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dezembro 6, 2017

O ocaso do museu por Tatiana Mendonça, A Tarde

O ocaso do museu

Matéria de Tatiana Mendonça originalmente publicada no jornal A Tarde em 4 de dezembro de 2017.

Em cartaz no Museu de Arte Moderna da Bahia, o mais importante do estado, estão uma exposição de tapumes e uma performance de visitantes vagando com expressão de desalento. No cair da tarde de uma terça-feira de novembro, um grupo de turistas percorreu o corredor que leva ao Parque das Esculturas. Deparou-se com um portão fechado e uma placa onde se lia: “Desculpe os transtornos, estamos em manutenção”. O guia que os acompanhava tentou contornar a decepção sugerindo que olhassem pelo “buraquinho”, um pequeno quadrado com vista para um cenário de abandono.

Em julho de 2013, o ex-governador Jaques Wagner anunciou uma ampla reforma no MAM, um “presente” pelo seu cinquentenário. Com orçamento de R$ 15,7 milhões, as obras incluíam o casarão principal, as oficinas, a capela, o café, o cinema, o restaurante e o Parque das Esculturas, além da criação de novos espaços, como uma biblioteca e um estúdio para residências artísticas. A previsão era que durassem 12 meses, de modo que os visitantes que viessem para a Copa já pudessem visitar um novo museu.

Quatro anos depois, a galeria onde funcionavam o cinema e o café está coberta por um tapume branco. No casarão principal, a mostra coletiva Implosão: Trans(relacion)ando Hubert Fichte, inspirada no universo do escritor alemão, é delimitada por uma corda em frente à escada projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi, primeira diretora do museu. O segundo piso está interditado, por conta de obras no telhado. Parte da área onde acontece a JAM no MAM foi ocupada pelo canteiro da Construtora Pentágono, que suspendeu o serviço quando cessaram as verbas. A entrada do restaurante está bloqueada por mesas de escritório, e no Parque das Esculturas, o mato alto foi cortado recentemente, mas ainda é preciso restaurar as passarelas que dão acesso ao lugar. O píer, despedaçado, sequer foi incluído no projeto da reforma.

Crise no MAM

Museu de Arte Moderna da Bahia, em reforma desde 2013, perdeu relevância no cenário nacional

O museu não tem uma página na internet na qual possa prevenir esta situação aos visitantes desavisados, tampouco estampa o “desculpe os transtornos” em seu perfil no Facebook. Um ou outro usuário incumbe-se da missão em comentários no Google: “Local lindo para visitar, passar o fim de tarde e ver as exposições. Uma pena a reforma estar há tanto tempo parada, não termos mais o cinema do MAM e acesso a outra parte do museu ao ar livre“; “lugar lindo, mas tudo está fechado e sem qualquer aviso. As pessoas vêm ao engano”; “dói visitar. Tristeza em ver o abandono, as obras paradas. Vigilantes desatentos. Funcionários ausentes”; “está muito abandonado. Reformas que não acabam com aspecto que não irá terminar”.

No dia 3 de junho, o vice-governador e secretário de Planejamento do estado, João Leão, visitou o museu ao lado do diretor do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac), João Carlos de Oliveira, responsável pela gestão do MAM. No encontro, Leão garantiu que as obras teriam “continuidade”. Do valor total, R$ 7, 7 milhões estão previstos para a segunda etapa, que inclui o restauro dos arcos criados pelo arquiteto Diógenes Rebouças na Avenida Contorno. “Este é o compromisso do governo estadual e será dada continuidade à preservação desse centro cultural que é referência das artes e da cultura, não somente para a Bahia, mas também para o Brasil”, afirmou Leão, segundo texto divulgado pela Secretaria de Cultura. Até agora, a promessa não foi materializada.

A Muito procurou João Carlos Oliveira para uma entrevista sobre a reforma no museu. O gestor solicitou que a reportagem aguardasse por “quinze dias” e informou, por meio da assessoria de comunicação, que, do contrário, não teria “nada a dizer”. Nem mesmo o diretor do MAM, o artista visual Zivé Giudice, sabe quando as obras serão retomadas. Em sua sala no museu, com vista para uma janelinha que enquadra o mar, contou que isso aconteceria em “breve, breve”, afirmação que soava mais como um desejo. Quando é este breve? “Isso eu não sei”.

Em nota enviada por e-mail, a Secretaria de Cultura informou que “tem feito todos os esforços para assegurar a retomada das obras no MAM com a maior brevidade possível e trabalha para que isso aconteça ainda em 2017”.

Após o fechamento desta reportagem, o governo anunciou que as obras serão retomadas nesta semana

Desertificação

Assim que as “dificuldades de orçamento, de dinheiro” forem contornadas, Zivé conta que a prioridade é concluir os espaços cuja reforma já está mais avançada. Na galeria do cinema, a etapa da construção está terminada, mas falta mobiliário e ar-condicionado, diz. Outra urgência que encabeça sua lista é restabelecer a operação do restaurante, criando um “espaço de convivência”. “Aí acaba com essa desertificação do museu”.

Naturalmente esplendoroso, abrigado num solar do século 16 debruçado sobre a Baía de Todos-os-Santos, é preciso jogar muito contra para transformar o MAM num deserto, especialmente num momento em que os museus brasileiros passam por um processo de popularização. O problema não é só que as pessoas estejam ficando menos tempo por lá, por não terem onde tomar um café, como Zivé sugere. Muita gente simplesmente deixou de ir até o MAM.

Em 2015, 98 mil pessoas visitaram os espaços expositivos do museu. Em 2016, foram 85 mil. Os números não incluem os frequentadores da JAM no MAM, mas ainda assim assombram quando comparados às cerca de 50 mil pessoas que o museu costumava receber por mês – sim, por mês – no final da década de 1990, que o alçaram à posição de mais visitado do Brasil. À época, o espaço era dirigido pelo museólogo baiano Heitor Reis, que passou 16 anos no cargo e hoje está à frente do Brazil Golden Art, primeiro fundo de investimento de arte no país.

Por e-mail, Heitor contou que iniciou sua gestão no MAM justamente com uma “grande intervenção estrutural no local, com reforma e ampliação”. “Demos início a um projeto de gestão totalmente voltado à contemporaneidade, possibilitando que o MAM funcionasse como um grande centro cultural, abrangendo educação e ações de diversas linguagens artísticas. Estabelecemos uma sinergia única com a população, conquistando um reconhecimento nacional que levou o museu ao status de mais visitado do país por mais de uma década”. Apesar de não ter contado se segue acompanhando a situação do MAM, ele disse acreditar que a nova direção do museu tem “todas as condições para fazer uma boa gestão, possibilitando que o museu retome o protagonismo histórico que sempre teve no Brasil”.

Zivé, que voltou a dirigir o museu depois de ter pedido demissão do cargo em 2016, por discordar da decisão do Ipac que autorizou a gravação no MAM do programa Esquenta!, da TV Globo, conta que está fazendo um “esforço tremendo”, “se virando”, para “dizer para a sociedade que o museu está vivo”. Uma de suas primeiras ações foi promover um encontro com artistas para implementar o que chamou de “Estado Bienal”, já que, por falta de verbas, a quarta edição da Bienal Internacional de Artes Visuais da Bahia, que deveria ter ocorrido no ano passado, não foi realizada. Os objetivos da reunião eram um tanto vagos, dentre eles o de “criar um espaço que possa contribuir para informar e transformar o meio da arte”. Uma pequena mostra de mesmo nome foi aberta na Galeria 3, com obras de artistas como Caetano Dias, Juarez Paraíso e Sérgio Rabinovitz.

No galpão, as oficinas permanecem, ainda que de modo mais tímido, com o apoio de artistas “voluntários”, que, além de doar ensinamentos, muitas vezes também precisam arcar com materiais para as aulas. Aos domingos, volta e meia acontece o projeto “O MAM abraça as crianças”, com oficinas de pintura, desenho, colagens, bordado e modelagens com argila. Em caráter embrionário também há a ideia de o museu abrigar um “coletivo de arte aplicada”, formado por designers. As futuras exposições igualmente vagueiam no campo das ideias: um panorama sobre a fotografia baiana e uma mostra com obras de Miguel Rio Branco, ambos sem programação definida.

O feirense Caetano Dias foi um dos artistas convidados por Zivé para apoiar o MAM. “Ele está fazendo um trabalho fantástico de aproximação com a comunidade, com novos artistas, e tudo isso sem recurso algum”. Para Caetano, o museu vive um momento crucial, em que “avança ou morre”. “Faço um pedido de socorro ao governo para que cuide da cultura baiana. O MAM precisa retomar sua missão de estimular políticas públicas para as artes visuais e dar visibilidade à produção dos artistas. Precisamos de um lugar em que as políticas para a cultura sejam discutidas de forma efetiva, plural, democrática, republicana. Afinal, a Bahia é a matriz da cultura brasileira. Isso não pode desaparecer”.

As conversas em torno da reforma do MAM intensificaram-se na gestão da artista visual Stella Carrozzo, que esteve à frente do museu entre 2010 e 2012. Ela conta que, na época, cada coordenador discutiu o projeto original com seu respectivo núcleo e encaminhou solicitações ao Ipac. “O problema era a situação que o MAM e outros museus já viviam há, pelo menos, dois anos, quando da decisão: contenção sistemática para um repentino aporte de verba tão significativo para a reforma”, lembrou de Buenos Aires, onde está fazendo mestrado em curadoria em artes visuais.

Antes do início das obras, Stella foi demitida e publicou uma carta aberta na qual contou como foi surpreendida com o anúncio da reforma. “Soube, há somente uma semana atrás, que a reforma do MAM-BA seria realizada em 2013, quando já tinha organizado todo o calendário expositivo do museu, inclusive com instituições estrangeiras e artistas convidados, o que vai gerar inúmeros transtornos para todos os envolvidos, reiterando um aspecto de informalidade e de pouco profissionalismo, contra o qual sempre lutamos”, escreveu na ocasião.

Para Stella, a reforma era e continua sendo necessária, mas deve “terminar já”. “É inaceitável e inacreditável que um museu como o MAM-BA permaneça no estado em que se encontra. É uma pena que a população não se manifeste publicamente”.

Falta de pessoal

Além de perder relevância no cenário nacional, o protagonismo do MAM está sendo esvaziado até mesmo na cena estadual. Nanci Novais, diretora da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, conta que os alunos da EBA estão deixando de ter o museu como referência. “Antes, eles tinham o sonho de participar dos Salões de Artes Visuais, das grandes exposições que o museu abrigava, além de ser um espaço onde tinham a oportunidade de ver obras de artistas importantes de fora. É um prejuízo grande que o MAM esteja nesta situação. É tão triste que a gente fica até sem acreditar”.

Para expor trabalhos fora da escola, acabam buscando parcerias com o Palacete das Artes ou o Museu de Arte da Bahia, conta Nanci. Recentemente, ela visitou o MAM para conversar com Zivé e buscar caminhos de como a universidade pode se aproximar do museu. Nanci lembra que os problemas vão além da perenidade da reforma. Faltam materiais básicos para as oficinas – um dos pilares do projeto original de Lina Bo Bardi era justamente fazer do MAM um museu-escola – e pessoal para garantir o pleno funcionamento das atividades. Cerca de 60 funcionários contratados por meio de regime especial de direito administrativo (Reda) foram dispensados, entre técnicos, monitores, faxineiros e vigilantes.

Em julho, Nanci fez a curadoria da exposição Radiografia Urbana III, dos artistas alagoanos Vera Gamma e Rogério Gomes, que ocorreu no MAM. Ela conta que o processo de montagem da mostra foi “uma coisa chata, assim”, porque o museu não tinha pessoal nem para apoiar a divulgação. “Os artistas fizeram a exposição em todo o Brasil e aqui foi desse modo. Não tinha nem como explicar para eles...”.

Estado “terminal”

A Bahia perdeu exposições de Di Cavalcanti, Alfredo Volpi, Amilcar de Castro e de artistas do acervo da Fundação Edson Queiroz por causa da precariedade das instalações do Museu de Arte Moderna da Bahia. Essas mostras foram apenas algumas das que chegaram ao conhecimento do galerista Paulo Darzé. “Todos querem expor no MAM, oferecem as mostras, mas como é que faz? O museu não tem verba, não tem transporte, não tem segurança nenhuma. E nós estamos falando de obras caríssimas”.

Para o galerista, não dá para classificar o lugar que o MAM ocupa hoje entre os museus brasileiros. “Já foi o mais importante do Norte e Nordeste e o terceiro do Brasil. Hoje, não ocupa lugar algum. Não há exposições de vulto. O museu saiu do circuito nacional. Abriu mão do Salão de Artes Visuais, que era o mais importante do país, para embarcar numa Bienal que não mostrou a que veio. E agora se diz que o museu está em Estado Bienal. Está em estado terminal”.

Stella está pouco esperançosa de que essa situação mude a curto prazo. “Nas condições em que não só o MAM, como qualquer outro museu estadual vêm operando, é muito difícil exigir ou esperar uma atuação significativa no cenário estadual e nacional. Na verdade, não vejo na Bahia uma política cultural pública estabelecida, efetivamente preocupada com a democratização do acesso e produção das artes visuais, que viabilize projetos que funcionem a médio e longo prazos, e não com imediatismos”.

Muitos artistas e gestores culturais defendem que o MAM volte a ser gerido pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, que tem como missão promover as linguagens artísticas, e não mais pelo Ipac, responsável pelo patrimônio material e imaterial. De todo modo, a mudança burocrática talvez não tivesse muitos efeitos práticos quando se trata de maior aporte de verbas e de uma gestão que esteja acima de descontinuidades políticas. Neste sentido, discute-se, há mais de 10 anos, a criação de uma associação de amigos do MAM, que administraria o local em parceria com órgãos públicos, como acontece nos principais museus do país e do mundo. Um estatuto da associação chegou a ser finalizado, mas o projeto não saiu do papel. Nascido como um museu voltado à comunidade, é hora de a comunidade voltar-se ao museu.

Posted by Patricia Canetti at 2:54 PM