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abril 21, 2019
Impasse mineral por Moacir dos Anjos, Revista Zum
Impasse mineral
Texto de Moacir dos Anjos originalmente publicado na revista Zum em 17 de abril de 2019.
O rompimento da barragem de rejeitos de mineração chamada de Fundão, em 5 de novembro de 2015, provocou o maior desastre ambiental já registrado da história do Brasil. Os 62 milhões de metros cúbicos de lama tóxica liberados pelo rompimento destruíram, em poucos minutos, Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, subdistritos de Mariana, Minas Gerais. 19 pessoas morreram, tragadas pela veloz e letal onda de detritos. Onda que invadiu o Rio Doce e alcançou, dias depois, o litoral do Espírito Santo, provocando a suspensão do consumo da água do rio em muitos dos 230 municípios que dele se abastecem. A contaminação do Rio Doce, que levará muitas décadas para ser eventualmente revertida, devastou ainda o ecossistema necessário à vida do povo Krenak, que há séculos habita a região.
Em 25 de janeiro de 2019, o rompimento de outra barragem de rejeitos, agora na mina do Córrego do Feijão, no município de Brumadinho, Minas Gerais, liberou com violência cerca de 12 milhões de metros cúbicos de lama tóxica, levando à destruição de instalações administrativas da própria mina, árvores, casas, ponte e tudo o que havia à frente. Entre mortes confirmadas e corpos talvez para sempre soterrados na lama, mais de 300 pessoas perderam a vida no desastre. Pouco depois do rompimento, os restos tóxicos já invadiam o rio Paraopeba, um dos responsáveis pelo abastecimento de água na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Diversas famílias do povo Pataxó que vivem às margens do rio, e que dele dependiam para se abastecer de água e comida, ficaram indefinidamente privadas de suas mais básicas condições de subsistência.
As duas barragens colapsadas faziam parte de minas de propriedade da Vale S.A., uma das maiores empresas extratoras e exportadoras de minério de ferro do mundo. A Vale S.A. é sucedânea da Companhia Vale do Rio Doce S.A., empresa de economia mista criada e controlada pelo Estado brasileiro em 1942 e privatizada em 1997. Ela possui várias outras barragens semelhantes em operação ou desativadas em Minas Gerais, dez delas em estado de risco severo de rompimento.
Logo em seguida aos desastres de Mariana e Brumadinho, uma grande quantidade de imagens de suas dramáticas consequências passou a circular em jornais, revistas e redes sociais. Feitas por artistas conhecidos – não somente os naturais de Minas Gerais, mas principalmente esses – ou por moradores anônimos das regiões atingidas, essas fotografias e filmes buscam capturar, sem saber exatamente como, a violência dos fatos. São imagens que registram os vestígios do que se passou ali, dando o testemunho possível das mudanças bruscas no ambiente físico e humano causadas pelo rompimento repentino (mas não imprevisível) das barragens. Rios atolados em lama – seus leitos alargados à força e suas margens destroçadas por restos de mata e habitações –, veneno impregnado no chão e na água que antes eram fontes seguras de alimentação, morte de incontáveis animais e de muita gente.
Algumas dessas imagens ganharam forma mais duradoura, como o ensaio fotográfico A Terra Devastada, de Cristiano Mascaro e Pedro Mascaro, sobre a destruição de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e outras localidades situadas no percurso dos rejeitos liberados pelo rompimento da barragem do Fundão – ensaio publicado na revista piauí (118, julho de 2016) e depois transformado na exposição A Lama: de Mariana ao Mar (Paço Imperial, Rio de Janeiro). Realizadas sete meses após a inundação de detritos tóxicos que em pouco mais de uma hora devastou aquelas cidades e matou moradores incapazes de fugir a tempo, algumas fotografias foram feitas do alto, a partir de drones, e outras feitas no chão, bem próximo às ruínas das casas afetadas pelo desastre. Embora as primeiras impressionem por resumirem o grau de destruição provocado pela onda dos resíduos da mineração, é o segundo conjunto de fotografias que mais captura o olhar de quem se defronta com o registro feito. As paredes que restaram de pé estão todas “pintadas” de um marrom opaco e profundo, rastros de sua submersão temporária na mistura insalubre de terra, água e sobra de minério. Nos lugares onde existiam quartos e salas, restos de móveis, colchões e objetos diversos aparecem parcialmente soterrados por areia seca e suja. Nas poucas casas de dois pavimentos que não desabaram, nos edifícios públicos um pouco mais altos, ou nas árvores próximas dali, é possível ver, gravada em suas fachadas e superfícies, a linha que marca a altura de vários metros alcançada pela lama. Linha que informa não somente o que foi submerso e o que ficou a salvo na inundação de rejeitos, mas que serve de potente marcador visual das violências que as atividades de mineração embutem, seja qual for o produto que buscam extrair do ambiente natural. Violências que nem sempre se mostram de modo assim tão explícito, embora não cessem de se manifestar, de diferentes maneiras, por todo o tempo.
Entre as muitas imagens feitas na região de Brumadinho imediatamente após o rompimento da barragem do Córrego do Feijão, incluem-se as feitas, separadamente, pelos fotógrafos mineiros João Castilho e Pedro David. A partir de caminhadas realizadas ao longo do rio Paraopeba, seus registros, embora distintos em diversos aspectos, coincidem por serem quase todos produzidos a partir das margens violentadas do rio e voltados para o interior do que antes era um curso de água que servia a uma comunidade ampla, transformado em atoleiro de lama que cobre escombros de instalações da própria mina (refeitório, escritórios), pedaços de árvores, restos de habitações, caminhões, ônibus, vagões de trens e corpos de funcionários da Vale e de moradores da área, tudo e todos tragados pela avalanche de rejeitos. Ao contrário da documentação da região de Mariana feita por Cristiano Mascaro e Pedro Mascaro em momento em que os movimentos da lama já haviam cessado e os mortos contados, as fotografias de João Castilho e Pedro David registram uma superfície ainda movente de detritos que cobre coisas várias e asfixia qualquer forma de vida soterrada ali. Em vez das linhas bem definidas nas paredes e árvores, é a irregularidade das superfícies antes assentadas da terra e do rio – muitas vezes inadvertidamente confundidas nessas imagens – que evoca, como fosse evidência forense, a violência do evento. Mesmo que sejam mais testemunho visual que obras acabadas formalmente, são fotografias que recordam a crueza implicada nas atividades de extração de minérios, por vezes incapaz de ser contida. Imagens do apagamento de uma paisagem física e humana partilhada por muitos desde um tempo que a lembrança não mais alcança, como sugere a artista Dora Longo Bahia na pintura Rio Doce, feita logo após o desastre de Mariana. Na tela, rio, destroços, terra e céu são todos igualados na cor marrom da lama, tendo a palavra nonada grafada em preto por cima: palavra com que João Guimarães Rosa dá início à invenção de um território em Grande Sertão: Veredas e que, aqui, em uma inversão de sentidos, parece anunciar seu fim.
Para além da inescapável fixação desses desastres em imagens, sua magnitude e a possibilidade de que outros similares possam ocorrer em tempo incerto terminam por dar sentido novo e urgente aos esforços de alguns poucos artistas que recorrentemente sublinham, em seus trabalhos, as implicações humanas e ambientais das atividades de mineração, pouco levadas em conta nos cálculos produtivistas que regem e medem as decisões de implantá-las. Atividades cuja origem, no Brasil e em outros tantos países, está fortemente associada à colonização europeia do Novo Mundo, tendo, ao longo de cinco séculos, gerado riqueza material para poucos e provocado ruína humana para muitos – parte de um modelo de desenvolvimento econômico predatório e voraz que, aos poucos, exaure o mundo de suas condições de existência.
A busca por metais preciosos e a perspectiva de enriquecimento rápido associado à sua posse estiveram, de fato, entre os principais motivadores da colonização europeia nas terras que viriam a ser, um dia, chamadas de América do Sul. Mas, se para os colonizadores espanhóis a expectativa de encontrar abundantes riquezas minerais foi satisfeita já em meados do século 16, para o Império Português essa ambição custou a se materializar, sendo somente na virada do século 17 para o seguinte que se descobrem, no interior do Brasil, jazidas de ouro grandes o bastante para compensar os elevados custos operacionais de sua exploração. Reservas que, pelo prospecto de ganho alto que despertavam, desencadearam uma disputa entre autoridades e aventureiros pelo controle da extração, levando os primeiros a imporem-se aos segundos por meio de força militar. Ao longo de pouco mais de meio século – tempo que durou a exploração da maior parte do minério encontrado –, foram extraídas e transportadas a Portugal muitas toneladas de ouro e pedras valiosas. Processo que empregou, em quantidade crescente, mão de obra negra escravizada, tal como fixou, em uma conhecida aquarela, o alemão Johann Moritz Rugendas. Na detalhada cena feita pelo artista, publicada no livro Viagem pitoresca através do Brasil (1835), dezenas de homens negros são vistos trabalhando na lavagem do ouro em um rio que desce do Pico do Itacolomi – situado entre as cidades de Mariana e Ouro Preto – sob a orientação e vigilância de poucos homens brancos, em rigorosa distribuição de corpos no espaço do trabalho, estabelecida de acordo com a cor da pele e da posição social de cada um dos ali descritos. Escravização do homem negro que é igualmente retratada por Rodolfo Amoedo na pintura Ciclo do Ouro, feita em 1920, na qual um homem branco ereto, bem vestido e com chicote na mão parece dar ordens a um homem negro curvado, semidespido e segurando uma peneira com as mãos, tendo por fundo a mesma região pintada por Rugendas – representação que beira uma vergonhosa celebração do trabalho escravo naquele período. Também Tarsila do Amaral, faz, em 1938, uma tela chamada Garimpeiros, na qual um grupo de homens negros é pintado buscando o minério dentro de um rio. Contrariamente aos dois trabalhos anteriores, contudo, a artista parece colocar-se aqui ao lado dos trabalhadores, ainda que não precise o lugar e o tempo figurados na imagem que cria: seja pela expressão de tristeza e dor que imprime ao rosto do garimpeiro que aparece em primeiro plano, seja pela ênfase que dá à força física dos demais. Embora a presença do homem branco esteja aqui implícita como feitor ou patrão desses homens negros, não há espaço na tela para incluí-lo, talvez sugerindo um protagonismo do subordinado que virá um dia, o que está de acordo com o engajamento político demonstrado pela artista à época.
No território de maior concentração das jazidas de ouro descobertas pelos colonizadores portugueses – tão aquinhoado com o minério que passou a ser chamado, a partir da década de 1720, de Minas Gerais –, a mineração gestou, ademais, uma experiência de urbanização única no país, notadamente no espaço situado entre as cidades de Ouro Preto e Diamantina, tendo no barroco sua expressão simbólica mais celebrada e conhecida, na qual se destacam, entre outros, artistas como Francisco Xavier de Brito, Antônio Francisco Lisboa (o Aleijadinho) e Manuel da Costa Ataíde. Imprimiu ainda, porém, marcas profundas na paisagem da região compreendida entre as bacias dos rios Doce e São Francisco, revirada e escavada pela sôfrega busca de riqueza mineral. Marcas antigas que são avivadas pelos desastres de Mariana e Brumadinho.
A confluência histórica entre as consequências culturais e naturais da mineração em Minas Gerais tem sido objeto de trabalhos realizados por João Castilho ao longo dos anos, valendo-se, para tanto, dos meios da fotografia e do vídeo. Na fotoinstalação Ganga Bruta, o artista aproxima um conjunto de 24 imagens feitas por ele ou apropriadas de fontes várias para construir um painel que espelha o caráter paradoxal e conflitivo do que resultou, ao longo de séculos, das atividades mineradoras no chamado quadrilátero ferrífero, área de Minas Gerais conhecida por possuir a maior concentração de minas a céu aberto do mundo. Mesmo território onde se situam cidades conhecidas por seu importante e valioso acervo de arquitetura e arte barrocas, tais como Congonhas, Mariana e Ouro Preto. Há, no painel fotográfico, imagens externas e internas de minas e da lama de rejeitos que escapou de uma de suas barragens. Há imagens de pinturas e de esculturas religiosas ornadas em ouro, características do chamado Barroco Mineiro. Há imagens – algumas feitas de longe e outras de perto – da paisagem exuberante e erodida da região. Há imagens de objetos pertencentes a museus de mineração e de um mapa do território onde se situa a maior parte das minas do Estado. Há imagens de vistas aéreas da barragem que rompeu e de uma escada ainda coberta pela lama de lá escorrida. Há, por fim, imagens retiradas de Blade Runner 2049, filme situado em um futuro distópico do mundo. Todas possuem tons entre o amarelo, o marrom e o laranja, e muitas delas estão envoltas em neblina ou bruma. Articuladas, constituem uma estrutura angulosa e luminosa fixada na parede que simultaneamente ecoa a forma de um minério em estado bruto e o brilho de altar de igreja católica barroca. Criam ricochete visual em que se avizinham e se repelem construção e ruína, beleza e morte, o capital e o divino. Trabalho que apresenta um impasse mineral que perdura há muito.
Após o chamado ciclo do ouro no século 18, a mineração somente voltou a fazer parte central da vida econômica e social do Brasil a partir do início do século 20, quando foram mapeadas e divulgadas ao mundo, pelo governo brasileiro, as grandes jazidas de minério de ferro existentes no país, principalmente no estado de Minas Gerais. O intuito dessa ação de pesquisa e propaganda era atrair empresas siderúrgicas estrangeiras que, em troca da extração e exportação desses recursos, contribuiriam para implantar industrialmente, no país, a atividade de transformar o minério de ferro em aço. A isso seguiu-se a quase imediata compra das maiores jazidas da região por empresas inglesas e norte-americanas, sem antes haver-se contratualmente definido, contudo, que contrapartidas específicas seriam exigidas àquelas para viabilizar a constituição de uma indústria siderúrgica nacional. Indefinição de termos de troca que gerou reação política interna contra a saída do minério de ferro nacional para o exterior e bloqueou o esperado deslanche das ações de mineração e a fabricação de aço em larga escala no Brasil por quase três décadas. A disputa entre o interesse extrativo-exportador das empresas estrangeiras e a necessidade estratégica de implementar a atividade siderúrgica no país somente foi superada quando, no contexto geopolítico da Segunda Guerra, o governo brasileiro negociou a recompra das jazidas do país em troca da garantia de acesso, a preço baixo, ao minério de ferro nacional, em um momento de grande demanda mundial do produto para movimentar a indústria bélica. Acordo que resultou na criação, em 1942, da Companhia Vale do Rio Doce S.A. – daí por diante responsável pela extração e exportação do minério de ferro nacional para os países que eram parceiros comerciais e, naquele momento, aliados na guerra –, como também, um ano antes, na implantação da Companhia Siderúrgica Nacional. Arranjo este que ancorou, nas décadas seguintes, parte relevante da estratégia desenvolvimentista do governo brasileiro.
A partir de sua fundação, mas, principalmente, da década de 1950 em diante, a Companhia Vale do Rio Doce gradualmente se tornou uma das maiores mineradoras do mundo. Como contraparte da grande quantidade de ferro extraído e da riqueza monetária gerada com sua venda pela empresa, a paisagem de uma larga porção de Minas Gerais foi erodida e radicalmente transformada. Prejuízos de diferentes ordens foram, ademais, impostos às pessoas da região e aos ecossistemas no qual estão inseridas. Prejuízos associados às precárias condições de trabalho nas minas, à diminuição da oferta de água potável, à piora da qualidade do ar, ao desflorestamento, ao aumento da temperatura ambiente e à prostituição induzida nas cidades em volta dos sítios de extração de minérios. Transformações e prejuízos lentamente gestados por um período largo de anos que se metamorfoseiam e se magnificam pelo risco sempre presente da ocorrências de desastres como os de Mariana e Brumadinho. Risco que poderia, todavia, ser drasticamente reduzido fossem outras as técnicas adotadas de manejo e guarda do lixo tóxico que sobra da extração de minérios.
É em resposta a essa situação que ata progresso econômico e precariedade ambiental e humana – tornada nacionalmente visível a partir do rompimento da barragem do Fundão – que a artista mineira Júlia Pontés tem metodicamente feito, desde 2015, fotografias aéreas de minas e de suas barragens em toda a região do quadrilátero ferrífero mineiro. Imagens que buscam registrar, a partir de voos que eventualmente entram em espaço aéreo proibido, a paisagem que do chão é impossível de enxergar. Uma paisagem alterada e destruída, ao longo de várias décadas, por escavações, explosões, desvios de cursos d’água e desastres técnico-industriais. Nessa série de fotografias abrigadas sob o título coletivo de Ó Minas Gerais, pode-se ver, desde muito alto, o desenho das montanhas recortadas e as diversas colorações que a terra misturada com minério assume, tanto nas minas como nas barragens de rejeitos da mineração. São imagens gráfica e pictoricamente atraentes que, não houvesse qualquer informação sobre elas, poderiam, a um olhar menos atento, ser mesmo entendidas como sedutores exercícios fotográficos. O caso, porém, é que há sempre informações que acompanham cada uma dessas imagens, sendo elas parte indivisa do trabalho. São textos curtos que fornecem as coordenadas geográficas dos lugares registrados e oferecem dados sobre o que são ou para o que servem. Junto à fotografia de número 26 da série, por exemplo, segue-se texto que diz tratar-se de imagem da barragem da mina Timbopeba, em Ouro Preto, a qual se encontrava, comunica a artista, em processo de alteamento (aumento da capacidade de receber rejeitos) quando houve o rompimento da barragem da mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho. Informação que, ao sugerir os riscos corridos por tudo e por todos que estão próximos do lugar fotografado, muda por completo os atributos inicialmente associados à sua imagem. Já a fotografia de número 24 da série é acompanhada de texto que diz tratar-se da mina do Antigo Rio do Peixe, em Itabira, que, tal como sucederá com as outras minas da cidade, esgotará, em poucos anos, sua capacidade de extração comercial de minério. Um registro da exaustão da terra.
A menção a Itabira neste e em outros trabalhos sobre a mineração em Minas Gerais não é fortuita, posto que a cidade tem papel central na história dessa atividade no Brasil por grande parte do século 20. De fato, dentre as maiores jazidas de minério de ferro descobertas no país, estando por muitas décadas no centro do interesse comercial e estratégico de empresas e governos diversos, estavam aquelas situadas no entorno daquela cidade mineira. Mais especificamente, a jazida encontrada no pico do Cauê, o maior da região. Por muitos anos após a criação da Companhia Vale do Rio Doce, o Cauê foi gradual e continuamente dinamitado e partido em lascas ricas em ferro pela mineradora, levadas depois para longe em trens de carga com centenas de vagões carregados. Milhões de toneladas de minério de ferro foram transportadas por esses trens e enviadas a vários lugares, alimentando atividades siderúrgicas no Brasil e, principalmente, nos países que tinham acesso contratual ao produto. O consumo extrativo do Cauê foi tão intensivo que, já na década de 1980, o que era monte elevado havia se tornado funda depressão na terra, como atestam fotografias no pico (que deixou logo de sê-lo) feitas em épocas diferentes desde a década de 1940. Comparadas, essas imagens são evidências da violência imposta àquela terra e às gentes dali.
Itabira, contudo, é também conhecida por ser a terra natal de um dos maiores poetas brasileiros, Carlos Drummond de Andrade, que em distintos momentos de sua trajetória se manifestou criticamente – em poemas, crônicas e artigos – em relação ao destino do lugar onde viveu sua infância e juventude, inextricavelmente associado à dinâmica da extração do minério de ferro. As relações entre a obra de Drummond e as implicações mais amplas e contraditórias das atividades de mineração no Brasil foram densamente investigadas pelo ensaísta José Miguel Wisnik no livro Maquinação do Mundo: Drummond e a mineração, onde evidencia como a obra do poeta “convive surdamente com a trama das maquinações minerais que se desenrolam no país ao longo do século 20”. Convívio que igualmente é, entretanto, atravessado por embates ruidosos, vários deles travados por Drummond em jornais e livros diretamente com a Companhia Vale do Rio Doce.
Em ao menos dois de seus poemas é feita referência, justamente, à desoladora imagem desse trem que transporta o minério desde a região de sua extração em Minas Gerais – mais especificamente, desde o pico do Cauê – até portos do litoral no Espírito Santo, de onde é exportado para muitos cantos. Rota que quase se sobrepõe e se confunde, em grande parte de sua extensão, ao curso do Rio Doce, por onde em 2015 escorreu, misturado a águas antes limpas, o minério enlameado e tóxico da barragem rompida em Mariana. Em poema de 1973, Drummond refere-se ao Cauê como “a montanha pulverizada”: “… Esta manhã acordo e / não a encontro. / Britada em bilhões de lascas / deslizando em correia transportadora / entupindo 150 vagões / no trem-monstro de 5 locomotivas / — o trem maior do mundo, tomem nota — / foge minha serra, vai / deixando no meu corpo e na paisagem / mísero pó de ferro, e este não passa.” Em outro, publicado em 1984, o poeta descreve, entre enraivecido e desolado, o que resulta das atividades do que novamente chama de “o maior trem do mundo”, ainda mais extenso do que era antes: “puxado por cinco locomotivas a óleo diesel / engatadas geminadas desembestadas / leva meu tempo, minha infância, minha vida / triturada em 163 vagões de minério e destruição. // O maior trem do mundo / transporta a coisa mínima do mundo, / meu coração itabirano.” E já antecipando o inevitável fim desse predatório processo, vaticina: “Lá vai o trem maior do mundo / vai serpenteando vai sumindo / e um dia, eu sei, não voltará / pois nem terra nem coração existem mais.” Foi a passagem desse trem, o “maior do mundo”, que em 2018 Júlia Pontés registrou em vídeo a partir de pontilhão na cidade de Catas Altas, por debaixo do qual ele continua a deslizar levando, em 242 vagões bem cheios, o que resta do minério de ferro de Minas Gerais para o litoral do Espírito Santo. O trem, que parece não ter fim, passa a cada meia hora por esse mesmo lugar, a cada vez carregando cerca de 19.000 toneladas de minério de ferro. Minério que, ensina o vídeo em seu final, é na maior parte exportado sem beneficiamento e, portanto, sem o alto valor agregado que terá quando, no exterior, for transformado em aço e usado para construção de coisas diversas. Processo extrativo e exportador que beneficia um restrito conjunto de empresas que recebem isenções fiscais do Governo para operar e cuja atuação provoca doenças e danos variados às comunidades que vivem próximas às minas.
A oposição sempre firme do poeta Carlos Drummond de Andrade ao uso predatório de Itabira pela Companhia Vale do Rio Doce atravessou décadas. Por meio de poemas e de artigos publicados em jornais expôs, de modo enfático e combativo, o contraste entre os enormes ganhos gerados pela extração do minério de ferro de sua cidade natal e o quase nada que era para ela revertido disso. Mais além, destacou os prejuízos que a atividade mineradora trazia para os de Itabira, obrigados a conviver com a poluição do ar e dos rios, com o apagamento rápido da paisagem que estivera desde sempre ali e com a destruição de muitas formas antigas de ganhar a vida, incompatíveis com o que demandava a dominante lógica extrativista. A partir de um sentimento de indignação forjado pelo afeto a um lugar, teceu, em verdade, uma crítica ao desenvolvimentismo cego que se tornara hegemônico no pensamento econômico e político brasileiro a partir de meados do século 20. Desenvolvimentismo que não hesitava em apagar marcas de tempos passados e desmanchar fronteiras de espaços quaisquer em nome de um futuro melhor que prometia alcançar toda gente e todo canto. Mas que, para muitos, como os de Itabira, quase nunca chegou. Mesmo após tantos anos de oferecimento do solo ferroso de sua cidade para a suposta redenção econômica do país.
Essa submissão de Itabira e de seu entorno à mineração foi figurada em uma série de pinturas feitas por Djanira da Motta e Silva na década de 1970. Em uma delas descreve, com economia de gestos, uma cidade espremida entre montanhas ainda cobertas de vegetação e uma paisagem já totalmente alterada, sulcada pelas escavações e explosões que expõem os marrons do chão violentado do lugar. Em outra, a artista é mais sucinta na representação do que havia se passado ali por décadas, preenchendo a tela quase inteira com planos cor de terra escura paralelos e acidentados, como se Itabira inteira houvesse sido tragada para dentro de seu solo. O processo que causa essas mudanças é sugerido mais claramente por Djanira, porém, em um conjunto de três telas em que parte do maquinário usado nas minas – guindastes, escavadeiras, esteiras – é posto, centralizado, no primeiro plano das pinturas, tendo ao fundo, em tons que vão do marrom ao cinza mineral, a paisagem da região por ele transformada. A estruturação quase geométrica das imagens reforça, ademais, a inequívoca hierarquia das forças em atuação na Itabira de Drummond e em tantas outras cidades mineiras próximas dali, a qual submetia natureza e cultura às promessas incertas e nunca saldadas de um progresso econômico por vir.
Em 1970, no auge da adesão do Estado brasileiro à ideologia desenvolvimentista, a Companhia Vale do Rio Doce fez publicar, no jornal O Globo, uma propaganda da empresa comemorando seus mais recentes feitos na extração e exportação de minério de ferro. O título do anúncio soava como uma provocação e um revide a Drummond: “há uma pedra no caminho do desenvolvimento brasileiro”. Apropriava-se do enigmático e conhecido poema do escritor – “No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra”, anunciava na primeira estrofe – para indireta e perversamente festejar o processo de destruição física e simbólica de Itabira, por tantos anos denunciada por ele. Mais ainda: para desqualificar as incontáveis críticas feitas à empresa por Drummond (e por outros vários) como antiquadas e mesmo antipatrióticas, como se ele próprio fosse pedra “no caminho do desenvolvimento brasileiro” que devesse ser dali retirada. A vileza da peça publicitária – tanto mais abjeta por acuar Drummond politicamente em tempos de ditadura – ecoava o menosprezo pelas patentes consequências negativas da mineração e pela necessidade ética de revertê-las ou repará-las, pondo sempre acima delas a contabilização asséptica de ganhos patrimoniais. Ao valerem-se do poema-pedra de Drummond para vangloriarem-se de serem “especialistas em transformar pedras em lucros para a Nação”, os responsáveis pela propaganda da Companhia Vale do Rio Doce quiseram reduzir a poesia ao minério e o interesse nacional ao benefício monetário de poucos. Visto à luz dos desastres recentes de Mariana e Brumadinho, o argumento principal do anúncio é quase obsceno, posto que ignora ou escamoteia os riscos de manusear e guardar os rejeitos tóxicos que a transformação de “pedras em lucros” produz. E que, por vezes, destrói caminhos.
A associação entre, por um lado, o nacionalismo estremado longamente cultivado pelo governo brasileiro e pelas empresas mineradoras e, por outro, o descuido com as implicações e o risco do desenvolvimentismo que o acompanha foi condensada, em uma espécie de maquete, no trabalho Efeméride, feito por José Rufino em resposta imediata ao desastre em Brumadinho. De dentro de caixa de madeira estreita e aberta posta à altura do olhar, parece avançar uma lama que, descendo uma escada em miniatura, pode alcançar a todos, incluindo os que se sentem abrigados e seguros. Do mesmo objeto chega o som, baixo e atravessado por chiados, do hino nacional brasileiro, fechando uma equação simbólica que, transportada a outros tempos políticos, teima em se querer válida ainda. Não é à toa que, já em 1984, Drummond volta à carga contra a Companhia Vale do Rio Doce no poema Lira Itabirana: “O Rio? É doce. / A Vale? Amarga. / Ai, antes fosse / Mais leve a carga. // Entre estatais / E multinacionais, / Quantos ais! // A dívida interna. / A dívida externa / A dívida eterna. // Quantas toneladas exportamos / De ferro? / Quantas lágrimas disfarçamos / Sem berro?”. Crítica ácida secundada, 35 anos depois, pela artista também mineira Mabe Bethônico, em trabalho feito em seguida ao rompimento da barragem do Córrego do Feijão. Em um par de fotografias vê-se quase a mesma cena ao ar livre: os braços de alguém não identificado seguram um jornal aberto, vazado na área onde parecia haver uma imagem. Em uma delas, o foco da câmera recai sobre o que está ao fundo da cena – um edifício baixo de fachada branca atravessada por largas faixas pretas em toda sua extensão –, sendo impossível ler o que está escrito no jornal. Na outra fotografia, o foco está, ao contrário, sobre o impresso, onde se pode ler, em francês, a manchete acima da área recortada: “O medo dos brasileiros à sombra das barragens”. Em letras menores, o subtítulo da matéria: “A multinacional Vale enfrenta sua segunda catástrofe ecológica e humana em três anos”. Deduz-se que a imagem subtraída era, portanto, do desastre em Brumadinho. O título-legenda que acompanha o trabalho, e que dele faz parte, desconcerta aqueles que o examinam: “Edifício da Vale S.A. no Cantão de Vaud, Suíça, onde são feitos negócios com a Europa, o Oriente Médio e os Estados Unidos; onde há um departamento de Gerenciamento de Riscos e avista-se, de um lado, um pomar, e, em frente, os Alpes”. O contraste entre os altos riscos associados à atividade de mineração e a segura placidez do local onde eles são ‘gerenciados’ pela Vale é eloquente acerca do desamparo daqueles que vivem em paisagem tão diferente, mexida e moldada a cálculos de maximização de lucros que já embutem e descontam (ao mínimo que o aparato jurídico permitir) o preço de mortes e destruição de todo tipo.
Mabe Bethônico tem realizado, ao longo de vários anos, uma série de trabalhos em torno de implicações sociais da mineração em Minas Gerais, abrigados sobre o nome comum de Invisibilidade Mineral. Em um deles (Mulheres em minas de todos os tipos), aproxima dezenas de fotografias de mulheres que trabalham em diversas funções nas minas, documentando uma presença pouco clara no imaginário trabalhista e industrial brasileiro, a despeito de a mão de obra feminina ter estado associada às atividades de extração de ouro no país já no século 18, notadamente na função de separadora de minérios e como supridora de alimentos e produtos necessários à subsistência de todos que trabalhavam ali. Em outro, sem título, agrupa em slide show dezenas de fotografias que exibem, objetivamente, as precárias e arriscadas condições de trabalho nas distintas etapas do processo de mineração, não somente na área de extração como nas dependências de alojamento e convívio dos trabalhadores das minas. Ainda em um terceiro trabalho, chamado Extratos, apresenta uma série de fotografias de textos com partes propositadamente suprimidas pela artista, formando um discurso interrompido. Textos que descrevem as impressões de um geólogo quando confrontado com fotografias feitas por uma empresa de mineração não nomeada – arquivo do registro semanal de suas atividades – que não permite que sejam publicamente mostradas. No texto quebrado, Mabe Bethônico dá ênfase às descrições objetivas feitas pelo profissional, que inadvertidamente reforçam a precariedade e os riscos humanos e ambientais associados à extração de minérios.
Embora os desastres de Mariana e Brumadinho tenham chamado a atenção para as ameaças da mineração na região de Minas Gerais, é largamente sabido que em muitas outras áreas do Brasil a extração de minério é simultaneamente fonte de geração de riqueza e de destruição de vidas. Mudam as paisagens, os tipos de minérios e os métodos de sua extração, mas pouco se altera o alto grau de violência seletiva que os articula no país. Um desses outros tantos lugares sujeitos a tal força destrutiva é a região amazônica, em particular as terras onde vivem, desde antes de o Brasil existir, o povo Yanomami, situadas no território que na divisão geopolítica do país se conhece por Roraima e Amazonas. Terras que, a partir do início da década de 1970, foram muitas vezes visitadas pela fotógrafa Claudia Andujar, época em que os habitantes daquele lugar eram pouco aproximados dos “brancos”. Em suas primeiras viagens àquele pedaço da Amazônia, a artista pôde registrar, em imagens, uma forma de vida complexa que contribuía, com seus saberes e invenções, para a necessária diversidade cultural do mundo. Foi também nesse período, contudo, que o governo militar brasileiro quis ocupar aquela parte da selva amazônica, abrindo estradas a todo custo e tolerando a extração predatória e clandestina de minérios. Como resultado de um “contato” movido pela busca de ganhos econômicos e políticos imediatos, modos específicos de fazer e de criar as coisas, tecidos longamente pelos Yanomami, foram postos em risco. Mesmo os corpos dos índios foram ameaçados em sua integridade física, contraindo doenças até aquele momento por eles desconhecidas. É nesse contexto que as fotografias da artista passam gradualmente a capturar, cada vez com maior frequência, a vulnerabilidade dos povos indígenas. Em 1977, é expulsa da região pelas autoridades do país incomodadas com suas denúncias e retorna a São Paulo, cidade onde vivia desde a década de 1950.
A partir de 1978, o trabalho de Claudia Andujar passa a ser menos o de apreender visualmente a vida singular dos Yanomami e mais o de criar instrumentos legais que os fortalecessem contra o cerco em curso. Associando-se a outras pessoas e instituições, do Brasil e do exterior, que partilhavam a mesma disposição de resistência, funda a Comissão pela Criação do Parque Yanomami – CCPY e dedica-se a projetos de assistência de saúde emergencial aos índios. Em texto escrito para a Comissão Pró-Índio, em 1979, denuncia convênio celebrado entre a FUNAI – Fundação Nacional do Índio e a Companhia Vale do Rio Doce para explorar cassiterita no território Yanomami, o qual previa a entrada de “300 funcionários da mineradora, sem que tenha sido anunciada qualquer medida visando a vacinação de 3800 indígenas da área”, pondo essa população sob risco de extermínio. Pouco depois, integra o grupo de pesquisadores e militantes que elabora o Relatório Yanomami 82. Situação de contato e saúde, extenso documento feito para subsidiar a discussão para criação do Parque Yanomami entre todos os interessados e engajados nisso. Estruturado em capítulos dedicados a cada uma das áreas da região, há nele repetidos alertas sobre os efeitos altamente desestruturantes do garimpo feito ali. Em uma dessas seções, dedicada à área denominada de Surucucus e Couto de Magalhães, encontra-se o relato das idas e vindas de garimpeiros nas terras e rios próximos às aldeias, em invasão progressiva e consentida (pelas autoridades) do território por séculos habitado pelos Yanomami. E em reveladora passagem sobre a visão que o Governo Federal então possuía acerca da relação entre a mineração e os povos diretamente afetados por ela, o relatório cita um ofício do Diretor do Departamento Geral do Patrimônio Indígena dirigido à Companhia de Desenvolvimento de Roraima em agosto de 1981, no qual declara que “o interesse ligado às terras da região dos Surucucus não poderá sujeitar-se à prevalência de atitudes sentimentais, em detrimento às (sic) necessidades do desenvolvimento”. A ideia de transformar, a todo custo, a natureza em lucros “para a nação”, expressa uma década antes na propaganda da Vale do Rio Doce publicada em jornal, ganhava, aqui, sua versão amazônica, em que as pedras a serem tiradas do caminho do desenvolvimento são os corpos dos índios.
Após conseguir autorização legal das autoridades brasileiras, Claudia Andujar volta diversas vezes ao território Yanomami nas duas décadas seguintes, fazendo fotografias que são misto de anotação de um desastre extenso e instrumento de combate contra as violências continuamente infligidas aos povos indígenas. Em várias delas, realizadas entre 1989 e 1990, registra atividades ilegais de garimpo de ouro naquela região (incluindo bases flutuantes e aeroportos clandestinos) e algumas de suas mais evidentes consequências humanas e ambientais, tais como a brutal desarticulação de modos ancestrais de tecer a vida e a contaminação quase irreversível de matas e rios. Em outro conjunto de imagens, anota os sinais mais evidentes e imediatos da desregulada corrida ao ouro nas cidades mais próximas às aldeias, encontrados na proliferação de estabelecimentos comerciais que oferecem, em coloridos cartazes e painéis pintados em fachadas e entradas de lojas, o serviço de compra de metais valiosos aos garimpeiros. A associação frequente, nesses atrativos anúncios, entre a extração do minério e o alcance de avanço pessoal e do país – “com trabalho adquirimos progresso”, lê-se em alguns deles – reflete, como espelho invertido, a agressão cometida contra uma cultura que não demarca fronteiras entre a vida humana e tudo mais o que há na floresta, incluindo seu solo e seus espíritos. Cultura para a qual o progresso do povo não-índio significa, historicamente, doença e morte do mundo.
Coerente com sua postura crítica à atividade mineradora em Minas Gerais, Carlos Drummond de Andrade escreveu, entre finais da década de 1980 e início da seguinte, quando já eram públicos os efeitos da mineração no território Yanomami, artigos em jornais denunciando, uma vez mais, a submissão da vida de tantos à uma fabricação de riqueza que serve sempre a tão poucos. Em um deles, chamado “O Yanomami sem sorte”, publicado em fevereiro de 1990, quando se discutia, nos meios políticos, a implantação do Parque Yanomami, o poeta tenta se colocar no lugar de um índio para falar de suas inquietações. Diz ele, no início de seu texto: “Se eu fosse yanomami não estaria hoje muito tranquilo. A boa notícia de que a Funai começará dentro de 90 dias a fazer a demarcação das terras do Parque Indígena onde minha tribo terá direito a viver sua vida me faria um yanomami eufórico. Mas euforia de yanomami dura pouco. Vem a galope uma notícia assustadora. Antes de demarcada a área do Parque já se pensa em reduzi-la, para permitir a exploração de minérios em nosso território. A Funai já negocia mesmo essa redução perante os defensores do Parque uno e íntegro como foi planejado e convém ao interesse dos brasileiros de sangue índio. Então o Parque não será o Parque, mas terra dividida e lacerada de conflitos, como até aqui toda a porção de solo brasileiro em que nós índios somos impedidos de existir à nossa maneira, cedendo espaço e recursos naturais à cobiça de indivíduos e empresas, às vezes nem sequer brasileiras”. Das Minas Gerais ao extremo norte da Amazônia (e em demais cantos também), Drummond parece uma vez mais dizer que a mineração no Brasil é acompanhada, quase como fosse sua marca distintiva, da apropriação do que seria bem comum para benefício de alguns e miséria de outros; da geração concentrada de ganhos financeiros às custas do valor imensurável de um meio ambiente frágil e impossível de ser refeito.
E se é bem certo que a arte pode pouco frente a tudo isso, ela pode ao menos lembrar, no momento em que se celebram antigas crenças no suposto e automático poder emancipador do avanço econômico, que o desenvolvimento material do mundo tem sempre custos, distribuídos desigualmente de acordo com diferenças existentes entre pessoas e povos. Diferenças de classe, de cor de pele, de gênero e de etnia, fazendo com que pobres, negros, mulheres e povos indígenas sintam mais que outros os efeitos perversos do que se chama progresso econômico. Pode afirmar – insistentemente, se preciso for – que o colonialismo predatório que explorou o ouro no século 18 se transvestiu de empreendedorismo moderno mais de dois séculos depois na exploração deste e de outros minérios, atualizando a ética tosca e violenta dos conquistadores europeus. Pode advertir que o futuro está sendo colonizado pelos operadores de uma necropolítica cuja lógica de avanço embute o extermínio daqueles desnecessários à reprodução incessante do dinheiro. Pode fazer eco, por fim, aos Yanomami e a vários outros povos da floresta, que há tempos obstinadamente avisam: de tanto agredir a terra, um dia o céu que a cobre pode cair, matando, sem distinção, a todos que nela vivem. Tudo o mais a fazer depende de outras coisas.
Moacir dos Anjos é crítico de arte. Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, foi curador da 29ª Bienal de São Paulo em 2010. Publicou ArteBra Crítica: Moacir dos Anjos (2010), Local/global: Arte em trânsito (2005) e Contraditório. Arte, globalização, pertencimento (2017) entre outros volumes e ensaios em livros.
Referências
Demos, T. J. Decolonizing nature: contemporary art and the politics of ecology. Berlim: Sternberg Press, 2016.
Nogueira, Thyago (org). Claudia Andujar: a luta yanomami. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2018.
Schwarcz, Lilia Moritz e Starling, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Wisnik, José Miguel. Maquinação do mundo: Drummond e a mineração. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Comissão pela Criação do Parque Yanomami. Relatório Yanomami 82. Situação de contato e saúde. São Paulo: 1982.