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agosto 6, 2021

Sobre apagamentos no movimento modernista e o protagonismo negro na arte contemporânea brasileira por Sabrina Fidalgo, Vogue

Sobre apagamentos no movimento modernista e o protagonismo negro na arte contemporânea brasileira

Entrevista de Sabrina Fidalgo originalmente publicada na revista Vogue em 27 de junho de 2021.

Inaugurando sua série de entrevistas que antecipam as comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, a cineasta Sabrina Fidalgo conversa com o colecionador Ademar Britto Jr. em nova coluna para o Vogue Gente

Hoje abrimos a série de entrevistas semanais que antecipam o debate das comemorações do centenário da “Semana de Arte Moderna de 1922”. Para isso entrevistei seis artistas negros brasileiros de diferentes vertentes artísticas e diferentes gerações. Eles ilustram uma nova face das artes brasileiras - outrora um lugar fechado e ensimesmado num núcleo branco, masculino e elitista - e representam a diversidade de um Brasil que quer ter autonomia sobre suas próprias narrativas. Para essa tomada ética e étnica no que tange o centenário modernista, conversei com alguns dos maiores expoentes dessa geração como Aline Motta, Angélica Dass, José Marçal de Jesus, Maxwell Alexandre, Samuel de Sabóia e Sônia Gomes. E para abrir essa série entrevisto aqui o colecionador, curador e médico cardiologista, Ademar Britto Jr., natural de Manaus e radicado no Rio de Janeiro.

Centenário para quem? O próximo ano será marcado pelo centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, marco zero do modernismo brasileiro. Todavia, há controvérsias. Apenas trinta e quatro anos separam a abolição da escravatura no Brasil do maior evento de arte moderna do século 20. Ainda assim o protagonismo ali era único e exclusivamente voltado para os filhos da elite paulistana, cujos pais eram os ex-senhores de engenho de trinta e quatro anos antes. Mas não é só isso. Esses mesmos filhos da elite cafeicultora de São Paulo refletiam em seus trabalhos temas brasileiros distintos, baseados, sobretudo, no folclore “nativo” e nas “lendas rurais”, algo que, lido com as lentes de hoje, facilmente seria interpretado como apropriação cultural.

Todavia, o principal objetivo da Semana de Arte Moderna de 1922 foi repensar de maneira crítica o tradicionalismo cultural daquele tempo, então associado às correntes literárias e artísticas européias, muito ligadas ao parnasianismo e ao academicismo formal. Dentre as ramificações que surgiram posteriormente à Semana de Arte de 1922 se destaca o “Movimento Antropofágico”, surgido em 1924, com a publicação do “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” de Oswald de Andrade. O conceito antropofágico acreditava na “devoração”, “digestão” e “deglutição” das influências estrangeiras que subsequentemente seriam vomitadas pelos artistas com as cores, demandas e questões de uma utópica cultura “essencialmente brasileira”.

Mas o que é esse “essencialmente brasileira” se o mesmo não for regurgitado pelo seu próprio povo? “Por seu próprio povo” entenda-se pretos, pardos e indígenas ou seja, os excluídos, os “objetos de estudos”, os narrados e quase nunca narradores de suas próprias histórias. Eis essa uma das principais problematizações acerca da Semana de Arte de 1922, sob o ponto de vista crítico do século 21. Muito embora tenha surgido no espírito vanguardista de seu tempo, tal movimento, na verdade, foi uma extensão do projeto colonial fomentado sob a égide do baronato cafeicultor e cujas estrelas eram direta ou indiretamente ligadas à ex-escravocratas de uma elite rural.

“A Semana de Arte Moderna de 1922 foi, no plano ideológico, a iniciativa de uma ‘oligarquia racista, reacionária e ao mesmo tempo modernista’, para servir aos interesses de classe da elite cafeicultora e a um projeto de hegemonia paulista, que via o Brasil como uma colônia a ser explorada pela metrópole de Piratininga. Mesmo autores como Mário de Andrade foram próximos a esse projeto, cuja justificativa é construída no livro "Retrato do Brasil", de Paulo Prado, cafeicultor, historiador e grande mecenas da Semana de 22.” comentou Carlos Berriel, professor de História Literária do Departamento de Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da UNICAMP.

Em 1968, Abdias do Nascimento pública na revista GAM - Galeria de Arte Moderna, nº 15, editada no Rio de Janeiro, artigo sobre o Museu de Arte Negra, no qual clama pelos créditos e protagonismo da arte africana como referência artística maior das vanguardas europeias : "Ninguém poderia prever, naquele recuado começo do século 20, que à ação predatória do colonizador europeu sobre a África - sobre o africano e sua cultura - corresponderia a abertura de um novo universo artístico ao protagonismo da arte branca e do artista europeu.” Em seu longo texto, ele ainda dá uma sútil cutucada na turma dos modernistas brasileiros: “(…) essa consciência do processo e da situação histórica da cultura negra confere uma intransferível responsabilidade a todos aqueles comprometidos com a produção de uma cultura brasileira isenta de distorções ideológicas, de pressões domesticadoras, ou aculturações-assimalações branquificadoras racistas.”

Mas e agora? O que fazer com o centenário da Semana de Arte de 1922 que se aproxima?Para o curador e colecionista amazonense radicado no Rio de Janeiro, Ademar Britto Jr., 31 anos, a ressignificação da "Semana” deve ser reposicionada sobretudo no lugar do resgate histórico de artistas não brancos cuja trajetória e trabalho foram apagados por conta do racismo estrutural na engrenagem da arte contemporânea brasileira. Leiam a entrevista!

Vogue: O que fazer com o centenário da “Semana de Arte de 1922” que se aproxima? Como você espera essa comemoração?

Ademar Britto Jr: Espero que seja um momento de reflexão, com crítica à História da Arte Brasileira que geralmente nos é contada. A semana de arte moderna de 1922 foi um marco e tem forte influência no que hoje se entende como identidade cultural nacional, porém ela reforçou apagamentos históricos e principalmente desvalorização da arte que não seguia a história da arte europeia na da qual se baseava, apesar de retratar temas nacionais. Aquilo que não seguia tal cânone era lido como arte menor, como por exemplo a arte africana que era considerada primitivista, como se essas pessoas vivessem atrasadas no tempo, pórem se triunfassem como sociedade, poderiam chegar a arte dos povos “civilizados”, como a arte moderna. Até hoje é muito comum vermos termos racistas serem utilizados para desqualificar a arte de indígenas, negros, mulheres e etc, tais como: arte primitiva, arte bruta (brut), arte ingênua (naïf), folclórica, e até mesmo arte popular. Racistas sim, pois se basearam em teorias do racismo científico, hegemônico até os anos 30. Temos que considerar que Nina Rodrigues ainda ecoava fresco na cabeça das pessoas, e que Monteiro Lobato, membro ativo do movimento eugênico no Brasil, estava publicando suas ideias racistas. É interessante ver que artistas autodidatas brancos como Djanira, ou o italiano Volpi já classificados em tempos passados como naïves, tiveram suas produções reconsideradas e hoje em dia não são mais referidos como tal.

Como é possível ressignificar um evento dessa natureza tendo em vista as demandas da diversidade que foram totalmente apagadas naquela época?

Não diria que foram totalmente apagadas, mas sim mal posicionadas. Justamente esse reposicionamento na história que espero que as manifestações do centenário tragam. E isso não se aplica somente ao modernismo, nos 1800 tivemos vários artistas pretos incontornáveis que não estão sendo estudados e reconhecidos da forma que merecem. Por exemplo Emmanuel Zamor, artista nascido na Bahia em 1840, que frequentou a prestigiosa Académie Julian em Paris, contemporâneo a Cézanne, Monet. Outro excelente exemplo Estevão Silva carioca nascido em 1844, formado na Escola Imperial de Belas Artes, um dos maiores pintores brasileiros de natureza morta, e que suas obras não constam frequentemente nos livros de História. Trazer esses artistas para o foco não é somente uma forma de redimir as injustiças históricas, mas também de reforçar a importância do preto na formação da sociedade brasileira e alavancar sua autoestima.

Na sua opinião, o que representa artistas como Maxwell Alexandre, Samuel de Sabóia, Aline Motta, Angelica Dass, José Marçal de Jesus e Sonia Gomes dentro do panorama da arte contemporânea brasileira da atualidade?

Esses artistas têm em comum sua raça e o fato de estarem produzindo arte na mesma época, porém suas histórias, práticas e anseios têm particularidades não me faz vê-los como um movimento único. Me parecem guiados por vetores diversos para variadas direções e que em alguns momentos se tangenciam, mas que seguem sua própria rota, diferente da semana de 22, que a meu ver, parecia querer convergir cada vez mais para um ponto mais próximo. O Brasil tem tradição de arte feita por não-brancos de qualidade, a novidade é que as instituições estão aprendendo a enxergar isso.

A Pinacoteca do Estado de São Paulo fundada em 1905 teve a sua primeira obra de um artista negro incorporada à coleção apenas em 1956, através de uma doação volumosa que continha um autorretrato de Arthur Timótheo da Costa (Rio de Janeiro, 1882), e ouso dizer que nem consciente foi essa aquisição. Em 2021 a mesma instituição incorpora 103 obras de artistas pretos, no contexto de uma exposição temática, através de doação dos próprios artistas, mesmo tendo um fundo de aquisição para compra de obras de arte. Entendo que é uma quantidade considerável de obras absorvidas de uma só vez, mas devemos lembrar que muitos desses artistas estão emergindo, e necessitam de apoio, sobretudo financeiro para dar continuidade a suas práticas. Enquanto artistas brasileiros não-negros são adquiridos mediante compra. As relações ainda continuam desbalanceadas.

Posted by Patricia Canetti at 12:37 PM