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setembro 18, 2017
Não há arte possível para a gente de bem por Daniela Name, O Globo
Não há arte possível para a gente de bem
Artigo de Daniela Name originalmente publicado no jornal O Globo em 12 de setembro de 2017.
A autocensura transformada em censura pelo Santander Cultural é um sinal dos dias sombrios que atravessamos
Uma exposição que inflamou aquela cidade fria. Os cidadãos de bem comentavam, mesmo sem ter visto. As mães protegiam seus filhos daquelas telas, esculturas, fotografias e objetos, consideradas uma ameaça à família, ao espírito nacional, aos altos valores. Cada obra como um ataque premeditado à ordem; cada defensor desse tipo de arte como um pervertido, pedófilo, bandido ou prevaricador — talvez todos os atributos combinados. Uma patrulha civil, milícia da moral, de plantão do lado de fora, abordando e intimidando as pessoas. Afinal de contas, quem não é pelo bem compactua com o mal. Porto Alegre? MBL? Mostra queer? Não. Este texto começou em Munique, onde, há exatos 80 anos, em 1937, um certo Adolf Hitler transformou a mostra "Arte degenerada" em uma de suas principais peças de propaganda ideológica.
Nas paredes e no espaço, obras de Piet Mondrian, Emil Nolde e Oskar Schlemmer, entre outros grandes nomes da arte moderna. Esteticamente, eles representavam a ruptura com a ideia de verossimilhança e com o sistema de representação ordenado e hierárquico vigente desde o Renascimento.Simbolicamente, apontavam para a arte como um horizonte de ambiguidades, de opacidade e de ficção; um campo sem compromisso com o real; um impulso sempre faminto de liberdade e de utopia. E, é claro, um perigo avassalador para a intolerância e o discurso monocórdio de Hitler. A exposição "Arte degenerada" deu ao ditador a chancela para a destruição de obras dos artistas participantes e também de Picasso, Kandinsky e Matisse — todos vistos como vetores "judaico-bolcheviques". O resto da história conhecemos bem — ou ao menos deveríamos: obras de arte queimadas, escondidas, destruídas. Artistas e pensadores fugindo ou morrendo.
Na Porto Alegre do último feriado, uma instituição financeira internacional, o banco Santander, fechou um projeto que se dispôs a patrocinar. Uma exposição apresentada à opinião pública como um libelo a favor da diversidade, inaugurada há menos de um mês. No Rio, não vi a montagem da mostra, embora conheça bem boa parte das obras selecionadas pelo curador Gaudêncio Fidélis.
Ao percorrer os trabalhos reunidos em "Queermuseu — Cartografias da diferença", percebo que o subtítulo sintetiza muito melhor esse projeto do que seu título. Trata-se de um conjunto que procura debater, antes de mais nada, a importância da alteridade, e não apenas através de um filtro das bandeiras LGBT. Há um retrato de Portinari e obras relacionais de Lygia Clark mescladas a trabalhos de forte conteúdo erótico, como as fotos de Alair Gomes. E de outros trabalhos que apresentam cenas de sexo, mas para que elas discutam alto muito além dele, caso do trabalho "Cena interior II", de Adriana Varejão, uma reflexão profunda sobre os estupros e os bastardos produzidos em nosso período colonial. É uma mostra sobre duelos diversos para a conquista da diversidade, propostos por um grupo de obras que não veio ao mundo para nos oferecer paz. A arte e o museu contemporâneos serão sempre mais potentes quanto forem menos apaziguadores — e a reação à mostra gaúcha é apenas uma comprovação disso.
"Queermuseu" não ataca a fé católica, embora critique as instituições religiosas. Fala de sexualidade, mas não é uma mostra pedófila. Nesse quesito, aliás, seria difícil para a arte concorrer com a própria Igreja, com cada vez mais casos de crimes sexuais vindo à tona, para constrangimento de seu Papa progressista. A mostra que se propunha a realizar uma "cartografia da diferença" não é exclusivamente gay ou trans, mas, se fosse, o patrocinador já sabia de seu conteúdo meses antes da inauguração. Como então se arrepender apenas por uma reação da audiência? Cultura se faz pelo número de "likes" ou de "grrrrrr"? Um promotor de cultura recua sob ameaças?
Uma das manobras dos ataques produzidos presencialmente ou nas redes sociais pelo MBL e os grupos de direita contra "Queermuseu" foi a do escândalo que seria usar dinheiro público para patrocinar "pouca vergonha". Mas não seria vergonhoso mesmo usar dinheiro público para fazer uma exposição que tem alto custo de montagem, transporte, seguro e de catálogo, e depois fechá-la antes do prazo previsto?
A autocensura transformada em censura pelo Santander Cultural, instituição que tem uma folha corrida de grandes iniciativas na capital gaúcha e no resto do país, é um sinal dos dias sombrios que atravessamos. Assistimos, boquiabertos, à patrulha a Chico Buarque e a Letícia Sabatella, entre outros artistas considerados de esquerda. Chico voltou a ser atacado por grupos distintos no lançamento de seu último CD, por motivo semelhante a uma das causas que faz ˜Queermuseu" ser fechada: estamos perdendo a capacidade de compreender a metáfora e a ficção. No caso específico da arte contemporânea, de compreender que não há mais um espelho possível para um mundo de imagens ordenadas, reconhecíveis e inócuas. Um mundo que só existe na cabeça dessa gente honrada que odeia gays, pobres e negros. Dessa gente honrada que odeia. Ponto.
O caso de Porto Alegre, no entanto, amplia a estratégia miliciana desses grupos ultraconservadores ao associar a arte ao mal; os artistas aos aproveitadores dos recursos públicos, vagabundos que querem roubar o dinheiro suado (?) e o sono tranquilo (?) dessa "gente de bem". Teríamos a oportunidade de pensar os métodos distorcidos de patrocínio no país, deixando nas mãos da iniciativa privada a prerrogativa de realizar e de cancelar um projeto como "Queermuseu". Teríamos a chance de notar, mais uma vez, o quanto os monólogos intermináveis das redes sociais nos tornam cegos e surdos. Mas não conseguiremos fazer isso a um passo da degeneração. Ou já mergulhados nela.
* Daniela Name é crítica de arte e curadora