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março 11, 2020
Entenda a contribuição de Nelson Leirner para a arte brasileira atual por Fernanda Lopes, Folha de S. Paulo
Entenda a contribuição de Nelson Leirner para a arte brasileira atual
Análise de Fernanda Lopes originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 9 de março de 2020.
O artista é considerado registro e referência de algumas das discussões mais importantes que aconteceram no país
Nelson Leirner costumava dizer que sua vida artística estava divida em AP e DP: "Antes do Pai" e "Depois do Pai", respectivamente. Nascido em 1932, filho da escultora Felícia Leirner e do empresário Isai Leirner, diretor do Museu de Arte Moderna e conselheiro da Bienal de São Paulo, trocou o curso de engenharia têxtil nos Estados Unidos para voltar ao Brasil e estudar pintura com Joan Ponç, em 1956.
Por influência dos pais, começou a ganhar exposições, textos e prêmios sem que os galeristas e críticos nem sequer vissem sua obra. Depois da morte de Isai, em 1962, as portas rapidamente se fecharam para ele e vieram as críticas ao seu trabalho.
Logo cedo, Leirner testemunhava o jogo de influências e poder que estavam envolvidos no meio artístico. E esse foi motor e mote de sua produção ao longo das quase seis décadas seguintes.
Foi em 1965, na galeria Atrium, ao lado do amigo Geraldo de Barros, que ele apresentou pela primeira vez trabalhos nos quais a crítica ao sistema de arte e o estímulo à participação do espectador são pontos-chave.
Objetos cotidianos, o interesse pela dinâmica de jogo e críticas a outros sistemas de poder e idolatria, como religião, futebol e cultura de massa, são desdobramentos que o acompanharam ao longo dos anos.
Em junho de 1966, junto com Barros, Wesley Duke Lee, Carlos Fajardo, Frederico Nasser e José Resende deram início ao grupo Rex, que funcionou até maio de 1967 na Rex Gallery & Sons, espaço localizado nos fundos da sede da Hobjeto, de Geraldo de Barros.
A manchete estampada em letras maiúsculas na capa da primeira edição do jornal Rex Time, publicado em 3 de junho de 1966, dava conta da postura do grupo: “Aviso: é a Guerra”. Buscando espaço para a jovem produção artística que se constituía nos anos 1960, os Rex “baixam a ponte levadiça, pois a guerra é justamente para levar mais gente para dentro do castelo”.
Em quase um ano de atividade promoveram conferências (duas com Flávio de Carvalho), sessões de filmes experimentais e documentários (como uma mostra de filme sobre os artistas da arte pop americana), organizaram cinco exposições, uma delas reunindo jovens artistas (como Carmela Gross e Marcello Nitsche), e editaram cinco edições do jornal Rex Time (em um deles publicaram a primeira tradução para o português do texto "Ato Criador", de Marcel Duchamp).
A "Exposição Não-exposição" marca o encerramento das atividades do grupo, em uma mostra onde quem conseguisse tirar as obras presas dentro da galeria, poderia levá-las para casa.
Nos anos seguintes, Leirner continuou pondo em xeque a constituição do objeto artístico e os limites do sistema de arte. Como em 1967, quando mandou um porco empalhado para o Salão de Arte de Brasília, que foi aceito como uma obra artística (o que o levou a questionar publicamente o júri sobre os critérios de seleção).
Em 1969, o artista realizou a exposição "Playground" no Museu de Arte de São Paulo, Masp –a primeira feita nos 74 metros quadrados do vão livre projetado por Lina Bo Bardi; no mesmo ano, fechou sua sala na Bienal de São Paulo por motivos políticos e recusou o convite para participar da edição seguinte, em 1971.
Em 1974, recebeu um prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte para sua série “A Rebelião dos Animais”, crítica ao regime militar –mesma associação que no ano seguinte recusa o trabalho que encomendou a Leirner para ser entregue aos premiados do ano. A proposta era uma obra feita em Xerox e, como protesto, os artistas não comparecem ao evento de premiação.
Difícil escrever um texto sobre o Leirner no passado. Ainda hoje, suas inquietações como artista e professor (ele deu aula na Fundação Armando Álvares Penteado, em São Paulo, entre 1977 e 1997, onde ficou conhecido por fazer seus alunos chorarem com os questionamentos e testes que fazia durante conversas), seguem atuais, como um desafio renovado.
Nelson Leirner nos deixou neste sábado (7), aos 88 anos, após sofrer uma parada cardíaca no Rio de Janeiro (onde morava desde 1997). Sua produção é registro e referência de algumas das discussões mais importantes que aconteceram na arte brasileira nos anos 1960 e 1970. É também ponto de referência para as gerações seguintes pensarem em situações tão atuais quanto as estruturas viciadas do sistema (não só o de arte) e de seus agentes, os conceitos que estruturam o circuito de arte em todos os seus segmentos, além das fronteiras e convenções artísticas.
Fernanda Lopes é crítica de arte, curadora do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e autora do livro "A Experiência Rex"