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janeiro 31, 2018
Uma saída para os museus por Rachel Rubin e Hugo Cilo, Istoé Dinheiro
Uma saída para os museus
Matéria de Rachel Rubin e Hugo Cilo originalmente publicada na revista Istoé Dinheiro em 8 de janeiro de 2018.
Instituições culturais se reinventam para diversificar fontes de recursos, correr menos riscos e democratizar suas programações. Tudo para compensar a queda de financiamento público
Em novembro do ano passado, uma notícia fez o mundo das artes, que já andava em crise existencial, deitar de vez no divã: a condenação, a nove anos de prisão, de Bernardo de Mello Paz, o fundador do Instituto Inhotim – museu de arte contemporânea que é um dos mais visitados do País –, por lavagem de dinheiro referente ao período em que fora proprietário do conglomerado Itaminas, de mineração e siderurgia. Paz tem ainda uma dívida com o governo do Estado de Minas, também consequência de sua atividade na mineração. O montante chegou a R$ 500 milhões, mas, com a adesão a uma lei estadual que dá desconto para devedores, esse valor caiu para aproximadamente R$ 150 milhões.
Para quitar a dívida, o fundador do Inhotim chegou a oferecer obras de arte em exposição no museu. Segundo o instituto, a negociação estabelece que as obras permanecerão no museu, em comodato, sem possibilidade de serem removidas. Antonio Grassi, diretor executivo do Instituto Inhotim, diz que além de investimentos de Paz e da verba obtida com a visitação, o Inhotim é financiado pelo governo de Minas e pela Lei Rouanet. Mas, para ter mais autonomia e depender menos de recursos de seu fundador e das leis de incentivo fiscal, a instituição tem adotado uma série de estratégias. “Nosso trabalho de captação, de como podemos garantir a sustentabilidade de Inhotim, vem sendo feito bem antes dos fatos recentes. Queremos sensibilizar e criar vínculos permanentes com patrocinadores também pessoas físicas”, explica Grassi. “Bem mais brasileiros doam para o MoMA do que para instituições daqui”, compara, referindo-se ao Museu de Arte Moderna de Nova York. Um dos projetos para estimular patronato é o apadrinhamento de obras. Há dois anos, o Instituto começou a testar esse novo modelo de gestão com o patrocínio da construção da galeria da fotógrafa suíça naturalizada brasileira Claudia Andujar, para a qual 25 pessoas contribuíram, cada uma, com R$ 25 mil reais. Hoje, do orçamento anual de R$ 35 milhões, 90% dos recursos vêm de patrocínio direto, Lei Rouanet e bilheteria. Bem diferente do início de Inhotim, quando, há dez anos, Paz arcava com a maior parte desse valor.
As notícias envolvendo o Inhotim foram traumáticas por arranharem a imagem de um dos marcos culturais e turísticos do Brasil e por deixarem evidentes as vulnerabilidades da gestão cultural no País. Em tempos de crise econômica, quando a cultura é uma das primeiras áreas a sofrer com cortes, é bom saber que arte e planejamento andam de mãos dadas. O Fundo Nacional da Cultura (FNC), por exemplo, que é um dos pontos da Lei Rouanet e que representa o investimento direto do Estado no fomento à cultura, “só vem esvaziando”, alerta Eduardo Saron, diretor do Instituto Itaú Cultural. Ele diz que o FNC, que apoia principalmente os projetos com maior dificuldade de captação junto a empresas privadas – caso dos projetos fora do eixo Rio-São Paulo –, não vem recebendo o repasse originalmente previsto de 3% das loterias federais. “A Caixa Econômica acaba enviando para o Planejamento, que não manda para a Cultura”, reclama. “Cerca de R$ 1,5 bilhão deixou de ser repassado da loteria para a cultura.”
Os modelos de gestão cultural no Brasil são variados, mas a maioria ainda depende de recursos estatais. Algumas instituições contam, majoritariamente, com recursos do governo; outras são ligadas a empresas privadas; e há as que têm modelos híbridos de recursos estatais e privados, fazendo um balanço de recursos governamentais, da Lei Rouanet e de fontes como bilheteria, patronato e cessão de espaços. Mas há ainda um caminho alternativo, dos endowments, que são fundos patrimoniais privados de longo prazo. “O mundo cultural precisa aprofundar o debate sobre os endowments. A Lei Rouanet é importante, mas não dá para ser a principal fonte de recursos”, afirma Saron. “Hoje as empresas trabalham com base em um capitalismo de metas, visando o curto prazo. Deveríamos abrir mais espaço para o capitalismo de propósitos, de compromisso com a sociedade.”
Ainda raro no Brasil, o financiamento de instituições culturais por meio de endowments é bastante comum no exterior. Nos Estados Unidos, esses fundos mantêm equipamentos diversos, de universidades a museus, como o Smithsonian Institution, em Washington, e a Boston Symphony Orchestra. Constituir um endowment, porém, não é tão fácil. É preciso arrumar a casa antes. Esses fundos são geridos como os do mercado financeiro, por isso é preciso ter uma política sólida de governança, gestão e boas práticas. Os rendimentos são usados na manutenção da instituição e no desenvolvimento de projetos, garantindo a previsibilidade e a continuidade dos recursos. Depois de um tempo, o dinheiro é devolvido aos doadores e novos recursos são captados.
Por aqui, o caso pioneiro e mais emblemático de constituição de endowment foi o do Museu de Arte de São Paulo (Masp). O museu, que estava à beira da falência em 2013, corria o risco de fechar as portas e ter seu acervo de mais de oito mil obras estatizado. A solução envolveu várias frentes. Uma delas foi a criação do fundo de endowment, cuja meta, segundo Heitor Martins, diretor-presidente do Masp, é chegar a R$ 40 milhões. Outra ação foi renegociar a dívida, de R$ 35 milhões, com os credores. Para aumentar a arrecadação também foi criado um novo estatuto para o museu, ancorado em governança e tomando como base os modelos do MoMA e do Metropolitan, em Nova York. O estatuto deslocou o poder de decisão da assembleia de associados para um conselho deliberativo, formado por 80 empresários e investidores. Cada um desses empresários, como Alfredo Setubal, presidente da Itaúsa; Flávio Rocha, presidente da rede Riachuelo; e Roberto Sallouti, presidente do Grupo BTG Pactual, tomou para si o compromisso de uma doação inicial de R$ 150 mil, além de R$ 35 mil anuais. A área de captação de doações e patrocínios do Masp, para pessoas física e jurídica, arrecadou R$ 50 milhões de 2014 a 2017. Com todas essas ações, o faturamento do Masp quadruplicou e chegou a R$ 40 milhões, virando superavitário, já que as despesas do museu são de R$ 38 milhões. “Isso tudo tem a ver com a comunidade valorizar o que tem, se envolver com o museu dentro de um espírito coletivo”, conclui Martins. “A questão financeira é um meio. Nosso objetivo é contribuir para a cultura e ter exposições de qualidade.” Segundo ele, o Masp deve fechar o ano com 410 a 430 mil visitantes, a segunda maior da história da instituição.
Outro caso raro de endowment no Brasil é o do capitaneado pelo artista Marcos Amaro, herdeiro de Rolim Amaro, o lendário fundador da TAM. Amaro, que deixou o mundo empresarial para se dedicar às artes, já expôs em vários países e criou a Fundação Marcos Amaro, uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interese Público) com um acervo de mais de 600 obras. Um dos projetos da fundação, chamado de Memorial da Escultura Contemporânea Latino-Americana (Mescla), envolve um parque de esculturas e um espaço chamado Fábrica São Pedro, ambos no interior paulista. Apesar de ainda não concluídos, já estão abertos para visitação. O fundo de endowment criado por ele soma R$ 10 milhões, com recursos próprios. “No momento esse montante é suficiente para viabilizar o projeto, mas a ideia é abrir para mais investidores”, diz ele. “No total, o investimento na Fundação será de R$ 50 milhões a R$ 60 milhões em cinco anos.”
Criatividade
Um exemplo bem-sucedido de criatividade na gestão de museus, em tempos de escassez de dinheiro público, é o do Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba. Sob comando da executiva Juliana Vellozo Almeida Vosnika, o terceiro maior museu do País, com acervo de 4 mil obras e faturamento de R$ 15 milhões em 2017, está conseguindo reequilibrar suas finanças. Isso porque a participação de recursos públicos no faturamento caiu de 90%, em 2015, para 70%, no ano passado.
Entre as estratégias adotadas estão a abertura de um café dentro do museu, a terceirização do estacionamento (uma área nobre no centro da capital paranaense) e locação de espaços do MON para eventos. “Tivemos de reinventar nosso modelo de negócio, diversificando as fontes de receita”, afirma Vosnika, que também lançou um programa de parcerias, chamado de Sou Patrono. As doações de grandes empresários paranaenses alcançaram, em 2017, R$ 220 mil. Um ano antes, na estreia do programa, foram doados R$ 200 mil. “Com o apoio de doadores, novas entradas de dinheiro em caixa e maior participação da sociedade em nosso dia a dia, estamos conseguindo superar as dificuldades.”
A gestão híbrida, na qual a arrecadação vem de outras fontes além do repasse estatal, é, de fato, o modelo que tem ganhado cada vez mais espaço entre as instituições. Na Pinacoteca do Estado de São Paulo, que virou organização social de cultura no final de 2005, o governo ainda provê a maioria dos recursos – 60% do total, voltados principalmente para os custos fixos, como água e luz, e as exposições de longo prazo ou permanentes. Os 40% restantes, que precisam vir de captação, são investidos nas exposições temporárias, que costumam atrair mais público e repercussão na mídia, segundo Paulo Vicelli, diretor de relações institucionais da Pinacoteca. Quando Vicelli chegou na Pinacoteca, em 2012, o processo de atração de recursos ainda era tímido. “Não havia uma abordagem comercial, com prestação de contas”, lembra. Mas nos últimos cinco anos, com uma série de ações de governança e novas abordagens junto ao público, aumentou, em mais de 50%, o montante captado. “De pessoa jurídica, via Lei Rouanet e patrocínio direto, recebemos R$ 12 milhões, e de pessoa física, aproximadamente R$ 1 milhão”, conta Vicelli. O dinheiro desses patronos, explica, vai para um fundo de obra de arte contemporânea.
Para “fisgar” doadores, a Pinacoteca promove eventos como o Pinaball, um baile com a presença de celebridades que aconteceu em 2015 para comemorar os 110 anos da instituição. Na ocasião, foram lançados produtos com apelo de luxo, como uma linha de joias inspirada na arquitetura do prédio e uma edição limitada de uma caixa de gravuras com trabalhos inéditos doados por artistas que fizeram história na Pinacoteca, como Beatriz Milhazes, Leda Catunda e Jac Leirner. Em 2016, foi a vez de promover um álbum de fotografia com trabalhos, criados especialmente para a Pinacoteca, de artistas como Sofia Borges e Vik Muniz. Cada exemplar custava R$ 30 mil. Uma parte dos recursos com a venda do álbum – que totalizaram R$ 1,5 milhão – foi usada para comprar uma obra histórica de Belmiro de Almeida (1858-1935), “Menino com Bandolim“. A meta para o próximo ano, segundo Vicelli, é arrecadar R$ 16 milhões.
Já no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo, do orçamento de R$ 23 milhões, R$ 13 milhões vieram de repasse do governo e R$ 10 milhões de bilheteria e cessão de espaços – como o do restaurante, da loja e do estacionamento -, além de patrocínio por meio de leis de incentivo. Ao contrário da Pinacoteca e do MAM, a cultura do patronato pessoa física não tem peso na arrecadação. Mas as bilheterias, sim. Em 2010, o público geral da instituição era de 61 mil pessoas. Nos anos seguintes, o museu ganhou holofotes com mega exposições, como as do Tim Burton, Silvio Santos e Castelo Rá-Tim-Bum – essa última com público recorde de 410 mil pessoas. A exposição atualmente em cartaz conta a trajetória do cantor e compositor Renato Russo, morto em 1996. Foram mais de dois anos de pesquisa e produção, com cerca de três mil itens retirados do apartamento do artista, conta Isa Castro, diretora cultural do museu. Ao sair da exposição, o visitante encontra itens relacionados ao músico na loja e jantar no restaurante do espaço. “Queremos que o visitante tenha uma experiência completa”, diz Jacques Kann, diretor de gestão e finanças do MIS. “Antes, poucos conheciam o museu. Agora a história é outra – os cobradores de ônibus, quando passam aqui na frente, dizem ‘ponto MIS’. É isso o que queremos, desmistificar e democratizar o acesso à cultura.”