal é ter respeito ao próximo e, sem perder a manemolência brasileira, um pouquinho de social-democracia pode ajudar.
setembro 6, 2005
caçando bruxas
caçando bruxas
Emeio enviado por Carlos Bernardi, para o jornal O Globo, sobre a matéria de Arnaldo Bloch, 'Estou do lado das bruxas', entrevistando Gilberto Gil, no dia 31 de agosto de 2005.
Prezado Arnaldo Bloch,
Parabéns por sua entrevista com o Ministro Gilberto Gil. Há tempos o Segundo Caderno carecia de uma cobertura mais instigante sobre as políticas públicas de cultura. Espero que esse seja apenas o início de uma grande mobilização em torno do tema, já que algumas questões (Plano Nacional de Cultura, Câmaras Setoriais, Conselho Nacional de Cultura) ainda estão circulando sem muitas explicações do Ministério.
Tomara também que o Globo se anime a registrar como anda a política cultural no Rio de Janeiro, já que houve a cobertura sobre a intervenção do Sergio Porto e depois um tremendo silêncio.
Grande abraço,
Carlos B.
setembro 1, 2005
'Estou do lado das bruxas, Gilberto Gil, entrevistado por Arnaldo Bloch
'Estou do lado das bruxas'
Gilberto Gil, entrevistado por Arnaldo Bloch, originalmente publicado no Segundo Caderno do Globo do dia 31 de agosto de 2005
Gil rompe silêncio sobre crise, mostra-se leal a Lula e diz que ministério é 'música para os ouvidos'
Contrariando o clima de luto vigente nas fileiras governamentais, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, estava de ótimo humor na tarde de anteontem, quando veio ao Rio para visitas e reuniões. Vestindo terno de riscas de giz, camisa Armani e meias Tommy Hilfiger, Gil decidiu, após muita resistência, que era sua vez de quebrar o silêncio sobre a crise, mesmo entendendo não caber a ele responder por uma situação externa à sua pasta. "Estou do lado onde as bruxas são caçadas", ironizou, referindo-se à dificuldade de tomar posição diante dos escândalos. Em meio a uma cruzada para compensar o corte de verbas do MinC (que inclui uma dura missiva ao governo) e vociferar a importância estratégica da Cultura, o ministro se disse feliz com o cargo e pronto, se convidado, para dar o bis.
O GLOBO: Chico Buarque disse que a alma do país está ferida. Caetano e Milton estão de coração partido. E Gilberto Gil?
GILBERTO GIL: Indignação, comoção, decepção e desilusão são emoções que se manifestam de forma diferente de pessoa para pessoa. Tem gente que não suporta sofrimento moral. Eu, por questão de índole, não reajo com tanta intensidade. Mas tem outro aspecto: eu sou do governo Lula! A não ser que algo resvale na minha área, não tenho que responder pela crise política. E não gosto muito, nunca gostei, dessa coisa inquisitorial de caça às bruxas... é muito bom que tenha, que se faça mas... mas...
Não é a sua praia...
GIL: Não é a minha praia, até porque eu estaria hoje... ou melhor, eu estou hoje, do lado das... do lado onde as bruxas estão sendo caçadas! Então não tenho muito o que dizer (risos)! No mais, já há uma pletora de opiniões. Vivemos numa sociedade de espetáculo e toda opinião é espetáculo, e é preciso que seja assim, porque tudo é TV, tempo real, tudo é teatralizado.
Ano passado a própria equipe do MinC sofreu seu processo inquisitorial, com a saída de quase toda a cúpula.
GIL: Pois é... todas aquelas dificuldades, de apurar, de avaliar, enfim, recompor a dimensão de integridade da ação pública. Essas coisas existem, temos que enfrentar, mas não se esgotam no plano da moralidade, do bem e do mal. É mais complexo. Como dizem filósofos pré-contemporâneos, estamos numa época em que somos cada vez mais controladores e controlados, uma época pragmática para além do suportável. Todo mundo sabe que o PT não inventou nada do que está aí. Pode até ter inovado (risos) aqui ou ali, mas inventar não inventou.
Como o senhor interpretou o silêncio da filósofa Marilena Chauí?
GIL: Gostei muito quando ela abordou a questão da virtude como capacidade de enfrentar adversidades e não apenas no sentido da chamada ética em política. É a virtu como responsabilidade maior. Ela inclusive citou os estudos de Maquiavel, ao detectar que muitos dos príncipes virtuosos de seu tempo tinham fracassado enquanto governantes. Exige-se do homem público que seja probo, honesto, mas não é só isso. Há todo um outro mundo de qualidades e habilidades.
O Brasil talvez precise de alguém com esse perfil. É comum citar JK como paradigma da tal virtude. Lula o fez semana passada.
GIL: Eu me lembro dos períodos pós-juscelinistas, como ele foi execrado. Caetano mesmo se referiu a isso na entrevista de domingo passado (publicada no Segundo Caderno), lembrando que JK inventou a inflação, essa praga que nos assolou. Ao mesmo tempo é tido como um virtuoso. Eu era fã de Juscelino, até hoje foi o único político por quem me encantei com devoção. Talvez porque ele simbolizasse a modernidade, e meu grupo estava antenado com isso. E ele punha isso no discurso, na maneira de vestir a sua personalidade, de compreender a dimensão psicossocial. Tinha vindo de família pobre mas era doutor formado; era classe média brasileira com um pé no mundo pobre e outro no mundo rico. A dificuldade do Brasil com um presidente como o Lula é muito grande nesse sentido. Ele quebra esse padrão médio.
Talvez Lula, ele mesmo, ainda não tenha compreendido esse Brasil mais complexo...
GIL: É uma colocação pertinente. Mas acho que uns, como Fernando Henrique e o Gabeira, têm se manifestado sobre isso de uma forma deselegante. Eu não poria nos termos que eles põem, mas entendo o que querem dizer.
Gilberto Gil é o 'Lula do Lula', como diz Caetano?
GIL: Ainda ontem, em Divinópolis, onde fui coroado Rei do Congado, a patrona da festa dizia de mim: "por ele ter chegado aqui onde chegou"... É o mesmo discurso que se faz em relação ao Lula, só que sobre um artista brasileiro do povo que chega a ser internacionalmente conhecido, que chega a ministro. É um simbolismo de fácil entendimento.
A decisão de aceitar o ministério em 2003 foi sofrida. Se o próximo presidente o convidasse para permanecer no cargo, o senhor aceitaria?
GILBERTO GIL: Não descarto a possibilidade de continuar contribuindo se a contribuição for reconhecida. Ao mesmo tempo, não é algo que seja fundamental. Se a gente deixar alguns encaminhamentos feitos, como o Plano Nacional de Cultura e uma conscientização do papel estratégico da Cultura no cenário nacional coisa que vem sendo feito com muita dificuldade já terá sido um grande passo para o meu sucessor seguir.
E a carreira de compositor? E o 'sambinha do ministério', quando é que sai?
GIL: Desproblematizei essa coisa de retomar carreira em sua plenitude. Estou fazendo outra coisa, dando uma contribuição cultural. Os fãs, os ouvintes, a cultura da MPB se ressentem um pouco, mas meus colegas cumprem esse papel, não há déficit de boa música. E não sinto falta de compor porque estou fazendo outro trabalho. Estou vendo muita coisa pelo Brasil e pelo mundo. O ano do Brasil na França foi o mais bonito de todos. O Brasil está aí, tem um papel importantíssimo em discussões sobre diversidade cultural, indústrias criativas, novos paradigmas de propriedade intelectual. Essas questões estão diretamente ligadas a mim e ao meu círculo. São música aos meus ouvidos! Estou tocando esses outros instrumentos por aí, e estou gostando. Tem muita gente por aí achando que eu não gosto, mas gosto.
'O PT não inventou nada do que está aí... pode até ter inovado, mas inventar
não inventou'
Gil vê falta de sintonia de áreas como Fazenda e Planejamento com tendências da economia contemporânea
Qual a avaliação do seu percurso como ministro?
GILBERTO GIL: A gente está conseguindo trazer a questão da cultura para uma pauta preferencial no Brasil. Começa a haver uma tomada de consciência de que a cultura é estratégica, ao lado de outras áreas que buscam reconhecimento, como meio ambiente e inclusão social. É um trabalho que precisa ser feito no Brasil, para além da oficina mecânica, da injeção de recursos nas artes, no patrimônio, na produção, na difusão. É preciso requalificar o discurso da cultura no Brasil, porque é um processo que se dá globalmente.
Na última reunião ministerial o senhor apresentou uma carta com duras críticas ao governo quanto a essa tomada de consciência.
GIL: Um governo que está dedicando tanto esforço em relação a superávit, austeridade fiscal etc está na contramão do apoio a setores que não são classicamente apoiados pela força política da sociedade. Há também uma dificuldade histórica de áreas como fazenda e planejamento de compreender o papel estratégico da cultura.
Isto não o deixa frustrado?
GIL: Veja bem: não é porque o governo é de mudança que essa consciência será instalada imediatamente. Se eu for pensar no esforço que vem sendo feito e na resposta que o governo tenta dar, tenho um panorama progressivo. Mas não de ousadia. Ainda não. Ainda carecemos de uma certa visão política que esteja em sintonia com um processo que é global. Há uma crescente migração da grande produção industrial para uma economia que é cada vez mais ligada ao conhecimento, à informação, à subjetividade. Isso é uma coisa nova, a gente não pode imaginar que os ministros de fazenda e presidentes de república tenham uma imediata compreensão disso.
Num país como o Brasil, coisas como infraestrutura vêm na frente.
GIL: Sim. São políticos egressos de quadros clássicos, trabalhando demandas como emprego, com agendas de momentos anteriores à contemporaneidade. Outro problema é a falta de indicadores: a cultura praticamente não tem estatísticas no Brasil. Você vai discutir com o Palocci sem ter os números que outros setores têm. A agricultura vai lá e põe na mesa produção, exportações, empregos gerados. Nós não temos esse dimensionamento econômico da cultura. Estamos buscando, fizemos convênios com IBGE, Ipea e entidades como Firjan, sindicatos, associações patronais.
Mas na Carta a Lula o senhor já apresenta alguns dados preliminares.
GIL: Sim. Por exemplo, 5% do emprego gerado no Brasil hoje vem do setor cultural. Não é pouco. No Rio, 7% do PIB é cultural. Os empregos da cultura são os mais qualificados, os de maior remuneração, os mais limpos...
Limpos em que sentido?
GIL: No sentido ecológico (risos)! Sabia que hoje no Brasil o setor de cultura produz mais que o da construção civil e da indústria automobilística? É esse tipo de discurso, de informação, de catequese, que precisa ser feito. A cultura tem um papel fundamental em questões como coesão social, cidadania, qualificação da subjetividade para aplicação em vários campos. E é uma área que entra no deslocamento da chamada economia pesada para uma economia leve, dos serviços. Nos EUA, a de serviços já bateu a convencional, pesada, de bens materiais. Respondendo à sua pergunta, nesses dois anos e meio, a satisfação vem daí, de estar prestando esse serviço. O MinC tinha que em algum momento - e já passava da hora - atribuir-se a tarefa de fazer esse aggiornamento da questão conceitual sobre cultura.
Deve ser um trabalho difícil, pois a própria palavra cultura é raramente compreendida em dimensões que estão além da produção cultural.
GIL: Mas o fato é que é assim, queira-se ou não! E as pessoas vão ter que se defrontar com isso, se não for agora será logo adiante, talvez os netos, as gerações que vão nos seguir, consigam compreender.