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abril 21, 2021
Arte e os desafios do Antropoceno por Luiz Camillo Osorio, Prêmio Pipa
Arte e os desafios do Antropoceno
Artigo de Luiz Camillo Osorio originalmente publicado no Prêmio Pipa em 8 de abril de 2021.
Este é um tema urgente. Aqui é só uma tentativa de começar uma conversa sobre os modos como a arte pode nos ajudar diante da catástrofe ambiental. A arte nos expõe ao que há de mais periclitante no mundo à nossa volta. Muita coisa se passa ao mesmo tempo e no meio de tudo está uma compreensão mutante do que seja arte. Essa indecisão constante, essa flutuação de possibilidades sobre o que tomamos como arte, acaba gerando uma certa exasperação pública. Se tudo parece poder ser arte, acabamos deduzindo que qualquer coisa de fato se torna arte. Dedução apressada. Falta aí um aspecto bastante desprestigiado hoje – a experiência subjetiva de cada um, o que se produz, em termos de subjetividade e sociabilidade, no encontro com algo neste estado “provisório” de arte.
A mesma inquietação diante da condição mutante da arte está presente diante do que denominamos natureza. Temos visto nos últimos anos algumas exposições bastante interessantes que se afirmam como “não sendo de arte”, apesar de exporem obras de arte junto a outros materiais não artísticos. Não são “de arte”, mas querem nos expor ao conjunto complexo de emoções e sentimentos associados ao modo como vivemos ou recusamos, por exemplo, nosso desastre climático; sendo ao mesmo tempo exposições de arte, de ciência, de política. Quiçá uma nova tentativa, mais que urgente, de reeducação estética da humanidade. Elas enxergam neste espaço da arte um território interessante para se forçar alguma reconfiguração das nossas formas de perceber e pensar o mundo atual e seus impasses. Como a arte pode abrigar este debate sobre o antropoceno? Como falar e mostrar os desafios desta nova época em que a atividade humana é a principal força geofísica planetária? Uma força de transformação e de ameaça iminentes.
O que a arte pode aqui é simplesmente pôr em cena os dilemas, dar alguma configuração sensível ao que nos escapa na ânsia de objetividade e eficiência cotidianas. Mais que isso não caberia à arte, mas isso já é bastante tendo em vista que o trabalho da imaginação que aí se desdobra é fundamental para a recomposição dos termos do debate político. Apresentarei brevemente dois projetos recentes de exposições que buscaram levar aos museus o debate ambiental, sua estética e sua política. Já aviso que não visitei presencialmente estas exposições, apenas visitei suas plataformas online. A tecnologia é uma aliada incontornável.
As exposições são “Critical Zones: Observatories for earthly politics” no ZKM na Alemanha, com curadoria de Bruno Latour e Peter Weibel e “Countryside: the future”, no Guggenheim de NY, com curadoria de Rem Koolhaas e Samir Bantaal. Ambas realizadas entre 2020 e 2021. O estatuto de ambas as exposições é muito singular. Não são exposições de arte, pelo menos não apenas, mas contam com a expectativa de usar este espaço no sentido de ampliar o escopo do debate. Expectativa essa com fortes ressonâncias no nosso modo de lidar e experienciar a arte. Conversas com dois alunos de mestrado aqui na PUC-Rio têm sido muito importantes(2); Rachel Pires (orientada pela Deborah Danovski na Filosofia) e Luiz Felipe Reis (orientado pelo Fred Coelho na Letras) discutem em suas pesquisas o Antropoceno, levando em conta as possibilidades de sensibilização da crise climática e o papel das artes. Ambos trabalham a partir dos textos, performances e curadorias de Bruno Latour.
No caso de Koolhaas e Bantaal, no Guggenheim, o desafio é levar ao museu uma nova direção para o processo de “modernização” de nossas formas de vida. Neste aspecto, a tese é de que o futuro está no campo. Não se trata de uma volta ao campo, mas de uma necessária invenção de formas de vida que incluam um melhor consumo de energia, alguma desaceleração da produção, outros tipos de habitação, de alimentação, de circulação. Fizeram vários levantamentos de projetos instigantes ao redor do planeta. Enfim, buscam encaminhar possibilidades de composição entre tecnologia e agricultura, voltada para outros tipos de consumo e de temporalidade. Evidentemente, há que se imaginar menos concentração de gente, de riqueza, e mais integração entre o que fazemos e como vivemos. Ecologia política implicando outra economia ambiental.
A recepção crítica da exposição foi predominantemente negativa. Considerada esteticista, apologista da geoengenharia, ingênua etc. Como toda exposição deste porte, a escala atrapalha, o excesso de informação desorienta. A multiplicação de saberes especializados e a dificuldade de expô-los e apresentá-los é outro problema recorrente. Muitas imagens, estatísticas, projetos e informações ficaram espalhadas por todos os andares do prédio. Entre uma feira de ciência e um palácio de cristal anacrônico, o visitante se via lançado a uma série de interrogações. Todas elas pertinentes, diga-se de passagem. Como dizem os curadores, há muito mais questões que soluções, mas tratando-se de um arquiteto, a preocupação com a proposição de alternativas acaba sempre se insinuando. Independentemente disso, é do meio destas dificuldades que o debate central da exposição se anuncia: construir o futuro implica repensar formas de habitação e uma ocupação sustentável de territórios. Isso necessariamente exige novos paradigmas existenciais e novos modelos de sociedade, novas articulações entre países ricos e pobres, novas alianças entre humanos e não-humanos, entre economia e geologia, entre moedas, corpos e vida.
A denominação de Latour e Weibel de “Zona Crítica: observatórios para uma política terrena” aponta para a superfície viva do planeta na qual as formas de vida se retroalimentam e garantem as condições de habitabilidade da Terra. Um ponto importante que salientam, nas muitas “lives” e conversas de que participam promovidas pela ZKM, é não se tratar de uma exposição utópica. Pelo contrário – foram as utopias dos últimos dois séculos que nos levaram para este lugar insustentável. Usando uma metáfora da história das ciências, a utopia moderna teria começado com Galileu apontando seu telescópio para a lua. Ali nos aventuramos enquanto sujeitos desterrados, um cogito expandido tecnologicamente cujo limite era o infinito. Agora, temos que voltar todos os instrumentos para a terra e buscar retomá-la e habitá-la, afinal só aqui podemos respirar, caminhar, seguir vivendo.
A exposição também é composta por uma combinação variada de experimentos artísticos e científicos. Um trabalho curatorial que busca agregar vários campos desarticulados das pesquisas científicas e dar-lhes alguma voz, algum corpo, alguma materialidade, alguma sensibilização. A escala da exposição é mais amigável que a do Guggenheim. É interessante estas duas exposições terem acontecido simultaneamente ao longo de 2020, no meio de uma pandemia que nos faz sentir mais de perto o quanto somos dependentes um dos outros e do que fazemos com as formas vivas que coabitam o planeta.
Um vírus liberado pela manipulação desenfreada de animais silvestres junto ao desmatamento crescente e ao desprezo pelo equilíbrio ecossistêmico, parou o planeta e nos fez perceber que o antigo normal estava fora de controle. Tanto do ponto de vista das desigualdades sociais, como do atropelo ambiental e climático. A sensibilização do problema vivido por nós no antropoceno ficou mais urgente, sublinhado o fato de estarmos todos embarcados no interior de um único planeta e que ele pode nos expulsar para seguir sua viagem com formas vivas mais resistentes do que nós.
Na introdução do livro Diante de Gaia, Bruno Latour revela uma cena de um espetáculo de dança da coreógrafa Stefany Ganachaud, que reorientou suas pesquisas sobre Gaia, sobre o que estamos fazendo de nosso planeta e de como buscar alguma visibilidade a algo que todas as estatísticas evidenciam, mas que segue na ordem intangível dos números. Esta imagem ecoa no desdobramento de sua pesquisa e, consequentemente, em seus projetos curatoriais. “Tudo começou com a imagem de um movimento de dança a que assisti, há dez anos, e da qual não consegui me livrar. Uma dançarina, correndo de costas para escapar de algo que devia lhe parecer assustador, não parava de olhar para trás, sempre mais inquieta, como se sua fuga acumulasse a suas costas obstáculos que constrangiam cada vez mais seus movimentos, até que ela foi impelida a se virar por completo; e aí, suspensa, imóvel, ela via, vindo em sua direção, algo ainda mais assustador do que aquilo de que fugia – a ponto de forçá-la a ensaiar um gesto de recuo. Ao fugir de um horror, ela encontrava outro, em parte criado por sua fuga”(3).
Fugindo do passado pela crença cega no progresso, nós modernos fomos fazendo do futuro um campo de ruínas que, agora, se precipita sobre nós. Estamos no meio do turbilhão e temos que imaginar formas de lidar com isso. Esse é o principal objetivo destas exposições. Uma imagem poética da força de Gaia e deste embate entre nossa empáfia e nossa dependência, foi dada pelo curador Ricardo Sardenberg em um post recente nas redes sociais. Ele falava do super navio com 400 metros de extensão, 60 metros de largura e 200.000 toneladas de peso, além dos seus 20.000 containers, que encalhou no Canal de Suez por conta de uma forte ventania que o fez inclinar como se fora uma caravela. Em seguida desencalhou quando a lua cheia com sua força gravitacional fez a maré subir e ajudou a levantar 200 mil toneladas sem grandes malabarismos. O planeta, Gaia, e suas forças naturais, é muito mais potente do que imaginamos.
O que mais chama a atenção nestas curadorias é o fato das montagens apresentadas, recompondo pesquisas e experimentos que se complementam, buscarem acima de tudo enfrentar um negacionismo subliminar. Negacionismo indireto, escondido na esperança, mais do que nunca perigosa, de que a mesma hybris que gerou o problema é capaz de resolvê-lo. Como se o cogito tecnologizado, turbinado pelo capital, bastasse para nos impedir de irmos aceleradamente para o abismo. As proposições da geoengenharia são relevantes no debate, as invenções futuras podem encaminhar algumas soluções, mas não parecem suficientes. Ambas as exposições explicitam a complexidade dos desafios, mas apostam em soluções ao mesmo tempo mais radicais, mais singelas, mais difíceis – não há caminho sem mudarmos nossas formas de vida. Isso exigirá imaginação, negociação, conflitos, transformações. A arte é, certamente, um dos lugares privilegiados para lidarmos com o desconhecido e assumirmos nossa fragilidade constitutiva. Para não terminarmos apenas no tom trágico, sugiro o vídeo do artista indígena Isael Maxakali (vencedor do PIPA Online de 2020) intitulado “O dilúvio Maxakali”. Pode ser visto aqui abaixo ou na página do artista, aqui no site do PIPA. É uma lição de resistência e poesia através do naufrágio iminente.
(1) LATOUR, B. Esperando Gaia. Piseagrama, Belo Horizonte, seção Extra!, XX fev. 2021 (tradução de Alyne Costa)
(2) Conversas que se iniciaram no semestre passado em um curso que dei na pós-graduação sobre curadorias de filósofos e se desdobra neste em um novo curso sobre a atualidade do sublime
(3) LATOUR, B. – Diante de gaia. São Paulo: UBU editora, 2020 (tradução Maryalua Meyer)