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dezembro 21, 2004
Exposição coletiva: De olho no próprio umbigo, por Fernando Cocchiarale
Matéria de Fernando Cocchiarale, originalmente publicada no Caderno B do Jornal do Brasil do dia 21 de dezembro de 2004.
Exposição coletiva: De olho no próprio umbigo
FERNANDO COCCHIARALE
O Titanic não afunda, afirmavam convictos seus projetistas, construtores e proprietários. A excessiva autoconfiança nas qualidades daquele que fora concebido para ser o maior transatlântico até então construído está, certamente, por trás de todas as negligências que culminaram com o trágico e incompreensível naufrágio que vitimou o navio em sua viagem inaugural.
Qual o Titanic, o Rio de Janeiro e os cariocas tinham todos os argumentos e a plena convicção de que sua posição histórica, seu charme paradigmático de metrópole tropical e sua propalada beleza assegurariam, automaticamente, a condição hegemônica da cidade sob quaisquer circunstâncias. Em crônica publicada em 22 de janeiro de 1893, em A Semana, Machado de Assis considerava que a eventual transferência da capital brasileira para o Planalto Central não nos afetaria: ''Os cariocas ficarão sempre com a baía, a esquadra, os arsenais, os teatros, os bailes, a Rua do Ouvidor, os jornais, os bancos, a Praça do Comércio, as corridas de cavalos, tanto nos circos como nos balcões de algumas casas cá embaixo, os monumentos, a companhia lírica, os velhos templos, os rabequistas, os pianistas...''
Mas, ao contrário de todas as expectativas e da morte súbita do emblemático Titanic, o Rio de Janeiro, lenta e imperceptivelmente, começou a naufragar em 1960, com a transferência da capital federal para Brasília. Um a um, cada traço de nossa anterior hegemonia nos escapou entre os dedos: esvaziamento econômico, financeiro, comercial e cultural. No lugar, empobrecimento, corrupção incontrolável, tráfico de drogas, violência endêmica. Assistimos a tudo isso entre incrédulos e estupefatos, como se o impossível tivesse acontecido.
No campo das artes o ponto mais agudo dessa crise ocorreu por volta de 1996. O fechamento das duas então mais importantes galerias da cidade, após sua frustrada tentativa de fusão, deixou-nos praticamente sem um mercado formal para a arte contemporânea. Passados alguns anos desse fracasso, assistimos (tenho até medo sobre até quando) a um revigoramento do mercado e das instituições ligadas às artes no Rio.
Se considerarmos que cenas artísticas vigorosas apóiam-se no tripé Produção, Instituições e Mercado, podemos afirmar que quanto ao primeiro ainda estamos bem. Vive na cidade parte considerável dos melhores artistas do país. Quanto ao segundo quesito, a tendência parece ser de melhora. As instituições existentes, em que pese a enorme dificuldade para captar os recursos necessários para manutenção e programação (já que as maiores empresas do país sediadas em São Paulo, mas presentes nacionalmente, insistem em concentrar seus investimentos naquela cidade. Alô, Firjan!) parecem, graças aos esforços de seus dirigentes, estar em ascensão. São, por exemplo, os casos do Museu Nacional de Belas Artes, cujo edifício está em restauração, e das novas instalações do Museu das Telecomunicações do Instituto Telemar, que terá duas salas destinadas à produção contemporânea com ênfase na arte & tecnologia. Finalmente, no que toca ao mercado, saímos do estado crítico em que estávamos para uma melhoria sensível. De lá para cá foram abertas cerca de 10 novas galerias, quase todas voltadas para a produção contemporânea. Além disso muitas destas e outras mais antigas, nesse breve período, reformaram e ampliaram seus espaços.
Tímida ainda essa recuperação nada nos assegura a não ser uma tendência. Muitos cariocas ainda descansam sobre a autoconfiança na qualidade da arte aqui produzida. Não deixam de ter razões, mas cultivam uma aristocrática distância em relação ao que está ocorrendo com a produção contemporânea do resto do país e da América Latina. Por isso talvez, e é bom que saibamos, os jovens artistas brasileiros e o circuito continental ignorem o Rio e tenham por Meca a cidade de São Paulo, que parece pensar e agir de modo bastante diferente. Assim como já fomos derrotados em outras áreas, corremos o risco real de um dia percebermos que a produção da cidade não é mais influente em termos nacionais, pois esgotou-se olhando o próprio umbigo.
O Rio não afunda, mas sangra por quase todos os seus poros. Cada área ou compartimento da vida social de nossa grande cidade merece a atenção concentrada dos agentes por elas responsáveis. O momento é de atenção crítica e não de festas. Afinal, creio que tenhamos compreendido que nada dura para sempre.