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janeiro 27, 2018
Críticas de 'The Square' ao mercado de arte redimiram todos que conheço por Bernardo Carvalho, Folha de S. Paulo
Críticas de 'The Square' ao mercado de arte redimiram todos que conheço
Coluna de Bernardo Carvalho originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo em 21 de janeiro de 2018.
Não conheço ninguém que tenha se ofendido com as críticas que "The Square", em cartaz em São Paulo, faz à sociedade contemporânea. E, no entanto, o filme parece não poupar ninguém.
Não faltam caricaturas e bodes expiatórios, sobretudo no mundo das artes, do curador de museu ao artista contemporâneo. Mas nenhum artista que eu conheço se sentiu pessoalmente concernido pelos ataques do filme. Como a maioria do público, todos concordam com a crítica às imposturas da arte contemporânea, como se não fosse com eles.
Saí sem saber de quem era o problema. Será que nem eu nem ninguém que eu conheço faz parte desse mundo deplorável, embora o reconheçamos imediatamente à nossa volta, porém nos outros?
Todo mundo com quem conversei se sentiu de alguma forma redimido pelas críticas desopilantes ao mercado de arte e ao capitalismo contemporâneo. Não chega a ser estranho, já que o filme atira para todos os lados (e assim satisfaz diferentes ressentimentos, sem realmente se comprometer com nada que possa contrariar a maioria). O estranho é que nunca acerte o espectador.
Há alguns meses, um ato em apoio ao Masp foi convocado para fazer frente a eventuais protestos que viessem a tentar impedir —por ignorância, má-fé, falso moralismo ou o que fosse— a inauguração de uma mostra sobre sexualidade.
Quando cheguei ao vão central do museu, onde os manifestantes vestidos de branco levantavam cartazes e entoavam palavras de ordem em defesa da arte, um passageiro desesperado dentro de um ônibus parado no trânsito de fim de tarde da avenida Paulista gritava pela janela, com todas as forças: "Filhos da puta!". A cena nunca mais saiu da minha cabeça.
É muito provável que aquele passageiro nunca tenha pisado e nunca venha a pisar no Masp, nem em nenhum outro museu.
Há um fosso entre o cotidiano desse homem, voltando do trabalho para casa no final do dia, num ônibus parado no trânsito da Paulista, e um grupo de pessoas vestidas de branco em defesa da arte (eu entre elas), enquanto convidados de terno, representantes da classe que decide os rumos do país, fazem fila para visitar a exposição.
Por mais que a cena seja um sintoma da desgraça brasileira, não ocorreria a ninguém de bom senso tomá-la como explicação do problema, a menos que quisesse passar por populista, demagogo, oportunista ou filisteu. Então, por que não suspeitar da facilidade de identificação catártica num filme calculista como "The Square"?
Na cena central, um performer seminu adentra o salão onde patronos, curadores e artistas participam de um jantar de gala num museu.
O homem se comporta como um gorila, indo de mesa em mesa, até que a representação sai do controle, ganha traços demasiado naturalistas e ele passa a atacar os convivas, chegando a arrastar uma mulher pelos cabelos. É quando os burgueses se revoltam e reagem com fúria animal. Moral da história: levada às últimas consequências, a arte incomoda.
O fato de poder ser verdadeira não exime essa moral do lugar-comum e do oportunismo, ainda mais quando defendida por um filme que faz de tudo para não incomodar o espectador, fingindo-se de provocação.
Afinal, por que uma simples tela dentro de um museu frequentado pela burguesia não poderia ser mais forte, mais radical e mais verdadeira do que a performance de um homem fazendo as vezes de gorila? Ficamos mais vulneráveis às manipulações filistinas quando deixamos de distinguir as coisas em si.
Outra situação crucial no filme diz respeito a uma campanha publicitária proposta por dois jovens idiotas, especialistas em comunicação digital, para divulgar uma exposição.
No vídeo que eles postam nas redes sociais, uma menina loura, paramentada como mendiga, se explode nas ruas de Estocolmo, onde a divisão social e racial salta aos olhos. O vídeo viraliza e provoca uma comoção nacional.
Imediatamente o espectador do filme identifica nos dois marqueteiros a imbecilidade que lhes cabe por mérito próprio, mas que não torna o vídeo da menina-bomba mais imoral ou inadmissível.
Como tudo é lugar-comum e nada o afronta diretamente, já não passa pela cabeça do espectador que o vídeo seja insignificante, uma representação como qualquer outra (ninguém explodiu ninguém), e que a situação não sustente a comoção, a menos que, como os personagens, já não sejamos capazes de distinguir entre uma coisa e outra.
A única coisa que ainda conseguimos distinguir é que o filme não está falando mal de nós, nunca. É a regra de ouro populista: nunca confrontar ou contrariar quem queremos convencer.