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fevereiro 20, 2018
'Hora de assumir lados', entrevista com Moacir dos Anjos por Andrei Reina, Bravo
'Hora de assumir lados'
Entrevista com Moacir dos Anjos por Andrei Reina originalmente publicada na revista Bravo!.
Coordenador do projeto Política da Arte na Fundação Joaquim Nabuco, Moacir dos Anjos diz que a arte não pode mudar o mundo – mas sim nos indicar fissuras nos consensos que nos formaram como sociedade
“Não se pode esperar que arte possa mudar a sociedade". A frase do pesquisador e curador Moacir do Anjos, contudo, não invalida a ideia de que ela possa oferecer novas maneiras de compreender o mundo e nossa história. “Sem encarar as fissuras que nos fizeram o que somos nós – fissuras de raça, de classe, de gênero –, não seguiremos para lugar nenhum diferente deste onde estamos há tanto tempo”, diz. Em entrevista à Bravo!, Moacir – que coordena o projeto expositivo e pedagógico Política da Arte, na Fundação Joaquim Nabuco, no Recife – avalia a produção artística brasileira em 2017 e defende que os ataques conservadores às artes exigem um posicionamento de artistas, curadores e gestores. “É hora de assumir lados.”
Terminamos o ano de 2017 com a sensação de que as artes visuais no Brasil estão contra a parede. A que você atribui a onda de censura e ataques em exposições e mostras?
Estamos vivendo, como já foi inúmeras vezes dito e analisado, uma crise de representação. Crise que não alcança apenas o campo da chamada política partidária, mas que envolve todos os espaços de vida onde equivalentes simbólicos do mundo são criados e difundidos. Estamos em disputa aberta pelas imagens, discursos e gestos que supostamente representariam, no campo do sensível, nossa realidade. Representação que, por ser necessariamente um recorte da experiência vivida, tanto inclui quanto exclui aspectos dessa realidade. Essa onda de censura e de ataques a exposições é expressão violenta dessa disputa, onde se busca sufocar, à força, modos menos excludentes de representar o mundo.
Por que as exposições de arte foram alçadas a vilãs da moral do país?
As artes visuais não não se moldam, para o bem e para o mal, a um consumo massivo. É justamente essa característica que faz com que as artes visuais sejam agora alvo dos ataques conservadores, posto que constituem – ainda, ao menos – um espaço de reflexão crítica cada vez mais escasso na esfera criativa do país.
O filme The Square, Palma de Ouro em Cannes, critica as mega-instituições de arte em sua distância da vida comum e em sua subserviência aos patrocinadores. Há um descompasso entre a experiência brasileira e a global? Ou os fenômenos estão relacionados?
A teia institucional artística brasileira é extremamente desigual. Enquanto a maior parte dos museus e centros culturais vive à míngua e luta para não fechar de vez as portas, alguns poucos se equivalem, em termos de poder simbólico, às instituições criticadas, direta ou indiretamente, em filmes como The Square. Poder simbólico que, muitas vezes, se ancora em associações com patrocinadores e patronos, que fazem parte de seus conselhos e direções. Esta associação ficou tristemente clara na decisão que o conselho e a direção do Masp – formado por representantes de algumas das maiores fortunas do país – tomaram de proibir a mostra Histórias da Sexualidade para menores de 18 anos, ecoando o receio de seus patrocinadores e patronos frente aos danos simbólicos e políticos que um eventual ataque conservador ao museu lhes causaria.
Com as eleições à frente, 2018 promete manter o clima de polarização do ano passado. Quais são suas expectativas para o ano nas artes?
Difícil de prever o que pode acontecer em ambiente de tamanha incerteza e insegurança política e jurídica. Parece-me que a reação firme de muitos artistas visuais aos ataques conservadores – usando seus corpos e também vias legais nessa defesa – conseguiu criar um obstáculo à fúria cega e ignorante dos que desejam um país sem espaços de reflexão crítica, seja nas escolas, seja nos museus. Mas é preciso estar sempre alerta e contrapor-se de imediato a qualquer novo ataque. Este é, a meu ver, um dever de todo artista, curador, crítico, educador ou gestor de museu que confie no poder que a arte tem de apontar para outras formas possíveis de entender o mundo. É hora de assumir lados.
Você coordena pesquisas sobre arte e política na Fundação Joaquim Nabuco. Quais relações entre os dois termos vocês têm observado? E o que esperar delas nos dias de hoje?
Coordeno um projeto de exposições, debates e cursos chamado Política da Arte. No âmbito desse projeto realizamos, nos últimos sete anos, cerca de 20 exposições com artistas de várias procedências e interesses, além de inúmeros eventos discursivos. Cada qual a seu modo, e em função de seu contexto de trabalho e de vida, apresentou trabalhos de grande contundência crítica. Apesar disso, não se pode esperar da arte aquilo que ela não pode entregar – mudar a sociedade. O que a arte pode oferecer são outras maneiras de entender aquilo que pensávamos já conhecer. Abrir fissuras nos consensos com os quais vamos levando nossas vidas através dos anos. Oferecer formas de entender o mundo mais inclusivas e complicadas. Mas a responsabilidade de fazer algo maior disso tudo não é da arte, é de cada um que entre em contato com ela, seja de que modo for. Uma coisa, contudo, é certa: quanto mais universidades, museus, centros culturais e galerias promovam um contato cada vez mais próximo com essa produção crítica e potencialmente emancipadora, mais chances existem de que algo novo floresça.
Os artistas têm sido felizes em responder às novas contradições da sociedade? Que horas são para as artes visuais no Brasil?
É difícil falar, de modo inequívoco, sobre qualidade de produção artística, quando os próprios valores e critérios para atestá-la têm sido postos à prova nas últimas décadas e, de modo mais radical, nos últimos anos. E não somente no Brasil. O que não é necessariamente ruim, pois nos põem em posição de alerta, levando-nos a questionar julgamentos supostamente assentados e resolvidos. É possível que cheguemos, em algum tempo, em novos acordos, em novos consensos sobre juízos de valor, mas creio que vivemos um intenso momento de disputa. Falando de um modo muito genérico, contudo, é patente que há hoje, no Brasil, muitos mais artistas confrontando as contradições do Brasil do que há dez ou mesmo cinco anos atrás. Confronto que nem sempre é temático ou didático, pois são muitas as maneiras de a arte fazer política no sentido que mencionei anteriormente. Quanto a isso, sou otimista. As artes visuais no Brasil se fazem, cada vez mais, contemporâneas de seu tempo.
Como você definiria o papel de um curador de arte hoje? Concorda com as críticas de que curadores por vezes ganham mais destaque do que as obras e os artistas?
Apesar de atuar como curador há muitos anos, não me importo muito com as discussões específicas do campo. Acho que há um tanto de frivolidade e de vaidade em muitas dessas discussões, associadas, claro, a disputas por um naco de poder. Um pequeno poder, embora haja quem se iluda com sua suposta grandeza. E, nesse sentido, concordo que muitas vezes os curadores terminam ganhando um destaque desproporcional frente ao que realmente importa nisso tudo, que é a arte e aqueles que a produzem. Prefiro entender o papel do curador de arte como o de um pesquisador que eventualmente traduz os seus “achados” na forma de uma exposição; ou de um seminário; ou de um ensaio; ou tudo isso junto. Também como alguém que pensa junto do artista sobre interesses e preocupações comuns e que participa, com sugestões críticas, na apresentação do trabalho daquele a uma audiência mais ampla.
Um assunto inevitável nos últimos anos é a sublevação promovida pelos movimentos identitários na sociedade. No ano passado, ao menos quatro mostras foram sensíveis a esse novo quadro: Modos de Ver o Brasil, Brasil por Multiplicação, São Paulo Não é uma Cidade e Agora Somos Todxs Negrxs?. O jogo está mudando?
Está mudando. Lentamente, mas de modo inexorável. E o mundo das artes, como parte disso tudo, segue mudando também. Às vezes com retardo, outras vezes se adiantando. Acho muito importante e salutar para nossa jovem e já combalida democracia que mais e mais mostras discutam as desigualdades históricas e atuais que fundamentam nosso país. Se no ano passado foram quatro mostras, que este ano sejam oito e depois mais. Estamos apenas engatinhando, e não somente nas artes.
Uma crítica que era comum de se ouvir, mas parece ter passado ao segundo plano, era a de que o eixo cultural brasileiro se restringe demais ao Rio de Janeiro e São Paulo. No caso das artes visuais, o quanto disso ainda é verdade?
Se o critério para definir eixos ou polaridades for o do mercado ou mesmo o do dinamismo institucional, é evidente que ainda há uma enorme concentração da produção artística brasileira nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. E isso tem consequências em termos de acesso diferenciado à produção que o chamado meio da arte pode promover. Mas o mundo e o Brasil ficaram mais complicados nas últimas décadas. E isso é muito bom. Globalização, internet, lutas de afirmação identitária ou mesmo de recusa a qualquer reducionismo identitário, associadas à criação de vários outros circuitos que ignoram ou ao menos não se submetem a galerias e museus tem criado um ambiente muito mais diverso, às vezes até inclassificável. Como ou se essa dinâmica vai se ancorar em novas instituições ou mesmo em nichos de mercado é algo que a incerteza em que vivemos hoje no Brasil torna impossível sequer considerar.