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janeiro 19, 2020
O MoMA caiu na real por Luiz Camillo Osorio, Prêmio Pipa
O MoMA caiu na real
Artigo de Luiz Camillo Osorio originalmente publicado no site do Prêmio Pipa em 12 de dezembro de 2019.
Neste texto, o curador do Instituto PIPA Luiz Camillo Osorio comenta a expansão do MoMA, em Nova York. A reforma, cujo investimento foi de US$450 milhões, aumentou 30% do espaço expositivo e representou uma nova narrativa ao museu neste início de década. No caminho oposto ao Brasil em relação ao incentivo à cultura, Camilo afirma que as mudanças na instituição refletem como que “o museu deixou há tempos de ser um lugar apenas para ver exposição, conservar uma coleção e educar esteticamente o cidadão. A arte é, ao mesmo tempo, lugar de afirmação e crítica do mundo (e do capitalismo) contemporâneo”.
Veja quais são as transformações históricas do museu para se adaptar à contemporaneidade da arte, assim como a visão de Camillo sobre o recente reposicionamento do MoMA.
Enquanto nós, aqui no Brasil, ameaçamos fechar museus e ainda censuramos exposições, nossos vizinhos da América do Norte, independentemente de quem está no governo, seguem investindo em cultura. O MoMA passou agora por mais uma reforma. Sua reabertura mês passado traz consigo algumas questões interessantes. Mais do que uma expansão, aumentando em 30% o espaço expositivo, percebemos que houve um reposicionamento histórico do museu. Toda uma nova narrativa da arte moderna foi apresentada.
Primeiro os fatos. O museu gastou 450 milhões de dólares na reforma. Foram concebidas novas instalações arquitetônicas – projetadas por Diller Scofidio + Renfro – e vimos serem incorporados mais espaços de convivência para o visitante. O museu deixou há tempos de ser um lugar apenas para ver exposição, conservar uma coleção e educar esteticamente o cidadão. A arte é, ao mesmo tempo, lugar de afirmação e crítica do mundo (e do capitalismo) contemporâneo. Espetáculo e atrito caminham de mãos dadas. Há uma política intrínseca a este conflito.
A criação do MoMA em 1929 foi um acontecimento. Os termos, até então antitéticos, arte moderna e museu, passaram a conviver. Um convívio nem sempre pacífico, felizmente. Lidar com estes atritos vem sendo um desafio. Como salientou o crítico Hilton Kramer em artigo dedicado ao seu primeiro curador, Alfred Barr, “o museu (com o MoMA) deixava de ser um refúgio frente aos conflitos e controvérsias da vida contemporânea”. Estas são as palavras de um crítico cuja agenda política é, acima de tudo, conservadora. Nem todo conservador precisa ser reacionário. Arte, principalmente a moderna, não pode estar a serviço da acomodação.
Trazer a arte moderna para o museu, não implicava, apenas, sua captura institucional, mas, também, uma reviravolta interna no funcionamento do museu; redefinindo novas formas expositivas, outros parâmetros de participação do público, múltiplas possibilidades de ser das obras de arte. A institucionalidade incorporava a dimensão crítica, problematizando continuamente o estatuto do que significa ser um museu e os sentidos da arte. As exposições montadas por Barr nas décadas de 1930 e 1940 traziam muito de sua experiência na Bauhaus e da percepção, totalmente original, do museu como um laboratório experimental para a vida moderna. Ao mesmo tempo, constituía-se ali uma narrativa histórica do moderno, com os famosos diagramas de Alfred Barr, que costuravam o caminho do modernismo como uma linha evolutiva e unidirecional. Montando sua coleção a partir dos anos 1930, o MoMA equacionava, no interior da experiência museológica, crítica e história da arte. É exatamente este o ponto, a incorporação da crítica pelo museu, que gostaria de tratar aqui tendo em vista esta reabertura há duas semanas. Importante frisar que ainda não visitei o novo MoMA. Escrevo a partir do que li, vi no site e por uma enorme admiração por sua história e coleção.
Gostaria de começar com uma afirmação abrupta: depois desta reabertura do MoMA toda e qualquer distinção entre museus de arte moderna e contemporânea tendem a sumir. Digo isso, pois foi este museu que definiu uma leitura forte e historicista do modernismo, iniciado com a obra de Cèzanne e dos pós-impressionistas, desdobrando-se com o Cubismo, o expressionismo e os construtivismos, desembocando na arte americana do pós-guerra (Pollock à frente) e culminando com a Pop – tomado como momento de crise desta narrativa. A arte moderna iria de 1880 a 1960, depois abria-se a ruptura contemporânea ou pós-moderna. O que se propõe agora é outra coisa: são muitos modernismos e devem levar em consideração várias perspectivas de compreensão histórica. Melhor dizendo, o museu vai rearticular sua coleção sem a amarração cronológica, abrindo diálogos entre épocas, linguagens, geografias distintas. Tudo visto sempre a partir de perspectivas situadas na atualidade e marcadas pela contingência e pelo conflito.
Não se trata de simplesmente relativizar tudo, mas sim pôr as coisas em relação e perceber que forças são produzidas pelas obras a partir daí, os diálogos que se estabelecem entre modernismos. Por exemplo: ver a Demoiselle D`Avignon do Picasso junto a um filme expressionista, a um Pollock, ou de uma pintura da artista afro-americana Faith Ringgold, muda nossa maneira de ver e interpretar os efeitos dessa obra, obriga novas leituras, faz ela ganhar a cada vez novas cintilações e outras pulsações estéticas. Alterar os diálogos e as montagens, de tempos em tempos, é outra possibilidade alvissareira, além da forte articulação entre os departamentos de curadoria e educação, que sempre foi uma marca experimental do MoMA. Uma educação aberta, ligada à potência criativa e transformadora da arte.
Multiplicando leituras e referências do moderno e quebrando a linha histórica evolutiva que ele próprio criou no passado, o MoMA põe em xeque a reprodução de um modelo narrativo que funcionou em um momento, mas se desgastou com o tempo. Funcionou maravilhosamente para dar legitimidade histórica ao que poderíamos denominar de forma intransitiva, que, acima de tudo, enfrentava o cânone das belas-artes. Entretanto, a forma deve vincular-se ao mundo, não apenas à história da arte (ou das formas). Para isso, ela deve se desdobrar na formação do olhar e da sensibilidade do visitante, reposicionando-o no presente, fazendo deste um processo aberto que incorpora experiências passadas e expectativas futuras. O difícil em um museu como o MoMA é sua capacidade de enfrentar o narcisismo e a afetação em torno da arte no mundo atual. Cabe ao museu não ceder, pelo menos não completamente, à sedução do glamour e abrir espaço à interrogação, ao que não se adequa ao presente e que, por isso mesmo, nos faz ver o heterogêneo, as diferenças.
A primorosa coleção construída inicialmente por Barr e multiplicada desde então, com suas obras-primas indiscutíveis, não será destruída por esta guinada do MoMA em direção ao real. Não se trata de rebaixar a potência da arte, mas de fazê-la acontecer no atrito com o mundo e com as muitas vozes poéticas que habitam a história. Multiplicar os modos de compreensão da arte moderna, assumindo que sua narrativa anterior, hegemônica e constitutiva de uma inserção histórica do modernismo, era apenas uma entre outras possíveis. Além disso, procurar construir outras narrativas, produzir novas e originais (muitas vezes até forçadas) relações entre épocas e contextos, não quer calar a força singular de obras que fizeram história – A Dança do Matisse não vai se acomodar, vai ganhar outros ritmos e ter que se “mexer” de outras maneiras para além das já habituais; afinal, a mesma contradança com seus pares históricos já estava cansando. Não se deve temer o embaralhamento do cânone, deve-se assumir que sempre vemos as obras a partir das relações que produzimos. A lógica expositiva dos museus deve apostar – eu diria que é essa sua razão de existir – neste constante deslocamento do nosso olhar. Só assim ele, o nosso olhar, é capaz de surpreender-se no jogo infinito entre o sabido e o não sabido, o visto e o não visto, o gosto e o susto.
Como disse o educador Paul Sachs em 1939: “há um perigo grande quando o MoMA vai ficando velho: o perigo da timidez. O museu deve seguir correndo riscos. Ele os assumiu, de olhos abertos, desde o começo de sua história. Isso não deve parar”. Oitenta anos depois dessa frase o museu segue correndo riscos. Mexer em um modelo expositivo vencedor, porém exausto e excludente, não pode ser apenas anseio pela novidade. Deve ser a renovação do seu compromisso em pensar a contemporaneidade da arte como desafio constante dos cânones. Desafio que os faz serem atuais e em contínua transformação.