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abril 15, 2019
Mostra de Rivane Neuenschwander traz para a política sanatório de Machado de Assis por Nelson Gobbi, O Globo
Mostra de Rivane Neuenschwander traz para a política sanatório de Machado de Assis
Matéria de Nelson Gobbi originalmente publicada no jornal O Globo em 10 de abril de 2019.
Em São Paulo, artista mineira apresenta obras recentes na exposição 'O alienista'
SÃO PAULO — Publicada em 1882, a novela “O alienista” é constantemente aludida ao se abordar relações de poder, mesmo as que não remetam à realidade do Brasil oitocentista que deu base à obra de Machado de Assis. Mais de um século depois, a história do médico Simão Bacamarte, que interna todos os habitantes de uma cidade em um sanatório recém-construído (e por fim, ele próprio), segue como uma alegoria potente para momentos de insegurança institucional. A inquestionável autoridade médica da ficção, a quem cabia apontar os loucos e sãos, pode ser atribuída a personagens autoritários ou governos autocráticos, a partir do contexto em que o paralelo é feito.
Utilizando o título da obra machadiana, Rivane Neuenschwander inaugurou na galeria paulistana Fortes D’Aloia & Gabriel, no início do mês, uma individual com obras criadas nos últimos anos, sob o impacto do noticiário político no Brasil. A mostra reúne obras em técnicas variadas, como o vídeo “Enredo” (2016), feito em parceria com o seu irmão, o neurocientista Sergio Neuenschwander, ou as colchas de retalhos da série “O nome do medo”, feitas em oficinas com crianças na EAV do Parque Lage e expostas no Museu de Arte do Rio (MAR) em 2017. À pesquisa desenvolvida desde 2013 sobre medos infantis e suas representações, a artista somou as criações da série “O alienista” (2019), com 16 bonecos feitos de papel machê, tecido e garrafas de vidro, que podem representar (ou não) personagens da crônica política atual, dependendo da leitura do público.
— Acompanhei à distância os protestos de 2013, mas a coisa degringolou de vez em 2015, quando voltei de Londres para morar no Brasil. Então a pesquisa anterior começou a se relacionar mais com o contexto político, com as disputas de narrativa — comenta a mineira Rivane, que trocou Belo Horizonte por São Paulo, após voltar de um período de três anos na capital inglesa. — Na época, tentei retomar a questão da linguagem, e fiz etiquetas com as palavras que ganharam força naquele momento, para tentar entender o que estava em jogo em termos semânticos, o que foi capturado no meio do caminho.
Após a polarização e a radicalização dos discursos no período eleitoral, a artista começou a produzir os bonecos com cabeças de papel machê (muitas vezes feitas junto aos filhos, Theo e Hannah, de 11 e 9 anos, respectivamente), com feições que lembram animais ou plantas — nunca humanas. Os nomes dados a cada escultura, como “O Juiz de Fora”, “O Terraplanista”, “A Corte”, não explicitam as correlações com personagens da vida política nacional, mas alguns detalhes fazem o paralelo com eventos recentes, como notas de dólares presas às vestimentas ou uma diminuta panela nas mãos de uma das criaturas.
— Pensei muito no Paul Klee (1879-1940), que fez dezenas de fantoches para o filho, muitos dos quais foram queimados durante a Segunda Guerra. É impressionante pensar no processo histórico que um artista dessa magnitude viveu , a perseguição dos nazistas, a inclusão na mostra de arte degenerada. Os trabalhos foram ganhando muitas camadas de sentido, vi que teriam de ser ricos de detalhes — ressalta a artista. — Usei as garrafas de vinho e outras bebidas na base, já que muitas delas acompanharam debates acalorados que tivemos no ano passado.
A relação com a obra de Machado de Assis também inspira os personagens do que pode ser interpretado como um sanatório de proporções diminutas. Outra ligação está na parte inferior das paredes da galeria, pintadas de verde para remeter ao nome do manicômio criado por Simão Bacamarte no livro, a Casa Verde.
— De repente a gente se viu obrigado a rebater discursos sobre fatos que já tínhamos vivido, como a ditadura ou a “ameaça” do comunismo. Isso emerge como uma psoríase, um processo de negação da verdade que te obriga falar sobre Terra plana, é uma volta no tempo — diz Rivane. — E isso tem consequências imediatas. Basta pensar na questão ecológica, por exemplo. Se continuarmos assim, daqui a pouco estaremos presos numa realidade sem volta, da nossa Casa Verde só vão ficar as cinzas.
O alienista
Onde : Fortes D’Aloia & Gabriel — Rua Fradique Coutinho, 1500, Vila Madalena (11 3032-7066). Quando : Ter. a sex., das 10h às 19h; sáb., de 10h às 18h. Quanto : Grátis. Classificação : Livre.