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agosto 21, 2018

Falta queer em ‘Queermuseu’ por Daniela Name, O Globo

Falta queer em ‘Queermuseu’

Crítica de Daniela Name originalmente publicada no jornal O Globo em 19 de agosto de 2018.

Abordagem dispersa em múltiplos aspectos desvia a curadoria de seu eixo central

A abertura de “Queermuseu – Cartografias da diferença” entra para a história como o momento em que a Escola de Artes Visuais do Parque Lage e a população do Rio de Janeiro se levantaram contra a censura e a onda de intolerância que açoda o país. O financiamento coletivo para realizar o projeto, depois de sua proibição em setembro do ano passado no Santander Cultural, em Porto Alegre, afirma a liberdade de expressão e o poder transformador e questionador da arte. Não é um feito irrelevante. Também é importante pensar que a EAV e o grupo 342 Artes, líderes da campanha que viabilizou a exposição, trouxeram ao meio da arte contemporânea brasileira, combalido por anos de apatia, um senso de coletividade e projeto comum, grande legado da empreitada.

À parte isso, a arte é, acima de todas as bandeiras e causas, um campo de conhecimento atravessado por sua capacidade de transcendência. Pode partir dos prazeres e das dores do mundo, mas sua imensa força mobilizadora vem justamente da capacidade de ultrapassá-los. Uma exposição é um acontecimento que se dá em determinados tempo e espaço. A coragem da EAV ao abrigar “Queermuseu” nos oferece a oportunidade de avaliarmos este projeto artístico para além de sua superexposição midiática. Há 24 anos, quando em 1984 o Parque Lage sediou uma coletiva histórica – “Como vai você, Geração 80?”, que plasmou as contradições da Anistia brasileira –, a crítica de arte foi engolfada pelos holofotes da polêmica e se absteve de realizar o seu trabalho. Não é saudável que isso ocorra novamente.

A primeira sensação para quem entra no Parque Lage é a de que “Queermuseu” chega ao Rio dividida em dois universos distintos: as Cavalariças, que sediam a exposição original assinada por Gaudêncio Fidélis; e o palácio principal da escola, onde acontecem as ações concebidas pelo curador da EAV, Ulisses Carrilho. Durante a abertura, ficaram bastante claras as diferenças de conceito e capacidade de mobilização entre estes dois segmentos quase contraditórios, que, no entanto, convivem sob o mesmo título.

Nas Cavalariças, a exposição, com 214 obras e 82 artistas, é bastante prejudicada por três problemas. O primeiro, e menos grave, é espacial: apesar de reformadas e adequadas à museologia, as Cavalariças não comportam tamanha quantidade de trabalhos. A sensação visual é a de um abarrotado gabinete de curiosidades, sem que haja espaço para o visitante ser envolvido diretamente por cada obra. Há peças posicionadas muito acima do campo de visão e paredes cheias a ponto de causar um curto-circuito perceptivo.

A descompensação espacial fica clara na montagem de “Cena de interior II” (1994), de Adriana Varejão, pintura magistral que foi o alvo preferido dos fundamentalistas de internet. Por tudo que significa para a história recente da arte brasileira e por todos os ataques sofridos, a obra merecia frontalidade e destaque. Mas fica apertada no canto final de uma parede do primeiro módulo da exposição, sem trabalhos ao redor estabelecendo com ela uma interlocução potente. Ainda no campo da montagem, mas extrapolando para uma questão conceitual, as vestes de “Eu e tu” (1967), trabalho importantíssimo de Lygia Clark, são apresentadas em manequins, revelando uma incompreensão por parte da curadoria de que este trabalho não é formado por objetos, e sim por experiências. “Eu e tu” só se configura como obra quando vestido/usado pelo público, e o adequado seria oferecer as roupas em mesas ou cabides. Diante de uma impossibilidade, abrir mão da obra é sempre melhor do que atacá-la com uma montagem que a contradiz.

O segundo problema de “Queermuseu” é ainda parecer uma exposição diretamente ligada à história da arte em Porto Alegre, com os outros trabalhos orbitando em torno deste eixo principal. Isso apesar de, em meio à polêmica, ser anunciada como “a primeira exposição no Brasil pensada fora do eixo heteronormativo” pelo curador Gaudêncio Fidélis. Seria possível preservar toda a lista de nomes no projeto original para o Santander Cultural, mas aproveitar o tempo de reflexão entre setembro e agora para rever o número de trabalhos de cada um. Há exageros, por exemplo, na presença dos gaúchos Fernando Baril e Telmo Lanes. Baril, autor do Cristo/Shiva que causou furor na web, é um virtuose técnico que traz temas supostamente polêmicos para a atmosfera de um surrealismo tardio. Já Lanes, que fez parte do importante grupo Nervo Óptico nos anos 1970, comparece à exposição com trabalhos recentes que não fazem jus à sua relevância para a história da arte gaúcha.

O excesso de uns aponta para a ausência de outros: fazem falta, no conjunto da exposição, artistas que abordaram diretamente corpo e/ou gênero e/ou sexualidade, caso de Márcia X, Victor Arruda, Alex Vallauri e Letícia Parente. Hélio Oiticica, sobretudo o das obras sobre sua relação com o contraventor Cara de Cavalo, também poderia ter sido considerado. Mas a maior ausência é a de artistas trans e de trabalhos que apresentem os estados de fluidez e metamorfose de gênero de forma direta e visceral. A mostra ganharia muito se fosse apresentada a partir de pessoas que vivenciam o queer em seus corpos e suas biografias.

Mesmo no que diz respeito a ótimos artistas na seleção, a escolha das obras acaba por ter menos força do que poderia. É o caso, por exemplo, de Efrain Almeida e Rodolpho Parigi, dois criadores que, por motivos distintos, estão afinados com o debate sobre o “queer”. Parigi é autor do personagem artístico Fancy Violence, espelho para a fluidez sexual e as travessias de gênero que marcam nosso tempo. Na exposição, em vez da presença corporal e performática deste alterego do artista, opta-se por pintura. Já Efrain, um grande sintetizador da arte contemporânea com os saberes populares brasileiros, aparece na exposição com a escultura “Mulato”. É um trabalho contundente, que tangencia a importante questão racial do país, mas passa ao largo do problema central que a mostra deveria apresentar.

E é aí que se chega à terceira e maior falha da exposição nas Cavalariças. Falta “queer” ao “Queermuseu”, e entregar uma exposição que espelhasse o tema prometido no conjunto de obras e na presença plural de criadores era o mínimo que se esperava do curador. As ausências soam tão incongruentes quanto algumas presenças. A despeito da enorme qualidade das obras, o que estão fazendo na exposição o vídeo “Ilhas”, de Maurício Ianês e a dupla de desenhos “Galáxias”, de Montez Magno? Na leitura dos textos escritos para o catálogo do Santander, Fidélis aborda um escopo de questões que vai do conceito de informe ao passado colonial brasileiro. E é esta abordagem dispersa em tão múltiplos aspectos que desvia a curadoria de seu eixo central, tornando-o vazio.

Há uma indução do público a uma leitura superficial e gestáltica de alguns trabalhos. É o caso do “Retrato de Rodolfo Jozetti” (1928), de Portinari, e “Amnésia” (2015), de Flavio Cerqueira. A pintura de Portinari, que retrata um importante médico integralista gaúcho como um dândi, é levada a um encaixe no campo “queer”, como se o gesto dos corpos tivesse um glossário, um gabarito. Já a escultura de Cerqueira, exposto no momento também na exposição “Histórias afro-atlânticas”, no Masp, apresenta um menino de feições negras, vertendo um balde de tinta branca sobre a própria cabeça. Na mostra paulista, o que se destaca no trabalho é sua relação com o passado colonial; no Parque Lage, a tinta branca pode virar sêmen no diálogo com as obras vizinhas, atando o público a uma primeira camada de interpretação, aquela restrita às questões formais.

A ausência de uma pujança “queer” nas Cavalariças é parcialmente compensada pelo projeto educativo de Ulisses Carrilho. Foi na área do educativo que o Coletivo Seus Putos realizou, durante a abertura, a ação “Trouxamuseu (Ou Museu dos Trouxa)”, divulgando depois um texto nas redes sociais. Ele pergunta: “A exposição conta com artistas de renome como Adriana Varejão, Cândido Portinari, Alfredo Volpi, e até Guignard. Aí você pensa que Queer é esse, não é mesmo?”. É uma angústia procedente. Mas o texto vai além, mostrando como as pesquisas acadêmicas têm se apropriado do universo queer e transformado em fetiche a complexidade de uma população que é alvo de preconceitos e violência no Brasil. “Pensar o Queermuseu é entender também como um curador pensa e define seus termos. Gaudêncio Fidelis define travesti como ‘um homem que se veste como mulher, que se sente mulher’. Talvez isso concretize algumas das críticas a esse espaço supostamente dissidente: como as pessoas trans são taxonomizadas, quem as classifica e como aparecem dentro do discurso queer”.

Sábado, na inauguração, a falta de criadores e criadoras trans e o esvaziamento temático da mostra principal teve como contraste as ações no palácio: um conjunto de boas performances e um Sarau Queer trouxeram pulsação, libido e frescor ao dia no Parque Lage. Talvez seja este outro “Queermuseu”, aquele organizado por Carrilho para o educativo da EAV, aquele capaz de abarcar a complexidade que se deseja em um projeto como este. A mediação da mostra foi entregue ao universo LGBTQI+, e é formada por gays, lésbicas, não binários e pessoas que fizeram a transição de gênero. Eles recebem o público exibindo em seus corpos indisciplina do desejo e a indeterminação da existência – aquilo que nos faz humanos. A indisciplina é, aliás, o mote do projeto educativo, o que soa bastante adequado para um lugar que é, acima de tudo, uma escola.

Ainda no segmento educativo, uma boa exposição documental tem a companhia de quatro trabalhos de Matheusa, artista não binária assassinada recentemente no subúrbio do Rio apenas por ser quem era. Uma presença-ausência dolorida e mobilizadora. Também serão importantíssimos os debates que a EAV vai realizar enquanto “Queermuseu” estiver em cartaz. Eles poderão aquecer a discussão que a mostra nas Cavalariças perdeu a oportunidade de realizar profundamente.

Cotação: Regular

* Daniela Name é crítica de arte

Posted by Patricia Canetti at 6:38 PM