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julho 9, 2018
Pinacoteca vai além dos muros para incluir moradores de rua por Thiago Amâncio, Folha de S. Paulo
Pinacoteca vai além dos muros para incluir moradores de rua
Matéria de Thiago Amâncio originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 8 de julho de 2018.
Museu de SP faz oficinas de arte e distribui ingressos à população do entorno
Do lado de dentro da Estação Pinacoteca, no centro de São Paulo, a exposição "Emannuel Nassar: 81-18" fazia uma retrospectiva da obra do artista plástico paraense e reunia numa tarde de junho de admiradores do pintor até excursões de estudantes mais interessados em um dia fora da escola que nas obras de arte.
Do lado de fora, moradores de rua limpavam a calçada e cuidavam das cerca de dez barracas erguidas sob a marquise do museu, que fica a 300 metros da cracolândia, local de uso e venda livre de drogas no centro da cidade, que vem sendo palco de ofensiva da PM e da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo.
Virgílio Dagoberto Rosa, 18 de seus 49 anos na rua, conta que já dormiu muito naquela calçada de onde no passado funcionava o Dops, equipamento de repressão da ditadura militar. "Eu pensava em entrar para conhecer, porque eu sou curioso, gosto de conhecer as coisas. Mas só passava na minha mente", conta ele.
Hoje, continua frequentando o local. Mas da porta para dentro. "Aí cumpri o desejo do meu coração e conheci."
Ele participa do Extramuros, uma ação educativa da Pinacoteca que realiza oficinas de produção artística com moradores de rua e os leva para dentro do museu.
O mesmo pensava Ernande José dos Santos, 54, na rua desde que deixou a prisão em 2012. "Olhava [a Pinacoteca] com outros olhos, com interesse de pedir dinheiro", diz. "E ficava reparando naquele lustre bonito", afirma, sobre uma peça na entrada do prédio principal da instituição, em frente à estação da Luz.
O Extramuros acontece há 11 anos e leva para o museu pessoas que não costumam frequentar esses espaços. Além das atividades guiadas, há também a distribuição de entradas para que a população de rua possa entrar no espaço quando quiser.
"Muitas vezes o público fica incomodado, mas visibilidade é o primeiro passo para dignidade humana, introduzir essas pessoas sistematicamente no museu dando-lhes voz", diz Mila Chiovatto, do núcleo educativo da Pinacoteca.
"Nos museus que eu já fui visitar tinha banheiro para usar, exposições e esculturas para olhar e muitas informações a respeito de muitos assuntos, e água para beber (...)", escreveu Tamara Gomes da Silva em um poema feito em uma oficina de texto em 2013.
Quem destaca o texto é Chiovatto. "Veja como eles percebem o museu. É um espaço com obras de arte, mas também com disponibilidade de água e banheiro", diz. Ela recorda-se também um debate sobre cidade feito com o público, em que um dos temas discutidos foi onde havia bons lugares para dormir.
"A proposta não é só trazê-los para ver a grande, boa e bela arte, mas também dar voz, dignidade e autoestima", diz.
É aí que entram as oficinas, coordenadas pelo artista e educador Augusto Sampaio, com moradores de rua na Casa de Oração do Povo da Rua e com idosos no lar de internação Sítio das Alamedas. De 15 a 20 pessoas frequentam as atividades semanais.
Já fizeram xilogravuras e estampas em tecidos e expuseram na Pinacoteca, em praças e no interior de SP. Neste ano, pediram que a produção fosse divulgada nas ruas que conhecem bem. Por isso, trabalham com cartazes e colagens.
Virgílio mostra à reportagem dois desses trabalhos: um representa o centro de SP. Outro, um carro, com o título "Eu Virgílio para casa".
Ele vive na rua desde que se viciou em crack após o fim de seu casamento, há 18 anos, e sonha em voltar para os filhos. Está há seis meses sem a droga. "Tô sem meus remédios, tenho que voltar a fazer o tratamento. Hoje tô com vontade de usar, sim. Mas tô me segurando", confessa.
Ernande mostra três cartazes. Um traz uma tartaruga, com o título "Devagar". Outro, uma balança, com um coração e um explosivo, representa a Justiça. O terceiro, uma máscara usada pelo assassino do filme "Pânico". Ele passou a maior parte da vida na cadeia, onde aprendeu o trabalho manual: fazia crochê com linha de blusa de lã desmanchada e agulha improvisada com escova de dente raspada. Com a costura que pretende sair da rua —vende um boné de crochê a R$ 50.
Ainda é dependente de crack, mas diz que a oficina é fundamental para que reduza o uso. "Isso aqui tem me tirado um pouco da minha drogadição. Na minha sobriedade, eu consigo fazer artesanato com as mãos. Se eu tiver bêbado ou drogado, já não faço."
A motivação é citada por diferentes artistas com quem a reportagem conversou.
"A elaboração do trabalho plástico é intrinsecamente terapêutica", diz Sampaio. "Nós não temos um objetivo terapêutico, não é um trabalho de arteterapia, de ocupação de tempo com uma tarefa artesanal, mas as consequências são as mais insuspeitadas".
"Você se dispor a pensar linguagem a partir da sua percepção, da sua história, do seu conhecimento, é algo que não tem contraindicação, só faz bem. E proporciona coisas inusitadas", conclui.
Os grafites de São Paulo inspiram a obra de Hugo Ramos, 57. Os cartazes têm tons escuros de azul e roxo, e mostram a noite e o mar. De Florianópolis e surfista, morou 25 anos na Europa, fabricando pranchas.
Está nas ruas desde que foi deportado, em 2012. Pretende fazer dinheiro com estampas de roupas após fazer uma oficina no Senai —já estudou também marcenaria.
Intitulou um trabalho como "Luar", "já aconteceu muito comigo de dormir debaixo de árvore, vendo a lua", diz, e chama outro, mais abstrato, de "Fragmentos": "São os fragmentos da minha vida, os pedaços que devem estar por aí".