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maio 2, 2019
Artista investiga memória no espaço público com monumentos depredados por Clara Balbi, Folha de S. Paulo
Artista investiga memória no espaço público com monumentos depredados
Matéria de Clara Balbi originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 2 de maio de 2019.
Giselle Beiguelman apresenta duas instalações sobre o tema no Museu da Cidade
“São Paulo é um palimpsesto”, diz a artista Giselle Beiguelman, referindo-se à prática, muito comum na Idade Média, de reutilizar papiros e pergaminhos através da raspagem de seus textos originais.
No topo da escadaria do Beco do Pinto, no centro paulistano —ele próprio um local fundamental na história da urbanização da cidade, mas pouco lembrado—, ela encara os pedestais de pedra empilhadas que compõem Monumento Nenhum, uma das instalações que apresenta no local e em seu vizinho, o Solar da Marquesa de Santos, a partir de sábado (4).
Encontrados no depósito do Departamento de Patrimônio Histórico, no Canindé, na zona norte, e replicados de forma idêntica no Beco —razão pela qual Beiguelman apelidou as peças de “ready-mades do esquecimento”—, a maioria dos fragmentos tem procedência desconhecida.
Algumas das peças conseguiram ser, no entanto, rastreados pela artista, que também é professora na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Uma das colunas tombadas fazia parte do Monumento aos Heróis da Aviação, no Hipódromo da Mooca; no topo de uma pilha de pedras, um pedestal no formato de patas de cavalo pertencente ao Monumento ao Duque de Caxias, da praça Princesa Isabel, na República, voou longe depois que militares revoltosos dinamitaram a estátua assinada por Victor Brecheret.
As trôpegas colunas que resultam do amontoado de peças desaparecidas, roubadas e atacadas, representam, segundo Beiguelman, uma metáfora contundente da relação da capital paulista com seu patrimônio histórico e cultural.
A instalação dá sequência a uma pesquisa que a artista iniciou em 2014. Na época, por ocasião da 3ª Bienal da Bahia, ela realizou uma intervenção no Arquivo Público do estado. No ano seguinte, o convite veio do Arquivo Histórico municipal paulistano. O resultado foi “Memória da Amnésia”, instalação na qual a artista tombou sobre o chão do arquivo cerca de dez monumentos, alguns há oitenta anos fora do espaço público.
“Queria entender como funciona o circuito da memória pública. Quem decide o que deve, quando e como deve ser esquecido?”, questiona a artista, lembrando que mesmo a gestão pública na área é recente. O Departamento de Patrimônio Histórico paulistano, por exemplo, surgiu nos anos 1970; a Comissão de Monumentos, há menos de 20 anos.
Os dois espaços onde Beiguelman apresenta as instalações estão ligados à questão. Ambos pertencem ao Museu da Cidade, circuito de 12 prédios históricos administrados pela Secretaria Municipal de Cultura. O beco, que ligava o largo da Sé às margens do Rio Tamanduateí na São Paulo no século 18, não funciona como passagem desde 1834, quando a Marquesa de Santos comprou o imóvel ao lado. Hoje, duas grades impedem a entrada de pedestres pela base da escadaria, na rua Doutor Bitencourt Rodrigues.
Nomeado em fevereiro diretor do Museu da Cidade, Marcos Cartum afirma que a ideia é, no futuro, reabrir o beco, uma vez resolvidas as questões de segurança. “O museu tem como missão principal devolver à população consciência sobre a nossa história. Isso significa não só mostrar o material do calçamento original”, diz, apontando para os buracos no chão onde se vê o antigo revestimento da escadaria, “como também recuperar a função original desses locais”.
Beiguelman concorda. “A cidade hoje expulsa as pessoas de seus espaços, não só pela questão da violência, como pela própria arquitetura”, diz. “Restaurar essa memória é uma maneira de instigar os corpos a reocuparem os lugares públicos.”
A desconexão entre esses espaços e os habitantes aparece de forma ainda mais clara em Chacina da Luz, instalação que a artista apresenta no Solar da Marquesa de Santos. Nela, os destroços de oito estátuas neoclássicas que circundavam o lago Cruz de Malta, no parque da Luz, são deitadas em uma colcha cinza, em um cenário digno da série televisiva CSI. Os monumentos foram empurrados por vândalos há três anos atrás.
“Usei a palavra ‘Chacina’ porque foi um ato muito violento”, explica Beiguelman. “É uma consequência dessa percepção do espaço público como coisa de ninguém, e não de todos.”
A cena evoca a destruição do Museu Nacional do Rio de Janeiro, em setembro de 2018, ou, mais recentemente, o incêndio da Notre-Dame, em Paris. Beiguelman —que discorre sobre o assunto em um dos capítulos do livro “Memória da Amnésia”, que lança pelas edições Sesc este mês— acredita, no entanto, que os dois eventos têm naturezas fundamentalmente distintas.
“As imagens televisionadas do Museu Nacional em chamas são um ‘memoricídio’, um emblema dessa política institucionalizada de esquecimento brasileira”, afirma. “Não somos capazes de criar ruínas, resultado nostálgico da ação do tempo. Só temos escombros.”